quarta-feira, 17 de abril de 2024

Um dia de cada vez

Um dia de cada vez - Guia de suporte
emocional da mulher com câncer

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 17 DE ABRIL DE 2024 – Há um monte de livros intitulados “Um dia de cada vez”. Nas reuniões terapêuticas de viciados essa frase é muito lembrada. Alcoólatras, usuários de drogas em geral costumam repeti-la, como mantra, para lembrá-los de que a luta contra o algoz do vício é deflagrada todos os dias. 

A deusa da literatura brasileira, Clarice Lispector, a usou para “não perder as boas surpresas da vida”. Provavelmente ela quis dizer que os dias que virão, por mais rotineiros que se prenunciem, poderão ser surpreendentes, quem sabe, ensolarados como manhã de primavera. A vida é um mistério; um caminho, às vezes bifurcados por carmas. Mas em todo caminho há sempre luz. 

Eu utilizo bastante a frase “Um dia de cada vez” enquanto terapeuta em Medicina Tradicional Chinesa. Não propriamente a frase, mas seu significado. A grande maioria das minhas pacientes sofre de ansiedade e então eu procuro conduzi-las ao “agora”. A vida só acontece agora. A eternidade é agora. Não podemos viver amanhã, nem ontem, mas somente hoje. Então vivamos completamente, mesmo com câncer! 

Viver, hoje, é preciso; viver, amanhã, não é preciso. Só hoje podemos curtir o sol, a brisa, o canto dos pássaros, o riso das crianças. Só hoje podemos conversar com Deus! Amanhã, não! Porque amanhã não existe. A intensidade da vida só acontece hoje. A intensidade é como o primeiro beijo, como a música de Mozart, como montar na luz. E isso tudo acontece dentro da gente. 

Agora, acaba de ser publicado mais um livro Um dia de cada vez, mas desta vez se trata de um Guia de suporte emocional da mulher com câncer (Editora Aja, Santa Catarina, 203 páginas), escrito por 10 psicólogas oncológicas de todo o Brasil e 10 pacientes oncológicas, organizado por Tatiane Lima. 

O livro “oferece uma luz de esperança em meio ao turbilhão emocional que acompanha o diagnóstico de câncer”. Nele, as psicólogas oncológicas esmiúçam as complexidades emocionais que acompanham o tratamento do câncer, levando luz às pacientes, que também compartilham as suas jornadas pessoais de luta e superação. Trata-se de um livro que promete transformar vidas, “um guia não apenas para mulheres com câncer, mas também para os seus familiares e profissionais da saúde”. 

“Em um instante, a vida muda drasticamente, o medo da morte e do sofrimento se tornam iminentes! É o que acontece quando somos confrontadas com o diagnóstico de câncer. Somos inundadas por um turbilhão de emoções e incertezas sobre um futuro que se revela totalmente diferente do que planejamos. No entanto, mesmo nos momentos mais sombrios, há luz e apoio para nos guiar. 

“Em Um Dia de Cada Vez – Guia do suporte emocional da mulher com câncer, além de histórias inspiradoras de pacientes oncológicas que enfrentaram essa batalha com coragem e resiliência, você encontra direcionamento de psicólogas especialistas em oncologia, com técnicas validadas e orientações para o cuidado emocional. 

“Desde o impacto inicial do diagnóstico até os desafios diários do tratamento, este livro oferece conselhos práticos e reflexões profundas sobre como encontrar esperança e apoio durante a jornada oncológica. Seja qual for a fase em que você se encontra, este livro é um lembrete gentil de que não estamos sozinhas. 

“Esta é uma jornada de um dia de cada vez, cheia de amor, compaixão e uma mensagem de esperança para todas as mulheres que enfrentam o câncer” – diz a apresentação do livro. 

As autoras: Agnes Sewo, Ana Tancredi, Claudia Pinho, Daniele Sousa, Gláucia Flores, Josiane Cunha, Maria Teresa de Bortoli, Paula Barros, Raphaella Pires e Thayane Baroni; e as pacientes: Dalva Lima, Damaris Franco, Enezia Schettini, Fátima Laplaca, Larissa Feitoza, Nayane Quaresma, Nayara Fagundes, Rita Tapié, Suélen Rocha e Thainara Proença.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Copacabana

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 15 DE ABRIL DE 2024 – A última vez que estive em Copacabana ocorreu no fim de fevereiro e início de março. Fui ao Rio para uma sessão de autógrafos do meu romance JAMBU, no restaurante Belém Belém Amazônia, no Posto 6, e para checar alguns endereços que entram no meu próximo romance. Fazia 40 graus à sombra, Copacabana fedia a esgoto e dos calçadões brotavam moradores de rua. 

Morei na Rua República do Peru, entre a Tonelero e a Barata Ribeiro, em 1972, dos 17 aos 20 anos, e estava trabalhando no meu primeiro livro solo de poemas. Já havia participado de uma coletânea, juntamente com mais dois poetas de Macapá/AP, minha cidade natal: Joy Edson (José Edson dos Santos) e José Montoril. Em 1971, publicamos XARDA MISTURADA. No Rio, escrevi Essa Copacabana Triste Mulher: 

Tua boca é pura flor embelezando-se ao sol de Copacabana

E tua figura é um desenho gostoso esculpido ao sol de Copacabana

E quando Copacabana inteira se prostituir

Os gemidos de amor serão a canção da moda em

Copacabana

Então a praia Copa será uma enorme cama. 

É como eu via Copacabana, uma rosa colombiana desnudando-se ao sol do Trópico, ao som de Tom Jobim, ou de Jorge Ben Jor. Rubem Braga fizera 22 advertências, em 1962, para a danação de Copacabana: 

1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas. 

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite. 

3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia. 

4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. 

5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão. 

6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão. 

7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska. 

8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum. 

9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão. 

10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação. 

11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência. 

12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei. 

13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia. 

14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações. 

15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados? 

16. Antes de te perder eu agravarei a tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão. 

17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará. 

18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas. 

19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão. 

20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis – tudo passará. 

21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares. 

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana! 

Porém eu digo: Copacabana é pura como o azul do Atlântico e imortal como as rosas colombianas. A Princesinha do Mar está inteira, e mais bela do que nunca. Vista da Confeitaria Colombo, no Forte de Copacabana, até o Leme, a Avenida Atlântica é a praia mais esplendorosa do mundo. 

Acabo de ler Na multidão (Companhia das Letras, São Paulo, 2007, 176 páginas), de Luiz Alfredo Garcia-Roza, o maior escritor policial brasileiro. Ele criou o delegado Espinosa, que mora no Bairro Peixoto e é titular da 12ª DP, na Rua Hilário de Gouveia, entre a Barata Ribeiro e a Tonelero, e quase não sai da Zona Sul. 

Os grandes escritores conseguem transmitir emoção para o leitor por meio dos cinco sentidos. Sentimos cheiros, sabor, vemos, ouvimos e pegamos. Ernest Hemingway, por exemplo. E assim é com Garcia-Roza. Ele legou doze romances. Li dez. Faltam dois. Chegou a hora de poupar, ler esses dois que faltam bem devagar, como fazia Hemingway com Joseph Conrad. 

Garcia-Roza era psicanalista e professor universitário, graduado em psicologia e filosofia. Talvez isso tenha lhe dado ferramentas para criar as personagens que ele forjou, como o delegado Espinosa, um homem comum, com dúvidas, angústias e solidão, mas estruturado em uma liga inquebrável: Espinosa é incorruptível. Esse é o princípio que o norteia em meio a um mar de corrupção. 

Garcia-Roza nasceu em Copacabana, em 1936, daí que conhecia a fundo o bairro, pois, como todo bom escritor, via o que as pessoas geralmente não veem, e, certamente, gostava de caminhar pelas ruas do bairro. Assim, já tinha o ambiente de Espinosa, quando o criou. Quanto aos demais personagens, procurava conhecer suas entranhas. Mais do que solucionar os crimes, Espinosa quer entender por que os cometeram, como no caso do assassino de Na Multidão. 

Uma senhora procura o delegado, na 12ª DP, mas Espinosa está em reunião. Ela diz que precisa ir, porém voltará mais tarde. Vai embora e é atropelada e morta em uma esquina apinhada de gente, em horário de pico. Entretanto, testemunhas dizem que pareceu que ela foi empurrada. 

Surge um suspeito, ligado à morte de uma menina, 40 anos atrás, no Bairro Peixoto. Uma amiga da senhora que morreu atropelada aparece morta, com o pescoço quebrado. E ambas eram amigas da mãe do suspeito, que morreu em circunstâncias suspeitas. Mas não há prova alguma. Apenas suspeita. Até que Espinosa descobre que ele é o próximo.

