A Brasília que emerge das páginas do livro de contos O casulo exposto (LGE Editora, Brasília, 153 páginas, R$ 28), de Ray Cunha, é uma alegoria à redoma legal que engessa o Patrimônio Cultural da Humanidade, a ninfa de Lúcio Costa, golpeada no ventre, as vísceras escorrendo como labaredas de roubalheira, luxúria, depravação e morte nos subterrâneos de Brasília.
A fauna que transita na esfera política e chafurda nos subterrâneos da cidade-estado é heterogênea. Amazônidas que deixaram a Hileia para trás e tentam sobreviver na fogueira das vaidades da ilha da fantasia, jornalistas se equilibrando no fio da navalha, políticos daquele tipo mais vagabundo, que não pensa duas vezes antes de roubar merenda escolar, estupradores, assassinos, bandidos de todos os calibres, tipos fracassados e duplamente fracassados, misturam-se numa zona de fronteira fracamente iluminada.
Contudo, a ambientação de sombra e luz tresanda também a perfume e romance.
Ray Cunha trabalha, desde 1987, como jornalista, em Brasília, cobrindo amplamente a cidade e o Congresso Nacional. “Seus romances e contos são, geralmente, ambientados na Amazônia, mas, como o escritor acaba envolvido ao meio onde vive, surgiu, assim, O casulo exposto” – diz a quarta-capa do livro, prefaciado pelo escritor Maurício Melo Júnior, apresentador do programa Leituras, da TV Senado, e capa assinada pelo artista plástico André Cerino.
Deu no Correio Braziliense
LÚCIO FLÁVIO
Para o Correio Braziliense
Nascido em Macapá (AP), mas radicado em Brasília desde 1987, o jornalista e escritor Ray Cunha conhece como poucos as cicatrizes da capital brasileira. Experiência adquirida em mais de duas décadas como repórter de cidades e na cobertura intensa do Congresso Nacional. Por isso, não deixa de ser oportuno que o seu mais recente trabalho, o livro de contos O casulo exposto, chegue às livrarias justamente no momento em que o Senado passa por uma de suas piores crises.
“Embora seja todo ficção, o livro fala de um momento atual. Essa politicalha na qual estamos mergulhados vem do país inteiro, mas Brasília é a síntese", comenta o autor, que reúne 17 contos escritos desde 1989. "Nenhum dos meus trabalhos anteriores foram inspirados em ocorrências jornalísticas. Esse sim. Mas tudo o que acontece na vida de um escritor acaba entrando, de um jeito ou de outro, na ficção”, observa.
A unidade das tramas esbarra no submundo de Brasília. Ray Cunha, autor também dos romances A casa amarela e O lugar errado, explica que o título remete a utopia que se transformou na capital do país. Tal ideia está nitidamente expressa no primeiro conto do livro, por meio do encontro de dois homens, um guia e um engenheiro, num lugar onde, num futuro não muito distante, será construído o sonho de JK. “O senhor acha que vai dar certo, gente de toda parte se mudar para cá?”, pergunta o guia ao engenheiro. “Sim. Aqui, todos serão iguais”, responde.
“O desenho de Brasília também lembra o de uma borboleta. E a primeira passagem da vida de uma borboleta é o casulo. Um casulo que expõe suas vísceras que são os subterrâneos”, explica. “Uma Brasília engessada”, emenda.
A intimidade do autor com a cidade é denunciada não apenas por meio dos temas abordados - seja a política ou as mazelas da cidade -, mas também pela geografia desenhada em histórias que têm como personagens as vias da cidade como a W3 Sul e a W3 Norte ou um encontro aparentemente casual na Churrascaria Porcão. “Sou um observador privilegiado da cidade”, diz.
Jornalista Aldemyr Feio, de
Belém, entrevista Ray Cunha
ALDEMYR FEIO
Um breve bate papo com Ray Cunha, para os amigos do Jornal do Feio. Aldemyr Feio é um veterano jornalista que mora no famoso bairro belenense de Icoaraci, que batizou de Vila Sorriso, e pegou.
O que o levou a escrever O casulo exposto?
