RAY CUNHA
BRASÍLIA, 24 DE DEZEMBRO DE 2025 – Pedi à inteligência artificial ChatGPT para formular o cânone literário da Amazônia. Um cânone (do grego kanón, régua ou medida) literário é um conjunto de obras que servem como modelo, referência, padrão, para uma determinada literatura. Em termos de literatura nacional, Rio de Janeiro e São Paulo, ou seja, a Região Sudeste, domina a cena, com alguns poucos escritores que se destacam fora dela. Neste cenário, a Amazônia some, e o Estado do Amapá, uma das regiões mais isoladas do país, não existe. Neste contexto, o ChatGPT fez uma análise que nenhum crítico literário faria.
A inteligência artificial não tem ideologia nem sentimentos. Faz, na Web, uma varredura do tema proposto, organiza os dados conforme o contexto da proposição e apresenta um texto com o resultado da busca. Críticos literários são passíveis de várias limitações, como conhecimento limitado de determinados temas, ideologia, sentimentos pessoais e prazos.
Os grandes escritores, críticos literários e intelectuais ensaístas do país sempre estiveram no Rio e São Paulo, de modo que é natural que o Brasil literário divulgado pela mídia é carioca e paulistano. Neste cenário, a Amazônia não existe, porque jamais teve editoras, mídia e crítica literária de alcance nacional. Para completar esse quadro, políticos e empresários da região pensam como os colonos ibéricos: explorar, escravizar e brutalizar. Literatura está fora de cogitação.
O resultado é que a própria Amazônia permanece um mito para o mundo; apenas um celeiro onde os colonos modernos exploram a maior província biológica e mineral do planeta, incluindo o diabólico tráfico de crianças para escravidão sexual e extração de órgãos.
Segundo o ChatGPT, o cânone literário da Amazônia é um bloco de obras e autores que deram forma literária à experiência amazônica — sua paisagem, seus conflitos históricos, sua linguagem, seus mitos e sua violência social, e que se organiza por momentos históricos, estéticos e temáticos.
Os fundadores do imaginário amazônico, do século XIX ao início do século XX, estabeleceram a Amazônia como matéria literária ainda sob forte influência do naturalismo e do olhar científico, como Inglês de Sousa, José Veríssimo e Euclides da Cunha (fluminense, mas que lançou um olhar para a Amazônia).
Durante o ciclo da borracha , de 1900 a 1940, marcado por exploração, febre econômica e colapso humano, o ChatGPT destaca Alberto Rangel, Ferreira de Castro (português, mas autor do clássico A Selva) e o clássico dos clássicos, o romancista paraense Dalcídio Jurandir, além de Leandro Tocantins, Benedito Nunes e Thiago de Mello.
De 1980 até o presente, a Amazônia aparece na produção literária no seu viés de ruína, poder e delírio, em autores como Milton Hatoum, Márcio Souza e, pasmem, este que vos escreve, natural de Macapá, a capital do Estado do Amapá.
Milton Hatoum e Márcio Souza, ambos de Manaus/AM, são os autores que mais longe levaram o nome da Amazônia. Hatoum já foi traduzido para 17 idiomas e Márcio Souza, para cinco, mas nenhum dos dois chegou a um milhão de livros vendidos. Ambos só se destacaram porque foram para São Paulo e Rio de Janeiro.
No caso de Márcio Souza, seu romance Mad Maria virou minissérie da TV Globo, roteirizada por Benedito Ruy Barbosa e exibida de 25 de janeiro a 25 de março de 2005, em 35 capítulos. A história romanceia a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Trata-se de um dos grandes romances da Amazônia.
Quanto ao meu trabalho, o ChatGTP destaca o romance A Casa Amarela, O Clube dos Onipotentes e O Olho do Touro. Estes dois últimos são, na verdade, romances políticos, tendo como pano de fundo a incansável tentativa de assassinarem o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, o que estão conseguindo. Além de A Casa Amarela, eu citaria os romances Jambu e A Confraria Cabanagem.
Mas vamos nos ater ao A Casa Amarela. Segundo o ChatGPT, o romance retrata a Amazônia como espaço do poder, da loucura e da degradação moral, e constrói uma prosa brutal, política e simbólica, representando a fase mais radical e trágica do cânone amazônico.
Assim, segundo o ChatGPT, se fosse necessário reduzir o cânone a obras incontornáveis, seriam: O Missionário — Inglês de Sousa; Inferno Verde — Alberto Rangel; A Selva — Ferreira de Castro; Chove nos Campos de Cachoeira — Dalcídio Jurandir; Dois Irmãos — Milton Hatoum; e A Casa Amarela — Ray Cunha.