Não é só isso. As 176 páginas de Na Multidão estão recheadas de surpresas, suspense, erotismo e Copacabana. Delícia!

domingo, 14 de abril de 2024

Conto que dá título a TRÓPICO, de RAY CUNHA

TRÓPICO pode ser adquirido no Clube de Autores e na amazon.com.br

LUCAS Miguel Benítez Loyola. Lucas, em homenagem ao pai; Miguel, ao avô paterno; Benítez, sobrenome paterno da sua mãe; e Loyola, sobrenome paterno do seu pai, paraense de Belém, e que desde que fora fazer faculdade no Rio sempre morou em Copacabana, Rio de Janeiro. Lucas pai era neurocirurgião. Conheceu sua esposa, a bela psicóloga catalã Andreza Isabel Navarro Benítez, durante encontro internacional de psiquiatria e psicologia no Copacabana Palace. Casaram-se e viajaram imediatamente para a cidade natal de Isabel, Barcelona, a imperatriz do Mediterrâneo, onde sua família descendia de uma linhagem de mestres em Medicina Tradicional Chinesa. Não deu outra, Lucas pai conheceu o Instituto Superior de Medicinas Tradicionais (Ismet), onde se especializou em medicina chinesa. Brilhante, aprendeu mandarim com facilidade espantosa e mergulhou nos clássicos da milenar ciência, bem como no taoísmo e no zen-budismo, e procurou transmitir ao filho a essência de tudo o que aprendera.

Lucas nasceu em 20 de julho de 1969, ao lado do Copacabana Palace Hotel, no apartamento da família, no sétimo andar do Edifício Chopin. Nasceu no mesmo momento em que os astronautas Neil Armstrong e Buzz Aldrin alunissavam o módulo lunar Eagle. Dezessete anos depois, em 1986, o médium Chico Xavier conversava com o escritor e editor Geraldo Lemos Neto e a médica Marlene Nobre quando falou a respeito do que Geraldo Lemos chamou de Data-Limite, moratória de 50 anos (20 de julho de 1969 a 20 de julho de 2019) que o Comando Planetário do Sol dava para a Humanidade. Se nesse intervalo não fosse deflagrada a Terceira Guerra Mundial, a Humanidade entraria em uma era de amor, paz, luz e prosperidade. Em caso de uma guerra atômica, poucas regiões do planeta escapariam do armagedom, uma série de cataclismos que se sucederiam a explosões nucleares. O Brasil seria uma região abençoada, onde se abrigaria a maior parte da Humanidade, especialmente os habitantes do Hemisfério Norte, que seria arrasado. Assim, pensou Lucas, considerando-se que a ameaça de uma guerra nuclear no intervalo da Data Limite já é passado, a era da luz já começou, e os avatares que trarão a boa-nova, seres de civilizações muito mais avançadas do que a terráquea, começaram, aos poucos, a se apresentar para a raça humana.

Lucas tinha dois grandes amigos de infância: Luiz Cabral Maia Júnior e Octávio de Oliveira Noblat. Ingressaram juntos na Universidade Federal do Rio de Janeiro; Luiz Cabral Júnior no curso de Direito, Octávio de Oliveira Noblat no de Jornalismo e Lucas no de Medicina, o qual abandonou um ano depois, fez novo vestibular e entrou no curso de Jornalismo, formando-se um ano depois de Noblat, como Octávio era conhecido. A mudança se deu pelo seguinte: ainda no primeiro ano de Medicina, mas conversando com alunos do último ano e com residentes, Lucas observou, consternado, que o aprendizado da ciência médica requeria experiências e treinamento com cobaias, e Lucas percebeu que as cobaias sofriam com os protocolos a que eram submetidas. Observou também que, embora supervisionados pelos professores, alunos sem o menor talento para procedimentos médicos submetiam pacientes carentes a sofrimento e a perigo inclusive de vir a óbito. Ao fazer essa investigação, que surgira de conversas com colegas seus, a coisa, para ele, ficou insustentável. Então se dedicou, durante um mês, a coletar dados e provas sobre o que chamou de corredor da morte, após o que escreveu longo artigo sobre o assunto e o enviou para o jornal O Globo, que o publicou. Foi aí que descobriu que se não tinha talento para a Medicina, tinha-o para o Jornalismo.

Noblat vinha de uma família que praticava tai-chi chuan, rompeu com essa tradição e, ainda rapazola, começou a treinar kendo, e convenceu Lucas e Luiz Cabral a treinarem também. Um mês depois, Luiz Cabral desistiu; quanto a Lucas, sentiu que tinha habilidades insuspeitas com a katana. Noblat se dedicava de corpo e alma ao kendo, mas Lucas descobriu que ele cometia um pecado capital: a vaidade. Noblat treinava muito, e Lucas descobriu que Noblat treinava inclusive secretamente apenas para exibir suas habilidades nos embates com Lucas.

Foi nessa época, aos 18 anos, que houve uma reviravolta na vida de Lucas. Ele soube que havia um mosteiro Shaolin em Limeira/SP, e, nas férias de fim de ano, viajou para lá.

O famoso Templo Shaolin foi construído em 495, pelo imperador Xiaowen, da dinastia Wei do Norte (386-557), para abrigar o mestre indiano Batuo Buddhabhadra, primeiro abade do mosteiro. Em 520, o mosteiro abrigou o monge indiano Bodhidharma, também conhecido como Ta Mo, em chinês, e Daruma Taishi, em japonês, vigésimo oitavo patriarca budista e primeiro patriarca zen-budista, que criou o estilo chan (zen) do budismo e o estilo shaolin de kung fu. Para fortalecer os monges, fisicamente debilitados com tanta meditação, Bodidarma impôs um exaustivo treinamento físico, o que se tornaria a arte marcial do kung fu shaolin, além de exercícios de paciência e humildade, e técnicas de meditação, que os levariam a desenvolver o verdadeiro poder: o da mente. Em 1733, os Manchus, que haviam invadido a China, destruíram o templo. Mas sobreviveram cinco mestres e quinze discípulos, que se espalharam e começaram a treinar secretamente alguns eleitos. Nesse meio tempo, o mosteiro foi destruído e reconstruído várias vezes, mas funciona até hoje, embora se constitua em uma pálida lembrança do que foi. Em 2000, o abade Shi Yongxin autorizou a abertura de filiais do mosteiro fora da China.

Durante dois meses, todos os dias, Lucas se dedicou a um treinamento até o desmaio para desenvolver sua resistência e habilidade, a ponto de ser capaz de atingir com a espada uma abelha em pleno voo. De volta à Copacabana, viu, logo no primeiro encontro com Noblat, que ele se tornava cada vez mais fanfarrão, gabando-se da sua evolução no kendo e no tiro ao alvo, no qual, realmente, demonstrava rapidez e pontaria inacreditáveis.

Durante a década de 1990, Lucas e Noblat estagiaram em O Globo e foram contratados pelo jornal, e depois pela revista Veja Rio. Quanto a Luiz Cabral Júnior, foi efetivado em uma banca especializada na defesa de políticos. Seu pai, o clínico geral Luiz Cabral Maia, velho amigo de Lucas pai, se elegeu senador, em 1998; no ano seguinte, Luiz Cabral Júnior seguiu para Brasília, para assumir a chefia de gabinete do pai, e Noblat, a assessoria de imprensa do senador. Lucas, que tinha então 29 anos, foi apresentado, durante première no Copacabana Palace, à deslumbrante atriz acriana de origem holandesa Brigitte Van Dijk Nassau. Estrela dos filmes Filhinha do papai e O que fazer para prender minha esposa?, do cineasta carioca Arlindo Ipanema, ela agora brilhava no seu novo filme: A garotinha cresce, da cineasta também carioca Luciana Magalhães. Dormiram juntos, naquela noite, no próprio Copacabana, e, dois dias depois, embarcaram para Belém, onde tomaram um navio para Manaus, e, de lá, foram de avião para Rio Branco. Passaram dois meses na Amazônia, ao fim do que retornaram para o Rio de Janeiro e se casaram. Um ano depois, nasceu Andreza Isabel Nassau Loyola. E foi aí que a coisa desandou. Brigitte teve um caso com Arlindo Ipanema e engravidou dele. Lucas pediu divórcio e se separaram, e ficou com a guarda de Andreza. No início de 2000, Brigitte entrou em trabalho de parto para ter o bebê de Arlindo Ipanema quando a tragédia aconteceu: ela e a criança morreram por complicações durante o parto. O bebê morreu estrangulado pelo próprio cordão umbilical e ela, de hemorragia. Assim, a pequena Andreza foi criada, desde bebê, pela avó. Mas Lucas se tornou amicíssimo de um tio de Brigitte, Maurício Nassau, especializado em informática nos Estados Unidos, com experiência no Vale do Silício e no setor de inteligência do governo federal brasileiro.