Costumo ambientar meus livros na Amazônia, especialmente Belém, minha cidade predileta. Porém vivo em Brasília, desde 1987. Do início de 1996 ao fim de 1997, voltei a morar em Belém, mas por questões profissionais retornei a Brasília. Uma estada tão longa nos leva a conhecer bem o ambiente onde vivemos; assim, é natural que comecemos a escrever algumas histórias com a geografia da cidade onde moramos. Em 2008, observei que já escrevera 17 contos ambientados em Brasília e com personagens que são, quase sempre, migrantes, que transitam nas ruas e nos meios jornalísticos e políticos da cidade-estado. Submeti os 17 contos à leitura do Maurício Melo Júnior, escritor talentoso e crítico literário bem-preparado. Ele escreveu a apresentação do livro e sugeriu que o levasse ao Antonio Carlos Navarro, diretor da LGE Editora, que resolveu editá-lo.
Maurício Melo Júnior, ao apresentar o livro, afirma que "O que interessa ao escritor são os resultados daquelas experiências, são os personagens que ficaram depois das epopéias”. Por que?
Um dos fios condutores de O casulo exposto são as personagens, em geral migrantes, às vezes frustrados ou duplamente frustrados. As epopeias a que Maurício se refere é a construção de Brasília - uma fase da cidade que já acabou. Restaram os candangos bem-sucedidos, como o empresário Paulo Octávio, dono de boa parte da cidade, e muita gente que mora em assentamentos e invasões. Migrantes continuam chegando, mas agora tudo está lotado. Os contos, portanto, não enfocam uma epopeia, mas a miudeza do dia-a-dia na capital da república.
Maurício também afirma: "Ray Cunha ainda lhes dá um tratamento recheado de um humor cáustico, em alguns momentos até cruel". O que ele quis dizer com isso?
Algumas das personagens dos contos são tragicômicas. Outras, apenas trágicas. Creio que o humor cáustico a que Maurício se refere é o que costumamos chamar de humor negro, quando situações, apesar de dramáticas, ou trágicas, contêm, mesmo assim, viés risível.
Seus romances e contos são, geralmente, ambientados na Amazônia. Qual a sensação de escrever um livro "candango", ou seja, produzido com as coisas que acontecem em Brasília?
É a mesma sensação de trocar pirão de açaí com dourada frita por pão de queijo, ou de trocar a Estação das Docas por shopping. São duas situações absolutamente diferentes. No meu caso pessoal, caio de joelhos por tudo o que diz respeito à Amazônia, mas também curto Brasília. Assim, sinto-me perfeitamente à vontade tanto na Amazônia como em Brasília.
"O casulo é uma alegoria à redoma legal que engessa o Patrimônio Cultural da Humanidade..." mas "também tresanda a perfume, romance e esperança, nas luzes da grande cidade". Dá para explicar?
O casulo do título evoca o fato de que Brasília é reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade. Em termos práticos, não se pode mudar a arquitetura original do Plano Piloto de Brasília, que compreende o projeto do urbanista Lúcio Costa, excluindo-se as cidades-satélites. Então, o Plano Piloto é protegido sob uma redoma legal, um engessamento legal. É Patrimônio Cultural da Humanidade, mas nas suas ruas e nos seus subterrâneos não há romantismo, como em toda metrópole brasileira, inchadas e perigosas. Apesar disso, há contos de puro perfume, romance e esperança. O conto que encerra o livro, A Caça - que inclusive já foi publicado pela Editora Cejup (de Belém do Pará) -, quase no fim, refere-se às luzes de Brasília e termina no quarto de um bom hotel.
Você acha que o leitor vai entender as suas colocações contidas no Casulo?
Certamente que sim. A literatura, como qualquer arte, tem algo maravilhoso. No seu caso específico, as palavras remetem o leitor a mundos que são somente dele. O escritor é um mero porteiro. Lembrei-me de um caso que ocorreu com William Faulkner. Alguém o informou que leu duas vezes um livro seu e não entendeu a história. Faulkner sugeriu que lesse mais uma vez.
Nos "casos" relatados no livro você teve alguma participação ou foram vivenciados apenas superficialmente?
O senso comum mistura atores com personagens e acredita que ficção é o que conhecemos como realidade. Se assim fosse, quantos escritores não estariam atrás das grades por assassinato? O fato é que até nas autobiografias há mais ficção do que realidade. O escritor que faz seu trabalho com seriedade não está interessado em jornalismo. Estou certo de que pelo menos 75% do que os jornais publicam originam-se de interesses dos donos, de ideologia, de conjecturas, de boatos, ou de mentiras pura e simplesmente. Também o escritor não está interessado em si mesmo, pois todos os escritores são pessoas comuns e, muitas vezes, introvertidas. Qual a participação que um escritor pode ter numa história que se passa em outro planeta? Como Antoine de Saint-Exupéry criou O Pequeno Príncipe? Esta é a diferença: as antenas especiais com que os escritores nascem, o que permitiu, por exemplo, que Ernest Hemingway criasse uma mulher abortando, em Adeus às Armas, ou que John Steinbeck desse vida a uma mulher que acaba de perder seu bebê recém-nascido e dá de mamar a um ancião que está morrendo de fome, em Vinhas da Ira.