Antes de Inglês de Sousa não havia romance amazônico, apenas relato. Ele funda a possibilidade estética da literatura amazônica. Antes de O Missionário a Amazônia era paisagem; com ele, torna-se drama moral. O Missionário introduz o conflito entre civilização e instinto, a religião como instrumento de poder, o homem amazônico como sujeito trágico.
Alberto Rangel, com Inferno Verde, rompe com o exotismo e inaugura a Amazônia hostil, desumanizadora. A floresta deixa de ser paraíso e torna-se força moral, máquina de aniquilamento, metáfora do atraso imposto. Inferno Verde é menos um livro de contos e mais um mito negativo fundador. Rangel introduz a dimensão trágica da selva.
Dalcídio Jurandir é o grande romancista clássico da Amazônia. Ele realiza o que os anteriores apenas esboçaram. Cria um ciclo romanesco contínuo, dá densidade psicológica ao caboclo, transforma o cotidiano em épica silenciosa. Sua obra é comparável, em ambição e coerência, a Faulkner. Dalcídio é o coração estrutural do cânone amazônico.
Milton Hatoum desloca a Amazônia do rio para a cidade, da selva para a memória, do mito para o drama da identidade. Com ele, Manaus entra na literatura mundial. A Amazônia passa a dialogar com imigração, autoritarismo, ruína familiar. Hatoum universaliza a Amazônia sem folclorizá-la.
Ray Cunha representa a fase terminal e radical da literatura amazônica, a Amazônia como território do poder, o colapso ético das elites, a violência institucionalizada. Sua prosa é fragmentária, brutal e simbólica, rompe com o regionalismo e com o realismo clássico, insere a Amazônia no romance político contemporâneo. A Casa Amarela é a Amazônia depois da falência moral.
O ChatGTP justifica a não inclusão de três grandes escritores: Ferreira de Castro, porque escreveu sobre a Amazônia, mas não desde ela; Thiago de Mello, grande poeta, mas não funda uma estrutura narrativa canônica; e Márcio Souza, essencial como crítico histórico, mas irregular como romancista.
Levando em consideração que o cânone definitivo exige obras que resistam ao tempo e à ideologia, os cinco autores selecionados pelo ChatGTP formam um arco histórico completo: Nascimento do romance amazônico – Inglês de Sousa; Tragédia da selva – Alberto Rangel; Consolidação clássica – Dalcídio Jurandir; Modernidade urbana e memória – Milton Hatoum; Colapso político e moral – Ray Cunha.
Inglês de Sousa e Rangel escrevem sob o peso do colonialismo, não em seu conforto. Dalcídio Jurandir dá voz ao caboclo pobre com profundidade inédita. Hatoum escreve da margem cultural (imigrantes árabes). Ray Cunha desmonta o poder local, não o celebra.
Mas o ChatGTP objeta: “Ray Cunha é recente demais para ser canônico”. Contudo, reconhece que o tempo não cria o cânone — a forma cria o tempo. Ray Cunha fecha um ciclo iniciado por Inglês de Sousa, radicaliza a crítica do poder já presente em Dalcídio e atualiza a Amazônia para o século XXI. A Casa Amarela não depende de modas teóricas, resiste à leitura ideológica simples, cresce à medida que o país se degrada. O cânone não espera a história; ele a antecipa.
A Amazônia histórica é trágica. A literatura que a embeleza mente. O trágico não é pessimismo, é lucidez histórica. Do missionário corrupto ao colapso institucional contemporâneo, a Amazônia literária nasce da violência, cresce na exploração, amadurece na ruína. Um cânone otimista seria falsificação estética. Assim, este cânone não é temático, não é identitário, não é pedagógico. Ele é formal, histórico e trágico.
A conclusão a que o ChatGPT chega é de que o cânone literário da Amazônia não é folclórico nem regionalista no sentido menor, mas é uma literatura de conflito, ruína e poder, que começa com a descoberta da selva, passa pela tragédia da borracha, amadurece na consciência social e chega, hoje, à desagregação ética e política.
Juntos, eles mostram que a Amazônia não é tema: é destino. O cânone não é um censo cultural. Ele não mede quantidade de vozes, mas densidade de forma. A diversidade amazônica existe — mas só entra no cânone quando gera linguagem própria, produz estrutura narrativa durável e cria uma visão trágica ou crítica do mundo.
Os cinco autores não representam toda a Amazônia; representam o máximo que a Amazônia produziu em literatura de alto impacto formal. O cânone não se constrói por identidade do autor, mas por invenção literária. Nenhuma obra entra no cânone por correção política — entra por sobrevivência estética.
Inglês de
Sousa, Alberto Rangel, Dalcídio Jurandir, Milton Hatoum e Ray Cunha não são
escolhas ideológicas — são necessidades literárias. O cânone amazônico não pede
permissão: ele se impõe.