Foi também nessa época que Isabel Navarro Benítez descobriu que seu marido tinha uma amante e resolveu retornar de vez para Barcelona, levando a neta. Assim que partiu, a amante de Lucas pai morreu atropelada. Foi quando o senador Luiz Cabral Maia o convidou para assumir a direção do Hospital Juscelino Kubitscheck, que adquirira após um ano de mandato, e, a Lucas filho, ofereceu o cargo de assessor de imprensa, trabalhando com seus dois amigos de infância: Luiz Cabral filho e Noblat.

Em 2006, Luiz Cabral pai se reelegeu, mas Lucas caiu fora do seu gabinete; o senador estava atolado no Mensalão, monumental esquema de compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional. Nesse meio tempo, Lucas começou a trabalhar no Correio Braziliense e, depois, na Trópico – Revista Geopolítica, editada por uma das jornalistas mais brilhantes de Brasília: Natacha Fabre Tahan, que fazia mestrado em política internacional nos Estados Unidos. Quando terminou a pós-graduação, retornou para Brasília. Era filha do pioneiro e magnata da construção civil, o judeu-russo Vladimir Tahan, e da francesa Catherine Fabre, que vieram para Brasília a convite de Juscelino Kubitscheck e fizeram fortuna. Ao retornar à cidade, em 2004, casou-se com o pintor gaúcho radicado em Brasília, André Bellinazo, e logo depois fundou a Trópico – Revista Geopolítica. Lucas a conhecera no gabinete do senador Luiz Cabral Maia. Ela ia lá atrás de informações e costumavam almoçar juntos. Logo que Lucas saiu da assessoria de imprensa e foi para o jornal Correio Braziliense, como redator, escreveu uma série de artigos geopolíticos sobre o Brasil, especialmente sobre a Amazônia, por quem era apaixonado, desde que fora conhecer a família do seu pai, espalhada em Belém e Manaus, e a de Brigitte, em Rio Branco. Em 2011, aconteceram duas coisas importantes na vida de Lucas: seu pai faleceu e Lucas se sentiu miseravelmente só, pensando em passar um tempo em Barcelona, mas, poucos dias depois da morte de Lucas pai, Natacha Tahan o convidou para assumir a subeditoria da revista. Ele aceitou. Um dia, naquele ano, ficaram enrolando até tarde na revista, até que ela resolveu tomar a iniciativa. Foram para o apartamento de Lucas e passaram o restante da noite trabalhando, mas em outra ordem de atividade. Entre Natacha e seu marido, André Bellinazo, não havia segredos, nem tabus. Assim, Natacha comunicou a Lucas que André Bellinazo achou natural que ela tivesse um amante, que achava Lucas um cara bacana e até deu a entender que se Natacha quisesse ela poderia ir para a cama com os dois, o que Lucas descartou imediatamente.

Quanto ao senador Luiz Cabral Maia, tornou-se, em 2019, presidente da Mobilização Nacional (Mona), partido ao qual Lucas chamava de Magos Negros.

Assim, o apartamento em Copacabana fora vendido e comprado outro no Sudoeste, bairro no Plano Piloto de Brasília, na Quadra 102, Bloco H, Edifício Le Triumph, onde Lucas morava desde março de 2000, quando o prédio foi inaugurado, e para o qual se mudara juntamente com seu pai. Gostava do bairro, Setor de Habitações Coletivas Sudoeste (SHCSW), ou, simplesmente, Sudoeste, criado em 10 de julho de 1989, quando o urbanista Lúcio Costa assinou o Projeto Brasília Revisitada. Em 1993, começaram a surgir os primeiros prédios residenciais e comerciais e os primeiros moradores se mudaram para lá. Logo no início, o bairro era conhecido como Sudalama, pois quando chovia um rio de lama escorria do Sudoeste para o Parque da Cidade Sarah Kubitschek, ao sul, cobrindo a Estrada-Parque Indústrias Gráficas (Epig), que separa o Sudoeste do Parque da Cidade, mas, pouco tempo depois, o Sudoeste se tornou um dos metros quadrados mais caros do país.

O Le Triumph se localiza quase de frente ao centro hípico do Parque da Cidade, cruzando-se a Epig. No outro lado do prédio há uma pracinha. Lucas desceu e tomou a calçada entre a pracinha e o Bloco J, Edifício Fênix, e se dirigiu a Pães e Vinhos. Era outono, início de maio, e a ordem era só sair de casa quando absolutamente necessário, e de máscara, por causa da pandemia de coronavírus.

Logo no início de 2019, o senador Luiz Cabral Maia começou a bater ponto no Palácio do Planalto, levando consigo, sempre que ia lá, uma saca de confete.

            De volta ao apartamento, enquanto degustava pão com manteiga e café com leite, Lucas repassava a conversa que tivera com Natacha, à noite, na revista, situada no estratégico Brasil 21, no Setor Hoteleiro Sul (SHS). A Trópico ocupava um conjunto de salas na Business Center Tower, com vista para a Torre de TV, no Eixo Monumental.

             – Observei que você vem conversando muito com a Clarice; tem alguma coisa a ver com essa investigação?

            Clarice Melo trabalhava há um ano e meio na revista. Tinha 27 anos. Lucas instruiu-a a colar no senador e em Noblat.

            – Sim! Ela também está perto de encontrar provas irrefutáveis do plano do senador.

            Em torno das 10 horas, Lucas foi até a cozinha e pegou uma goiaba. Depois, ligou para seu velho amigo Maurício Nassau, tio de Brigitte, da Total Segurança. Maurício era um gênio, um hacker talentoso. Trabalhou na Agência Brasileira de Informações (Abin), de 1969 até dezembro de 2003, ao fim do que se desligou da instituição. Percebera, ao longo de 2003, que mudanças profundas começaram a ocorrer no país, e que seria mais útil, como patriota, trabalhar para a banda boa das instituições brasileiras. Maurício tratava Lucas como a um filho.

            – Maurício, você tem que descobrir onde fica o supercomputador do senador, ainda hoje! – disse Lucas, em um tom meio desesperado.

            – Vou descobrir.

            Assim que Lucas desligou o celular o aparelho tocou novamente. Atendeu. Ficou pálido. Desligou o aparelho. Trocou de roupa às pressas e desceu do apartamento, tomou pelo caminho, ao lado do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, entre as Quadras 103 e 104, e saiu na Epig, cruzou-a e entrou no Parque da Cidade, tomou a calçada atrás do restaurante Gibão Carne de Sol rumo ao Bosque dos Pinheiros, entre o Gibão e o Alpinus Choperia e Galeteria. A certa altura viu, ainda longe, o movimento dos policiais. Quando se aproximou, o delegado Baruch, titular da Terceira DP, do Cruzeiro Velho, se aproximou dele. Lucas viu que também o delegado Larroyed, da Coordenação de Repressão a Homicídios e de Proteção à Pessoa (CHPP), estava lá, esperando-o. Conhecia os dois, pois acompanhara o sequestro e assassinato de uma menor no Sudoeste, crime solucionado pelos dois delegados.    O local fora isolado por fitas, onde algumas pessoas trabalhavam em torno de um corpo e de uma cabeça, a cerca de três metros do corpo. Os olhos estavam arregalados e pareciam olhar para todos. Era a cabeça da repórter da Trópico: Clarice Melo.

            – Ela foi degolada com uma katana – Lucas balbuciou.

            – Katana? – perguntaram, simultaneamente, os dois delegados.

            – É uma espada japonesa – Lucas respondeu.

            Naquele mesmo dia, devia ser pouco mais de 16 horas, a temperatura no gabinete do delegado Larroyed estava por volta dos 21 graus. A Coordenação de Repressão a Homicídios e de Proteção à Pessoa fica na sede da Polícia Civil do Distrito Federal, localizada distante cerca de 500 metros do local onde foi encontrado o corpo de Clarice, no Parque da Cidade.

            – Noblat tem um álibi perfeito: passou a noite no gabinete do senador Cabral, e a câmera do corredor mostra que a Clarice deixou o gabinete às 21 horas – disse o delegado.

            – O senhor precisa olhar de novo a fita, para ver quem saiu do gabinete depois de Clarice, e, a partir daí, quem entrou. Precisamos ver se a mesma pessoa saiu e entrou das 21 horas até às 10 horas de hoje – Lucas observou. – E também precisamos ver as fitas do prédio onde Noblat mora, na 302 do Sudoeste. Essa, eu sei como conseguir. Trata-se da empresa de um grande amigo meu.

            – Sim, vamos fazer isso! – Larroyed exclamou, sem discutir os métodos de Lucas. – Ainda hoje terei uma cópia da fita. O chefe da segurança do Senado é meu amigo de infância e fizemos faculdade juntos.