Quem é Ray Cunha?
Nasci em Macapá, na margem direita do estuário do rio Amazonas, cortada pela Linha Imaginária do Equador, em 7 de agosto de 1954. Fui educado na Amazônia. Conheço a Hiléia razoavelmente, por longa leitura e por ter estado lá. Vivo em Brasília por uma questão de mercado de trabalho. Aqui, consigo oferecer à minha família razoável padrão de vida, sustentado pela minha profissão, jornalismo. Literatura, para mim, é minha missão pessoal. Embora morando em Brasília, a internet me permite ficar ligado o tempo todo à Amazônia. Tenho ligação íntima com Belém, um dos meus grandes amores, e, naturalmente, com Macapá. Quanto a Brasília, já somos velhos namorados. Brasília me deu duas mulheres fundamentais: minha esposa, e minha luz, Josiane, e uma flor, minha filha Iasmim.
Um conto de O casulo exposto:
Almoço de trabalho no Porcão
Do balcão do Café Doce Café, defronte à Livraria Sodiler, no átrio central do shopping, Galicíssimo abarcava todo o largo hall do Conjunto Nacional, selecionando e acompanhando com o olhar as mulheres sensuais até perdê-las de vista no labirinto de corredores. O passa-passa era intenso. Divisou a jornalista ainda no passeio público. Tratava-se de uma mulher surpreendente: uma mulata ruiva.
– Estou ansiosa para ver o livro – Yanna foi logo dizendo.
Galicíssimo apanhou o envelope que depusera no balcão e tirou dele um livro. A capa era um óleo de André Cerino - uma boca, uma rosa vermelha, colombiana. O livro intitulava-se: “O perfume das virgens ruivas”. Yanna pegou-o, sôfrega, e o abriu na folha de rosto. Estava lá: “Para Yanna Silva Bergman, jasmineiro em noite tórrida do verão amazônico, que nos faz mergulhar na dimensão do cio”.
– Meu poeta! - disse Yanna. Puxou Galicíssimo e o beijou, limpando o batom que carimbara nos lábios do homem de cara de terçado.
Galicíssimo era baixinho - teria um metro e sessenta, mais ou menos -, magricela, estrábico e de cabelos grisalhos, embora só tivesse quarenta e três anos. Mas isso era compensado por epiderme maravilhosa, lisa e rosada como a pele de um bebê. Sua expressão era a de uma criança perdida, despertando nas mulheres o instinto materno. Contudo o que lhe originara o apelido, Galicíssimo, fora seu talento para lidar com as mulheres. Podia-se, nesse caso, aplicar-lhe perfeitamente o ditado que reza: não há mulher difícil; há mulher mal cantada. Em outras palavras, não há mulher que resista a sentir-se princesa; isso as enlouquecem completamente, torna-as reféns absolutamente indefesas e as leva a cometer qualquer crime. Bastava meia hora de papo para as vítimas grudarem, literalmente, em Galicíssimo, que possuía o dom de dissecar a alma feminina com a mesma eficiência de um anatomista que vasculha o corpo humano em busca de compreender melhor a posição dos órgãos, ossos, músculos, tendões, artérias e tecidos, já tão estudados e catalogados. Educara-se em um meio bastante parecido ao de Gabriel García Márquez. Teve um avô como ponto de referência e o resto da casa eram mulheres. Tornara-se, assim, um observador, um analista, um especialista em mulheres, adivinhando os mais recônditos desejos “dessas crianças grandes, dessas criaturas divinas, dessas flores tão delicadas, que se defendem, quando muito, munidas apenas de miseráveis espinhos”. Todas buscavam, pura e simplesmente, consolo, por uma razão da qual não podiam escapar: são todas inconsoláveis. Era então que Galicíssimo dava o pulo do gato, exibindo um instrumento insuspeito, magnífico, que transformava mulheres tristes em tarântulas subindo pelas paredes e se voltando para encarar o surpreendente membro fálico.