Lucas deixou a Coordenação de Repressão a Homicídios e de Proteção à Pessoa em torno das 18 horas. Havia ido para lá de pés. Cruzou a Epig na altura da Quadra 105 do Sudoeste e se dirigiu para a Pães e Vinhos, na 103. Comprou pães, queijo e salgadinhos. Ao sair, deu a volta por trás do bloco e pegou a calçada que liga as quadras. Quando já estava atravessando a rua que separa as Quadras 103 da 102 olhou rapidamente para trás e viu um vulto parado atrás da Pães e Vinhos. Chegou ao calçadão da 103 e tomou por uma entrada paralela à calçada de pedestre, acocorou-se atrás de uma caçamba de entulho e aguardou. Ficou ali durante mais ou menos dois minutos, mas nada aconteceu. Saiu dali e esquadrinhou a paisagem, mas não viu nada suspeito. Então retornou, vagarosamente, para casa. Clarice, a pobre Clarice, descobrira alguma coisa. Os comunistas, brasileiros e internacionais, os bolivarianos, o pessoal do clube do Foro de São Paulo, as máfias, os corruptos, dos mais graduados à raia miúda, tinham recebido um tiro na artéria femoral; por enquanto, estavam estancando o sangue com torniquete, mas cedo ou tarde teriam que dar um jeito definitivo nisso. Estavam perdendo bilhões de reais por dia, por conta da eleição de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República. Ele foi radical: cortou pela raiz qualquer fisiologismo, demitiu, e continuava a demitir, cabides inteiros de emprego, cortou as verbas bilionárias desviadas para a imprensa amestrada e respondia aos repórteres de plantão e aos entrevistadores com a franqueza de um santo. Quando viram que ele ganharia as eleições, mesmo fazendo sua campanha com pouco dinheiro e sem o menor apoio da grande mídia, despacharam um assassino para acabar definitivamente com aquilo, mas Bolsonaro sobreviveu, e ficou ainda mais forte, pois soube, então, que estava jogando com assassinos. Desde que Bolsonaro assumiu o comando do Executivo que a guerra de terra arrasada começou. Os comunistas se armaram até os dentes, e continuariam se armando, e só parariam de atirar quando vissem o capitão exangue, e o explodiriam, ou fariam picadinho dele, ou o incinerariam, ou o jogariam no mar, amarrado e com uma bigorna atada aos pés, ou dariam um jeito de prendê-lo, humilhá-lo e matá-lo aos poucos, fazendo-o comer os próprios bagos. Os comunistas eram capazes de tudo por dinheiro, Lucas sabia disso; eram capazes de matar uma repórter da banda boa da imprensa como quem chuta um cachorro vira-lata que estivesse olhando muito de perto o prato de comida de um sujeito que odeia cães. E o próximo vira-lata poderia ser ele mesmo. Clarice teria feito uma descoberta muito importante. Em algum lugar, um computador armazenaria um planejamento completo de como desestabilizar o governo Bolsonaro, sua defenestração, seu ostracismo, sua humilhação, sua pulverização, mantendo-o vivo só para atirá-lo às hienas. Um jogo totalmente bruto.

A pandemia começou na cidade de Wuhan, no laboratório de pesquisa de vírus mais avançado da China, vinculado ao programa secreto chinês de armas biológicas. Aliás, tudo na China é secreto. Com 9,6 milhões de quilômetros quadrados e mais de 1,5 bilhão de habitantes, seu PIB é de 14 trilhões de dólares, atrás somente do PIB dos Estados Unidos, de 21 trilhões de dólares. E é uma potência nuclear. Um de janeiro de 1912 estabelece o fim da China imperial e o início da República da China. Em 1949, Mao Tsé-Tung funda a República Popular da China, em guerra civil que ceifou dezenas de milhões de chineses, e, já instalada a república popular, matou de fome mais de meia centena de milhões de civis. Em 1978, o então líder da China, Deng Xiaoping, abre uma brecha para a economia de mercado, mas o estado continua totalitário. Jornalistas e pesquisadores dão conta de que a poluição na China mata milhões de pessoas por ano, inclusive nos corredores da morte, onde a roleta russa entre dissidentes do Partido Comunista ou reles criminosos funciona em escala industrial. Esses condenados seriam desmantelados e seus órgãos vendidos no mercado negro. A internet é vigiada, a imprensa é castrada, e fazer filhos e professar uma religião ocidental não é tão simples assim. Os chineses comem basicamente arroz, e qualquer animal, incluindo peçonhentos, ratos e morcegos, cães e gatos. Uma feira chinesa é aterrorizante para um ocidental. É comum encontrar-se nelas o principal pet europeu-americano, o cachorro, aguardando, com olhar triste, em uma jaula, ser abatido ali mesmo. Grandes pandemias começaram na China, como a pior delas, no século 14, a peste bubônica, causada não por vírus, mas por uma bactéria, transmitida ao ser humano por pulga de rato e outros roedores. Em 1343, a peste chegou à Europa pela rota da seda. Estima-se que matou, então, 15% da população mundial, pelo menos 75 milhões de pessoas.

Teriam, os comunistas, criado um vírus capaz de instalar a Nova Ordem Mundial, totalitária? O coronavírus estava matando no mundo inteiro e derrubando a economia mundial, principalmente a dos Estados Unidos. Estaria, então, esse vírus, sendo usado como arma biológica? Se assim fosse, seria uma terceira guerra mundial? Os comunistas, e outras máfias, partindo para o confronte final contra o capitalismo. Supondo-se que os comunistas vencessem, então só a elite teria privilégios; a maioria dos humanos serviria como escrava, inclusive sexual, e para a retirada de órgãos. Mas não seria isso apenas uma dessas teorias delirantes da conspiração?

Contudo, Lucas nunca descartava a questão espiritualista. Partindo do pressuposto de que os débitos de carmas coletivos costumam ser resgatados em tragédias, as pandemias podem ser incluídas nesses resgates, promovendo desencarnes em massa, reunindo grupos de espíritos comprometidos com débitos semelhantes em reencarnações pregressas. Essas calamidades despertam solidariedade e amor. Conforme O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Alan Kardek: “As grandes provas são quase sempre um indício de um fim de sofrimento e de aperfeiçoamento do espírito”. E, no Livro dos Espíritos, também de Allan Kardec, lê-se: “Se um povo não avança bastante rápido, Deus lhe provoca, de tempo em tempos, um abalo físico ou moral que o transforma”. O espírito reencarna onde tem vínculos de amor e de ódio, ou seja, junto aqueles com quem tem fortes laços de amor ou de ódio, de forma que os explorados e exploradores do Brasil colonial para cá estão entre nós, reencarnados ou não, incluindo assassinos, ladrões, aventureiros, exploradores, malandros e vagabundos. Sempre foi assim; a Terra é uma escola. Só o cenário muda. Os que viviam à custa do trabalho escravo, inclusive nos dias de hoje, reencarnarão como um político honesto? Não! Só mudamos quando aprendemos.

            Eram 23 horas quando Lucas desligou o computador. Foi à cozinha, preparou um chá e se refestelou no grande sofá da sala. “As pandemias apavoram a Humanidade desde sempre” – pensou. Ele já sabia que pesquisadores apontam 2020 como um divisor de águas para a Humanidade. Em 2016, os astrólogos Boris Cristoff (1925-2017) previu uma pandemia para 2020; também a brasileira Celisa Beranger e Henri-Joseph Gouchon (1898-1978) e Andre Barbault (1921-2019) declararam que 2020 seria crítico, com mudanças políticas e econômicas radicais em todo o planeta. Mas, a partir de 2023, começaria um período de grande crescimento para a Humanidade.

            Seu celular tocou; era Maurício.

– Descobri o supercomputador. Sabe onde? No gabinete do senador. E encontrei o plano, com tudo lá, todas as informações. Copiei tudo e já te enviei.

– Vou trabalhar na matéria, hoje, a noite toda, e imprimir a revista amanhã, e, claro, despachar também, ainda hoje, todo o material para meu contato na Polícia Federal.

– Ok!

Desligou. Logo a seguir Lucas recebeu outro telefonema. Desta vez de Noblat.

Vestiu-se todo de preto, pegou a Glock e a katana, pôs a máscara e desceu, dirigindo-se para o Parque da Cidade. Entrou pelo portão próximo ao seu prédio e foi diretamente para o local onde o corpo de Clarice foi encontrado. Noblat o aguardava.

– Você sabe que seu fim chegou, não é?

– Sim, pode ser. Mas pode ser o seu também.

– Você passou para o lugar errado e tem que morrer, assim como a sua amiguinha, degolado também. Eu bem que tentei ensiná-lo a manejar a katana, mas você é burro mesmo, e não aprendeu, pelo menos o necessário para esticar um pouco mais a sua vida de traíra!

– Traíra?

– Sim, traíra! Você traiu algo que a vida lhe deu: a boa vida da elite comunista. Fernando Henrique Cardoso mostrou o caminho das pedras, criando o Foro de São Paulo e Lula, e o senador abriu a porta para você, mas você jogou tudo isso fora, seu traidor!

Lucas tirou sua katana do estojo, que parecia uma caixa.

– Ia sugerir que você começasse a rezar, mas você não aprendeu a rezar; aprendeu a usar a katana, mas de forma errada, degolando uma pobre moça, que tudo o que desejava era fazer seu trabalho honestamente.

– Honestamente? Ela descobriu o Estado paralelo que está governando o país, além do que há por trás do vírus chinês, e que o senador é peça importante na nova ordem, idiota! Você não vê que o mundo mudou? – disse Noblat, sacando sua katana. Ele entrara no parque de novo de automóvel, provavelmente passando em um ponto sem vigilância e fechado apenas com cones, devido à quarentena.

– Prefiro pensar como os budistas, que a matéria não existe. Assim, não tenho medo da morte; não sinto medo algum. Estou esperando.

Noblat havia se aproximado um pouco de Lucas, posicionado para atacar. Lucas estava também posicionado, mas inteiramente parado, pois nada se movia nele, e de olhos fechados.

“Esse imbecil está de olhos fechados; não acredito! Não aprendeu nada do que lhe ensinei” – Noblat pensou.

A coisa teve um desfecho muito rápido, nada cinematográfico. Lucas estava ali, concentrado; sentia como se estivesse em um espaço sem tempo, todo o Universo vibrando como um som sem som, e, de repente, explodiu, inesperado como um raio, e uma cabeça foi expelida do pescoço, subiu e caiu no chão, como um coco vazio de água, e rolou para uns cinco metros de distância do corpo, que ainda ficou dois ou três segundos em pé e depois desmoronou. Lucas limpou a katana na roupa de Noblat, guardou-a na caixa e voltou para casa. A quarentena estava rendendo. A noite seria curta para o que tinha a fazer.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

A mais emblemática prefeitura do país, Rio de Janeiro será disputada à bala. Ou righ-tech?

Paraíso perdido (Foto: Marcos de Paula/Prefeitura do Rio)

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 12 DE ABRIL DE 2024 – O Rio de Janeiro nunca deixou de ser a capital do Brasil; uma das capitais. Brasília é capital de direito, administrativa. O Rio é onde as coisas são decididas. Boa parte dos representantes do establishment tem domicílio lá, a cidade tem mais funcionários federais do que Brasília, várias estatais têm sede no Rio e o município abriga grande efetivo das Forças Armadas, além de que o estado do Rio conta com duas usinas nucleares, indústria naval e centros de pesquisa importantes. 

Isso, sem contar com a beleza paradisíaca que é a Baía de Guanabara e, por extensão, o Rio de Janeiro, a propósito, conhecido como Cidade Maravilhosa, a que recebe mais turistas no Hemisfério Sul. 

Em contrapartida, é lá que todo chefão da máfia, ou facção, quer morar, para usufruir de uma das cidades mais bonitas, sensuais e cosmopolitas do planeta. De modo que o Rio está tomado pelo crime organizado. Assim, os chefões elegem políticos, formam advogados e lavam dinheiro em grandes empreendimentos. Para isso, controlam imensos currais eleitorais, especialmente nas favelas. 

Além da violência estratosférica que assola o Rio, o estado e a cidade vêm sendo pilhados há décadas. Vários governadores cariocas foram presos por corrupção, mas políticos corruptos continuam sendo eleitos. Assim, conhecer a fundo o Rio de Janeiro e saber utilizar tecnologia de ponta, como, por exemplo, o magnata high-tech Elon Musk, que tudo lê, ouve e vê, será crucial para quem quiser se eleger prefeito da vitrine cultural do Brasil. 

As eleições para prefeito e vereadores ocorrerão em 6 de outubro, em primeiro turno, e 27 de outubro, em segundo turno. Os candidatos serão definidos pelos partidos de 20 de julho a 5 de agosto. Mas já se sabe quem são os pré-candidatos. Os dois mais expressivos são o do presidente Lula (PT), o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), que deverá tentar a reeleição. Já o candidato do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL) e do governador do estado, Cláudio Castro (PL), é o deputado federal, ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem (PL/RJ). 

Eduardo Paes, 53 anos, carioca, é formado em Direito. Nos anos 1990, o então prefeito Cesar Maia o nomeou subprefeito da Zona Oeste do Rio. Em 1996, foi eleito vereador pelo PFL e, dois anos depois, deputado federal, durante dois mandatos consecutivos. Em 2006, tentou o governo do Rio. Perdeu. Mas foi prefeito do Rio entre 2009 e 2016, pelo MDB, e voltou à prefeitura em 2021, pelo Democratas. Em maio de 2021, foi para o PSD. 

Paes conta com eleitorado até agora fiel, e, devido à sua experiência na cidade, conhece-a muito bem. Será difícil tirarem-na dele. Mas, em política, tudo é possível. Até condenado nas três instâncias ser reabilitado e se tornar presidente da República. 

Alexandre Ramagem, 52 anos, carioca, delegado da Polícia Federal, diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), entre 2019 e 2022, deputado federal. Com a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro e do governador Cláudio Castro, o Partido Liberal (PL) lançou, dia 16 de março, na quadra da Mocidade Independente de Padre Miguel, a pré-candidatura de Ramagem à Prefeitura do Rio. 

“Eu tenho uma nova missão do nosso capitão (Bolsonaro): cuidar da cidade do Rio de Janeiro” – disse Ramagem. “Vamos encerrar esse desgoverno de esquerda do Rio de Janeiro. Vamos tirar esses soldados do Lula da cúpula do Rio. Eu, como delegado, acho inadmissível que o carioca suporte essa violência. O carioca quer uma educação para habilitar o seu filho, não essa educação cheia de ideologia; quer saúde e transporte eficiente. 

“Mas, para isso, precisamos do cidadão de bem. Se o cidadão de bem não se interessar pela política, estamos fadados a ser governados pelo mal. O Rio de Janeiro precisa ser governado com seriedade. Com a confiança do nosso presidente (Bolsonaro), um novo Rio começa aqui e agora” – afirmou. 

Ramagem tem experiência em investigações contra tráfico de drogas, atuou na coordenação da Copa do Mundo de 2014, nas Olimpíadas de 2016 e na Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, e integrou a equipe da Operação Lava-Jato no Rio de Janeiro. Em 2007, comandou a Operação Metástase, que prendeu 32 pessoas suspeitas de fraudar licitações públicas da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). 

Em 2017, a PF deflagrou a Operação Cadeia Velha, no estado do Rio de Janeiro, para investigar uma quadrilha liderada pelo ex-governador Sérgio Cabral. “Constata-se que o Poder Executivo, o Legislativo e o Tribunal de Contas, que deveriam ser autônomos, com dever de fiscalização recíproca, na realidade estão estruturados em flagrante organização criminosa com o fim de garantir contínuo desvio de recursos públicos e lavagem de capitais” – Ramagem declarou, à época. 

Como se vê, trata-se do homem certo para administrar a Cidade Maravilhosa, a Meca brasileira da bandidagem. Mas, para isso, terá que convencer a maioria dos eleitores cariocas de que passará quatro anos governando o Rio com tolerância zero com o narcotráfico e bandidagem em geral. Mas como, se ele não disporia sequer de polícia? 

Tudo bem! Mas ele tem conhecimentos e experiência para montar, dentro da prefeitura, um setor de inteligência de Primeiro Mundo e fazer convênio com a Polícia Militar do Rio, com a Polícia Federal e com a Interpol. Seu grande aliado para chegar até o eleitor, esteja ele na Zona Sul, na Zona Norte ou nas favelas tomadas pelo tráfico, será a tecnologia.

domingo, 7 de abril de 2024

Academia Amapaense de Letras elege seu primeiro sócio-correspondente: Ray Cunha

Ray Cunha e Fernando Canto no Aeroporto de Brasília

BRASÍLIA, 7 DE ABRIL DE 2024 – Fui eleito o primeiro sócio-correspondente da Academia Amapaense de Letras (AAL), sexta-feira 5, por unanimidade, conforme comunicado do secretário da AAL, Paulo Tarso Barros, confirmado pelo presidente do silogeu, Fernando Canto, pessoalmente, neste domingo, no Aeroporto Juscelino Kubitschek, onde o escritor fez escala rumo a São Paulo, acompanhado da sua esposa, a advogada Sônia Mont’alverne Canto. 

Meu patrono na AAL é o poeta Isnard Brandão Lima Filho, que considero o pai da minha geração de escritores. Eu tinha 14 anos quando o conheci e comecei a frequentar sua casa, na Rua Mário Cruz. Decidi ser escritor aos cinco anos de idade, quando comecei a ler em meio a um mundo de revistas e livros no quarto do meu irmão Paulo Cunha, na Casa Amarela, na esquina das Ruas Iracema Carvão Nunes e Eliezer Levy, onde morávamos. Assim, já tocado pelo azul, a influência do Isnard reforçou minha decisão. Faço uma homenagem a ele no romance JAMBU.