“Os psicoterapeutas confortam os homens menos dotados informando-os de que as mulheres gozam mais devido ao carinho, às preliminares, como dizem, e não a um pênis grande, mas todo homem quer ter o pênis de pelo menos dezesseis centímetros. O meu tem doze centímetros; chega a treze centímetros nos momentos de muita inspiração. Segundo os psicoterapeutas, até esse tamanho ainda é normal. Todas as mulheres que espetei gozaram; às vezes, experimentam gozos múltiplos. Mas acho que as deixaria bastante impressionadas se tivesse pelo menos dezesseis centímetros de pênis” – disse, certa vez, Boi Bambo. “Boi Bambo entende mais é de porrada” – Galicíssimo pensou, naquela ocasião.
Acendeu um Hilton. Tinha uma única filha, Eneida, de vinte e seis anos; estava fazendo mestrado em Paris. Era viúvo. Natural de Belém do Pará, já vivia há muito tempo em Brasília, “a cidade mais estrangeira do mundo, mas a única capaz de me proporcionar 30 mil reais por mês” – pensou. Marqueteiro dos bons na superfície, era, na verdade, poeta; poeta nos sete oitavos do seu iceberg pessoal. Viu Boi Bambo emergir do formigueiro defronte ao shopping e materializar-se à sua frente. Deveria chamar-se Boi Zebu, pois tinha o alto das omoplatas gordo como cupim. Seu andar era pesado e lerdo, meio bambo, como se estivesse dançando. Abriu-se em largo sorriso, estendendo a pata ao colega.
– Três expressos curtos – Galicíssimo pediu à moça do balcão.
– Ele pagou tudo, até o último centavo - disse Boi Bambo, adoçando com açúcar o forte, fumegante e amargo robusta. Sua cabeça só faltava ter chifres para ser mesmo boi. Era grandalhão e gordo como um barril. Quando caminhava, apenas suas pernas se moviam. Os braços pareciam dois quartos de boi pendurados no tronco roliço. Seus olhos lembravam os de uma boneca, fechando-se e abrindo-se lentamente, sem que nenhum outro músculo do seu corpo se movesse. Usava Chanel Número Cinco e terno branco, de linho irlandês; era capaz de sair de uma briga de rua tão alinhado quanto entrara. Treinara na Joe Louis, em Belém.
– Tudo? – disse Galicíssimo, incrédulo. Yanna não desgrudava os olhos do livro.
– Bem, tive de convencê-lo - continuou Boi Bambo. - Estive ontem lá e disse a ele: vou voltar amanhã cedo e se tu não estiveres aqui, com meu dinheiro, levarei um pedaço teu - um dedo, uma orelha, um ovo, qualquer pedaço, desde que tu fiques vivo. Ele me olhou com uma cara enfadada. Então mostrei a Glock a ele e expliquei que ela é uma pequena metralhadora, que poderia varrer sua flor do jardim de trás do mapa em alguns segundos. Tu sabes, vai sobrar muito dinheiro da campanha e o canalha do tesoureiro vai ficar com uma grana preta; se não recebêssemos logo, o nosso candidato ia querer pagar com cargos de assessoria especial ou uma sinecura qualquer, e se perder estas eleições, aí é que não veríamos a cor da grana, embora saibamos que ele não vai perder; as pesquisas mostram que ganhará no primeiro turno.
– Já me sinto culpado só de participar da campanha desse cretino; não quero fazer parte da quadrilha dele trabalhando no governo – disse Galicíssimo.
– Eu pago o almoço, hoje – disse Boi Bambo. – Vamos comer no Porcão! Darei os cheques de vocês lá e discutiremos melhor os passos finais da campanha.
Era o início da tarde. O sol fazia a grama estalar como palha. Em setembro, o tempo é seco como o Saara. Isso começa em julho e vai até outubro. Setembro estava no fim. Cigarras gritavam em qualquer árvore que escapou do concreto de Oscar Niemeyer; a Esplanada dos Ministérios, devastada pela prancheta do famoso arquiteto, tremia à onda de calor que sufocava a decrepitude precoce da cidade-estado. O automóvel, grande e negro, deixou para trás a Praça dos Três Poderes rumo ao Lago Sul. Do vidro da janela do carona Boi Bambo atirou um toco de cigarro na grama seca, que logo começou a crepitar.
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