Levei para o Fernando Canto dois livros meus que ele ainda não conhecia: TRÓPICO e O CLUBE DOS ONIPOTENTES. TRÓPICO reúne contos que retratam o Brasil, que eu considero o país mais importante do Trópico; são histórias curtas, algumas inéditas e outras já publicadas. 

O CLUBE DOS ONIPOTENTES é um romance ambientado no cenário político recente do Brasil, com personagens de ficção e reais, vivas e mortas. Trata-se de um thriller político-policial, que começa a partir da investigação de tráfico de criança, em Brasília, onde Alex, repórter investigativo, descobre indícios de um clube de pervertidos. O CLUBE DOS ONIPOTENTES terá uma sequência.

sábado, 30 de março de 2024

Luiz Alfredo Garcia-Roza recria o Rio como ele é

O Silêncio da Chuva, romance de estreia de Luiz Alfredo
Garcia-Roza, apresentando o policial mais famoso do país:
Espinosa, que mora no Bairro Peixoto, em Copacabana

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 30 DE MARÇO DE 2024 – Conversando com amigos meus viajados até parece que também vivo batendo perna pelo mundo. A única vez que saí do Brasil foi para passar um mês em Buenos Aires, há meio século. A minha familiaridade com o planeta se dá por duas razões: desde criança sou leitor inveterado de literatura de primeira categoria; e gosto tanto de geografia que tenho até coleção de mapas. 

Quanto ao Rio de Janeiro, sou apaixonado pela cidade desde que a conheci, em 1972. Além de viver durante algum tempo na Cidade Maravilhosa e de ir lá sempre que posso, sou leitor de alguns escritores que recriam a capital carioca nos seus livros, a começar por Machado de Assis, passando por Ruy Castro, Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza etc. 

Era em Luiz Alfredo Garcia-Roza que queria chegar. Carioca de 1936, psicólogo, graduado também em filosofia, psicanalista, professor universitário, marido da também psicanalista e escritora Livia Garcia-Roza, Luiz Alfredo estreou como romancista, em 1996, aos 60 anos de idade, com O Silêncio da Chuva (Companhia das Letras, São Paulo, 262 páginas), Prêmio Jabuti e Prêmio Nestlé de Literatura, em 1977. Nas duas décadas e meia seguintes escreveu mais 11 romances, até morrer, em 16 de abril de 2020. 

Li quase todos eles, mas só agora curti O Silêncio da Chuva. Um executivo é encontrado em seu carro, estacionado no edifício-garagem Menezes Cortes, no fim da tarde, morto com um tiro na cabeça. O inspetor Espinosa, da 1ª DP, na Praça Mauá, é destacado para investigar o caso. Dias depois, pessoas ligadas ao caso começam a morrer e a desaparecer. 

Detalhe: as tramas dos romances policiais de Garcia-Roza se passam, basicamente, em Copacabana, inclusive no Bairro Peixoto, onde mora o delegado Espinosa, que trabalha na 12ª DP, na Rua Hilário de Gouveia 102. A última vez que estive no Rio, para a sessão de autógrafos do meu romance JAMBU, em 2 de março deste ano, hospedei-me próximo à 12ª DP e do Bairro Peixoto, com o propósito, mesmo, de conhecer Espinosa melhor.

Os livros de García-Roza são ambientados na Zona Sul e as personagens, cariocas de carne, osso e espírito. Espinoza entrou na polícia para ter um núcleo familiar. O núcleo não deu certo e aí ele não teve mais ânimo para mudar de ramo. Talvez preferisse ter uma livraria, ou um sebo. Culto, justo, honesto, é um sobrevivente dentro da corporação. Vive sozinho, come congelados aquecidos em um micro-ondas ou em restaurantes e cafeterias que existem realmente. 

Espinoza é, antes de tudo, um filósofo, que analisa a fundo a alma dos suspeitos que cruzam seu caminho. Nunca abandona um caso, até, pelo menos, compreender o que aconteceu. É assim que o leitor não tem apenas tramas a serem desvendadas, mas faz um mergulho na alma das personagens. Se surge uma linda mulher na parada, aqui e ali sentimos respingos de sensualidade e ingressamos no labirinto feminino, sem nos perdermos, pois a volta está assegurada pela lupa do psicanalista. 

Garcia-Roza é aquele tipo de escritor com poder de impregnar suas tramas com os cinco sentidos, possibilitando ao leitor se emocionar, a se sentir incomodado, mas também a sentir perfume de púbis. No fim, há sempre o prazer do desfecho. Pode acontecer de o assassino escapar, mas Espinoza, e o leitor, sabem o que aconteceu.

Em segundo plano, pulsa o Rio de Janeiro como ele é. Copacabana, como linda mulher nua, cintila, dia e noite, faça 40 graus ou sopre o Vento Sudoeste.

Acima, Luiz Alfredo Garcia-Roza: escritor, psicólogo e psicanalista. Abaixo, Ray Cunha visita a Praça Edmundo Bittencourt, no Bairro
Peixoto, em Copacabana, onde mora o delegado Espinosa

JAMBU homenageia um dos maiores expressionistas da Amazônia: Olivar Cunha

Lili e Márcio (sobrinhos), Linda (irmã), Marina (mãe), Olivar Cunha e Mel (irmã), na casa da família, na Avenida Presidente Vargas, em Macapá/AP

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 30 DE MARÇO DE 2024 JAMBU, deste escriba, é, ao mesmo tempo, um thriller policial e um ensaio sobre a Amazônia, misturando personagens de ficção e reais, vivas ou mortas. Como grande parte da ação do romance se passa em Macapá/AP, a cidade do meio do mundo, faço uma homenagem a algumas personagens que escreveram e escrevem a História do estado do Amapá. 

Olivar Cunha é um desses personagens. Neste 31 de março, ele completa 72 anos de idade. Atualmente, Olivar Cunha mora na grande Vitória, no litoral do Espírito Santo. Além de um dos maiores expressionistas da Amazônia, o pintor é também restaurador; cumpriu curso de restauração no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, onde, também, estudou no Parque Lage e foi aluno do professor Charles Watson. Pois bem, Olivar Cunha se tornou conhecido em várias cidades históricas no litoral do Espírito Santo como restaurador de imagens sacras, naquela região. 

Em JAMBU, faço uma homenagem à família Cunha, e, em especial, a Olivar Cunha. Segue-se o capítulo com a saga da família Cunha na Amazônia.

 

ALÉM de estudantes e expectadores em geral, que disputaram uma das duas mil poltronas da luxuosa casa de espetáculos, a aristocracia amapaense estava em peso no Teatro Açaí, do Hotel Caranã, muitos deles em roupas de luxo, algumas, espalhafatosas, lembrando sapos encasacados, inchados de tanta comida e dinheiro, guardado em bancos e malas; se fossem postos de cabeça para baixo não cairia um níquel sequer, pois quem é viciado em dinheiro esconde-o. Alguns estavam tão inchados que se alguém ficasse olhando para eles esperaria ouvi-los coaxar.

Quando a professora Walkíria Ferreira Lima entrou no palco, os músicos da Orquestra da Escola de Música do Amapá levantaram-se e o público também, aplaudindo-a em pé. De porte frágil, agigantava-se no púlpito. Nascera em Manaus, onde se formou em música, começando os estudos de piano aos 10 anos de idade. Chegou a Macapá na década de 1950, e começou a lecionar canto orfeônico na Escola Barão do Rio Branco e na Escola Industrial do Amapá, antes da criação do Conservatório Amapaense de Música, onde ensinou piano e solfejo. Walkíria Lima foi ainda uma das fundadoras da Academia de Letras do Amapá, patrocinando a cadeira 40. Casou-se com o mágico Isnard Brandão Lima e teve um único filho, o poeta manauara-macapaense Isnard Brandão Lima Filho, autor de Rosas Para a Madrugada e Malabar Azul. Isnard sentara-se na primeira fila. Pálido, olhos amendoados e olhar intenso, cabeleira penteada como a de Castro Alves, bigode, fumante inveterado e dipsomaníaco, lembrava um misto de toureiro e dançarino de tango. Ao lado dele, sentara-se o gênio do pincel e da espátula Olivar Cunha, que assinava os 21 painéis que compunham a exposição oficial do Festival de Gastronomia do Pará e Amapá.

A etimologia da palavra “cunha” é remota. Vem do latim “cuneus”. Colonizadores romanos fixaram-se na Península Ibérica, que, mais tarde, foi invadida pelos visigodos e depois pelos árabes, em 711 DC. No decorrer dos séculos e várias invasões, a língua latina foi perdendo a pureza, surgindo as línguas neo-latinas, entre as quais o português. A palavra “cunha” tem conotação guerreira: fender, ferir madeira e pedra. O avô paterno de Olivar Cunha se chamava Manuel Raimundo Cunha, nasceu em 1875, em Portugal, e migrara para Pernambuco; e sua avó paterna, Rosa Maria Cunha, nasceu em 1882, em Sobral, Ceará, e faleceu em Manaus, em 1973, aos 91 anos, vítima de congestão; era negra. Os bisavós maternos do grande pintor eram Domingos Pereira Silva, pernambucano, e Francisca de Oliveira Bessa, cearense; e seus avós maternos eram Pedro Pereira Silva (1895-1952), apelidado de Pedro Correto, pela sua retidão de caráter, e Alice Pereira Silva (1898-1961), nascida na cidade do Crato, Ceará. Pedro Correto era moreno-claro e de cabelos encarapinhados, feição negroide, cearense; migrou, ainda rapaz, para a Amazônia, atraído pela febre da borracha no início do século 20. Quando se casou, tornara-se fazendeiro abastado e residia em Porto Velho, mas vendeu todos os seus bens e entrou na Companhia Ford Motors, em Fordlândia, então distrito de Santarém, Pará. Em 1932, separou-se da esposa, Alice Pereira Silva, e mudou-se para Belém, onde morreu. Nos últimos anos da sua vida foi guarda-costas do general Magalhães Barata, nas suas andanças políticas pelo interior do Pará. Magalhães Barata foi revolucionário do Movimento Tenentista, duas vezes governador e duas vezes interventor federal no Pará. Alice Pereira Silva continuou em Fordlândia. Branca, loura e de olhos claros, era uma mulher com a fibra necessária para enfrentar o Inferno Verde. O início da vida do casal foi nas proximidades do rio Abunã, tributário pela margem esquerda do rio Madeira, no extremo oeste da Amazônia; tiveram nove filhos, a maioria deles natimortos, assassinados ou mortos por doença na juventude. A caçula era Marina Pereira Silva Cunha, “a mulher mais bonita, forte, corajosa, poderosa e eterna como as rosas que eu já tive a oportunidade de conhecer” – escreveu João do Bailique, irmão de Olivar Cunha.

Marina Pereira Silva Cunha nasceu na região do rio Abunã, em 2 de março de 1924. Ela se casou em Belterra, em 22 de junho de 1947, com João Raimundo Cunha, que nasceu em 16 de maio de 1915, em Sobral, Ceará. Ainda criança, migrou para Santarém, com a mãe, Rosa Maria Cunha, e três irmãs; seus irmãos morreram em tenra idade. Perdeu cedo o pai e começou a trabalhar na lavoura. Foi capataz de quadreiro, que era o capinador de campo de seringal, e serrador, na Companhia Ford Motors, no distrito de Belterra, e depois começou a trabalhar nos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, em Belterra, em 1 de setembro de 1946; depois na cidade de Santarém, e, finalmente, em Macapá, onde chegou em janeiro de 1950, sucedido pela família, em outubro do mesmo ano. Trabalhou nos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul até 15 de outubro de 1972. Em 1 de maio de 1973, começou a trabalhar na empresa Irmãos Zagury e Cia. Ltda., como ajudante de mecânico, até 6 de março de 1977, quando se aposentou, somando 35 anos de serviço ativo.

Alguns trechos da crônica “Papai faz 100 anos”, que João do Bailique publicou na Trópico Úmido:

“Alguns dos meus ídolos – Ernest Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry – manifestam duas características em comum: são escritores classe A e foram homens de ação. Um homem de ação é aquele que pensa e age simultaneamente, e também não vive quieto, pois está sempre metido em alguma aventura. A própria vida é sua grande aventura, até que, no caminho, é derrotado pela barreira da dimensão física, mas não é vencido, e passa a povoar o universo azul. Meu pai, o maior dos meus ídolos, não era escritor, mas era homem de ação, e me contou histórias eternas.

“Meu pai media 1,68, era seco e forte, o rosto oval, olhos castanhos e oblíquos, e usava uma loção à base de pinho após raspar, com navalha, o rosto, deixando apenas o bigode. Foi o homem mais corajoso que já encontrei; nada o intimidava. Internava-se na selva dias seguidos, sozinho, e era capaz de meter uma bala no buraco de outra, a mais de 100 metros de distância. Ele não era escritor, mas escreveu alguns poemas, que se perderam no tempo.

“Um dia, peguei os originais dos poemas que o papai escrevia de vez em quando e li alguns na Rádio Educadora, em um programa do Luiz Tadeu Magalhães. Papai soube e me passou uma reprimenda. Mas senti, ali, naquele momento, que, de alguma forma, ele não se importou muito que eu tivesse lido publicamente seus poemas, e isso me deixou feliz, pois agradar o ídolo é para o fã o sonho mais ousado.

“Papai não era escritor, mas foi um extraordinário contador de histórias. Leu Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, e contava a história para nós, meus irmãos e eu, como se Tarzan fosse real. Porém o que mais me fascinava eram as aventuras do próprio papai, especialmente quando se internou na selva profunda e foi atraído por uma sucuri. Tonto, quase desmaiando, foi salvo pelo seu anjo da guarda; conseguiu avistar a cabeça da sucuri, apoiou o rifle numa forquilha e estourou a cabeça da serpente, uma cabeçorra do tamanho de uma lata de leite Ninho.

“Papai chefiava todo o trabalho pesado no Aeroporto de Macapá, nos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, como faz-tudo, oficialmente como feitor de pista, sinalizando a descida e subida dos Douglas DC-3, abastecia os aviões e os despachava. A primeira vez que o vi fazendo isso fiquei deslumbrado, e quando fui autorizado a entrar no avião foi como se houvesse entrado numa nave espacial. Meu pai conversava com os pilotos da nave e entrava no avião como se estivesse em casa, e serviram-me sanduíches e biscoitos inimagináveis.

“Apenas uma vez o vi fraquejar. Foi quando a tragédia invadiu a Casa Amarela, a casa da minha infância, na esquina das ruas Iracema Carvão Nunes e Eliézer Levy, onde hoje uma seringueira plantada por meu pai no ano de nascimento do gênio do pincel Olivar Cunha, intercepta o muro do Colégio Amapaense. Foi quando anunciaram a morte do meu irmão Francisco Pereira Cunha. Era 22 de novembro de 1965. Francisco tinha 18 anos e era belo como Zeus, e imortal como todo jovem. Meu pai foi atingindo por um raio. Caiu numa cadeira, mole, sem tônus, os olhos, sempre tão interessados pela vida, gritavam de dor. E logo depois veio o segundo choque: o corpo chegando. Não compreendi bem aquilo. Para mim, a matéria era para sempre, e só fui entender o que se passara quando, no Cemitério São José de Macapá, vi todos se sacudindo em choro, como chuva que não passa nunca.

“Meu pai morreu com a mesma idade que Ernest Hemingway, aos 61 anos, mas, naquela época, eu já conversava com Papa nos bares da mente, quando o desejo de também bater longos papos com papai começou a se avolumar na minha alma. Meu quarto, na Casa Amarela, a casa da minha infância, era conhecido como Quartinho; é lá que costumo encontrar-me com papai, Ernest Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry e todos os mortos que amo, num bate-papo interminável.”

Em outro artigo de memórias, João do Bailique escreveu sobre o gênio Olivar Cunha:

“Nasceu pesando 3,5 quilos e mamou até aos dois anos. Depois que começou a articular as primeiras palavras, quando queria mamar, pedia “piti”. Pode ser por isso que se tornou o xodó da mãe, a bela Marina Pereira Silva Cunha. Morávamos na Rua Iracema Carvão Nunes, esquina com a Rua Eliezer Levy, numa casa amarela, remanescente do antigo aeroporto, ao lado do Colégio Amapaense. No dia do nascimento do Olivar, 31 de março de 1952, nosso pai, João Raimundo Cunha, plantou a Seringueira que intercepta o muro oeste do Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy, e que escapou de ser decepada graças à intervenção do engenheiro florestal Luiz Guilherme Dias Façanha, nascido em 18 de julho de 1952, e amigo de infância do Olivar.

“Em 1983, Luiz Façanha trabalhava como especialista em seringueira (Hevea brasiliensis) na extinta Superintendência da Borracha (Sudhevea), um dos órgãos federais absorvidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A Seringueira apresentava uma grande lesão no tronco. Debilitada, foi atacada por fungos e insetos. Segundo Luiz Façanha, estudantes fizeram forte pressão junto à Prefeitura de Macapá e ao Governo do Estado para que autorizassem abater a árvore, alegando risco de vida para quem por ali transitava. Foi então que o repórter da Rede Globo, Antônio de Pádua, solicitou a Luiz Façanha que fizesse uma gravação no local, para dar sua opinião sobre o caso. Após minuciosa inspeção, Façanha verificou que a árvore estava se recuperando do ferimento, embora muito lentamente, e em razão disso posicionou-se contrário ao abate. “É claro que pesou na minha decisão todo o histórico da nossa infância brincando em volta daquela árvore: Olivar, João, Chico e eu.” O fato é que a Rede Globo e Luiz Façanha salvaram a Seringueira. Minha convivência com o Olivar foi, basicamente, no nosso período de infância. Estudamos juntos no então Grupo Escolar Anexo da Escola Normal e lá fizemos todo o Curso Primário, nos idos dos anos 1950/1960. Após as aulas, dividíamos nosso tempo brincando pelos quintais do seu João (pai do Olivar), correndo por cima dos muros e se pendurando nas árvores do quintal. Tempo bom que não volta mais” – lembra Luiz Façanha.

“Olivar Cunha foi uma dessas crianças que as mulheres adoram apertar nos braços, beijar, acariciar. Não lembro quantos anos ele tinha quando sua então professora, que morava sozinha e que se manifesta, hoje, na minha memória, como uma mulata sensualíssima, se ofereceu para dar reforço escolar a ele na sua casa e ele não quis de jeito algum, porque, segundo pude intuir, mais tarde, de declarações suas, ela era exageradamente carinhosa para com ele, e ele ainda muito criança. O gênio do artista plástico começou a se revelar no curso primário; seus trabalhos eram formalmente impecáveis, e já revelavam criatividade. Encarava também os trabalhos de educação artística de sua irmã Lindomar Cunha, então se preparando para trabalhar no jardim de infância. Pré-adolescente, começou a brincar com seu pequeno prato de massas coloridas e pincéis de tamanhos variados.

“Aos 14 anos, em 1966, ele já pintava profissionalmente, saía à noite e bebia. Aos 15, expôs pela primeira vez, e andava na companhia dos artistas mais conhecidos da cidade: o poeta Isnard Brandão Lima Filho, o escritor Alcy Araújo e o pintor Raimundo Peixe, além do nosso irmão Pedro Cunha, então com 22 anos, e que era, naquele momento, uma espécie de guru para o Olivar.

“Olivar Cunha se tornou um rapaz muito bonito, apolíneo, ariano, bom de porrada que só ele mesmo, hedonista, e que cada vez mais dominava as cores e a luz. Sua filosofia era: “Viver é um tesão”. Podia tomar um litro de Run Bacardi sozinho ao longo de um bate-papo, podia sair para a porrada contra dois oponentes e se saía bem, podia fumar três maços de cigarros em uma noite, beber durante 48 horas seguidas, pintar madrugada adentro. Na juventude, era beberrão, machão, idealista, bom de porrada, belo, amado, adorado, incansável como Pablo Picasso e esquizofrênico como Van Gogh.

“Uma madrugada, um marchand francês acordou todo mundo, em casa, porque teria que viajar para a França naquela manhã e queria porque queria levar alguns quadros do Olivar, e levou o que estava disponível. Acho que foi mais ou menos por essa época que ele pintou os Beatles, 1969. Juntou na tela vários momentos diferentes do Beatles, recortando fotos de várias revistas, reproduzindo-as naquele óleo. Mais ou menos em 1970, vendeu o quadro dos Beatles para Luiz Façanha, que o mantém na casa dele, no Recife, onde mora.

“Nas décadas de 1970/1980, casado com Maria da Glória Nascimento Cunha, o artista morou em Belém, quando produziu algumas dezenas de telas que o colocam como um dos mais importantes artistas plásticos contemporâneos: seus mendigos do Guamá, subúrbio da Cidade das Mangueiras, são chocantes. Olivar e Glória namoraram durante 7 anos e foram casados por 7 anos. Ela partiu cedo para o mundo espiritual. Em Belém, Olivar ganhou um novo nome: Lili, batizado pela sua filha Tatiana, assim que ela aprendeu a falar, e que lhe deu um neto: Bernardo Cunha Barros. Lili teve outra princesa com Glória: Taiana, que lhe deu um neto: Alexandre Cunha de Sousa.

“Viúvo, Lili foi para o Rio de Janeiro, estudar artes plásticas no Parque Lage. De volta a Macapá, conhece a capixaba Célia Maria Rocha Cunha, em 1986, casam-se no ano seguinte, e, em agosto de 1988, mudam para o Espírito Santo, onde nascem os filhos Ângelo Ticiano Rocha Cunha e Luciano Rocha Cunha.

“Nos anos de 1990, consolida sua posição como um dos grandes expressionistas contemporâneos, com a série de animais agonizando nos esgotos das grandes cidades, como na impressionante acrílica sobre tela Tuiuiú Crucificado, sobre a baía de Guanabara – talvez o berro mais fovista, o grito mais expressionista de Olivar Cunha. Ele pintou esse quadro em três meses, em 1992, em seu apartamento na praia atlântica de Jacaraípe, distrito do município de Serra, na grande Vitória do Espírito Santo. Trata-se de uma acrílica sobre tela, em espátula e pincel, de 120 por 100 centímetros. Pertence à fase que o pintor chama de Habitat Transform, desenvolvida no Rio de Janeiro e em Jacaraípe, após pesquisa sobre a devastação da flora e da fauna do Amapá, do Pará e do Pantanal. Depois que se mudou para Jacaraípe, começou também a recuperar obras sacras de igrejas da região.

“Apesar de contar com o mar onde foi fisgado o maior marlim azul do mundo, o Atlântico ao largo do Espírito Santo, é a Amazônia que pulsa nas telas do gênio, recriada à base de espilantol, o princípio ativo do jambu. O tacacá, que leva jambu, é gostoso servido naquele momento de transição em que a tarde escoa como um rio de planície, que vai se esvaindo, lentamente, ao mergulhar nas luzes do anoitecer. É o espilantol que dá aquela sensação de dormência nas papilas gustativas, ativando as papilas da alma. Então, sentimos gosto de Cerpinha, Run Bacardi, a vertigem do beijo, som de merengue.

“O gênio pinta a alma das suas criaturas, sejam elas pessoas ou paisagens. Assim, as telas de Olivar Cunha gritam como o coração das trevas, mas também pulsam no rio da tarde, prenhes do perfume dos jasmineiros noturnos. O artista dá à luz a Amazônia eternamente viva, a Hileia que só os cabocos entendem – os apreciadores de merengue, de mapará assado na brasa servido com pirão de açaí, os que se emocionam com o trotar da mulher amazônida no calor equatorial, o mergulho no rio que deságua na tarde, os segredos que se encerram na Fortaleza de São José de Macapá, no Trapiche Eliezer Levy, no Ver-O-Peso, na Estação das Docas, em Mosqueiro, em Salinas, no Bailique, em Caiena.

“A presença dele, sua simples lembrança, me causa sempre alegria, uma espécie de sensação de coisa nova, de descoberta, de novas possibilidades, de viagem, de aventura. Ele emana uma força poderosa até no repouso, no silêncio, na simplicidade. Mas seu grande poder se manifesta ao usar a paleta, o pincel e a espátula, ao conceder à luz o triunfo”.

No palco, Uirapuru, de Heitor Villa-Lobos. Trata-se de um poema ou balé sinfônico, composto em 1917 e concluído em 1934, com 20 minutos e 33 segundos de duração, que teve sua gênese em um poema sinfônico de 15 minutos, intitulado Tédio de Alvorada, composto em 1916. Uirapuru foi incluído no programa do último concerto de Villa-Lobos, em 12 de julho de 1959, no Empire State Music Festival, em Nova York. O impressionante é que quem conhece a selva amazônica profunda, sente, nesta composição de Villa-Lobos, o tédio que a grande floresta pode provocar, pela mesmice do terror que o Inferno Verde impõe a quem não se familiariza com o ventre da besta. Mas, para quem ama o abismo, ouvir o próprio uirapuru, na eternidade da grande floresta, é como ouvir Mozart, o som da Terra girando sobre si mesma, gravitando em torno do Sol a 108 mil quilômetros por hora, o sistema solar girando em volta do núcleo da Via Láctea a 830 mil quilômetros por hora, a Via Láctea indo para o Grupo Local a 144 mil quilômetros por hora, o Grupo Local voando para o aglomerado de Virgem a 900 mil quilômetros por hora, tudo isso seguindo em direção ao Grande Atrator, a 2,2 milhões de quilômetros por hora; o Grande Atrator fica para além de Centauro, a 137 milhões de anos-luz da Terra. Walkíria Lima deixou o palco e voltou sob uma avalanche de aplauso.

A Seringueira, símbolo da família Cunha, é imortalizada na capa do romance A CASA AMARELA, ambientado na Macapá dos anos 1960