Àquela hora da noite era bom para beber uma ou duas garrafas de cerveja, mas só quando havia carona, pois no ônibus dava vontade de urinar. Por isso recusou um gole. Carlão, que lhe dava carona na velha Brasília, não fora trabalhar. Alfredo estava cansado também. Editara o jornaleco de dezesseis páginas daquele sindicato de picaretas. Nem sequer se lembrou do encontro com a secretária do advogado da sala no outro lado do corredor, uma mineirinha loirinha, toda cheinha, na mira dos lobos da vizinhança. Eram sete horas. O movimento crescia nos bares do Conic. No calçadão, topou um conhecido. Alfredo lhe ofereceu cigarro. O tipo tinha pressa também.
O primeiro piso da Rodoviária estava um inferno. Meteu-se na fila do Taguatinga Sul. Não daria para ir sentado, mas não aguardaria outro. Já na Octogonal o ônibus ficou igual lata de sardinha. Mudara-se de Belém há dezesseis anos. Casara-se com uma mineira e ali estava, naquela lata de sardinha, avançando lentamente no engarrafamento da Estrada Parque Taguatinga. Tivera um dinheirinho na poupança, mas a ministra da Fazenda do presidente Fernando Collor de Mello, Zélia Cardoso de Mello, havia confiscado a poupança de todo mundo. A devolução do dinheiro fora uma fraude. Zélia casou-se, depois, com o maior humorista do país. Era uma piada mesmo aquela mulher.
Deu sono. Alfredo repousou a cabeça no braço, seguro na barra do teto. A estrada estirava-se como uma cobra, por vinte e um quilômetros. Uma cobra toda iluminada, arrastando-se, lentamente, entre bosques de eucaliptos. Alessandra e Aline, àquela hora, estariam prontinhas para a cama. Alessandra tinha três anos e Aline, um. O ônibus estacara. Fazia calor.
- Já era tempo de alargarem esta estrada - disse uma mulher.
- Ou de concluírem o metrô - disse um sujeito.
- Foram votar nesse comunista do Cristovam Buarque e vejam no que deu: ele paralisou as obras do metrô do Roriz - redarguiu a mulher.
- Mas o Roriz disse que ia inaugurar o metrô e não inaugurou - interveio uma segunda mulher.
- Mas ele vai inaugurar o metrô - disse a primeira mulher, dando ênfase ao vai.
- Como? Ele não se elege mais aqui - disse a segunda mulher.
- O Cristovam é que não se elege mais, nem para síndico - respondeu a primeira mulher.
- Eu não entendo de política, mas acho que safadeza mesmo é deixar o que já foi feito do metrô virar sucata - disse o homem.
- Ouvi dizer que nem de metrô Brasília precisa - disse um segundo homem, metendo-se também na conversa.
- O Cristovam não vai deixar de investir em obras sociais para construir metrô. Ele está empregando as verbas do metrô na educação - interveio um tipo de barbicha e óculos de lentes grossas, que estava sentado.
- Deve ser comunista também - disse, num tom baixo, a primeira mulher.
- Esse metrô vai levar é muito assaltante de Samambaia para o Plano Piloto - observou um sujeito um pouco afastado do grupo.
- Besteira da grossa... - respondeu a primeira mulher.
- Anda, se não eu te empurro, tchê! - alguém gritou. Quase todo mundo riu. Como que por encanto o ônibus pôs-se a andar, embora lentamente.
Adiante, o motorista acelerou a marcha, para depois reduzi-la novamente. Na altura do Guará, deram com a causa do engarrafamento: havia um ônibus jogado na margem direita da pista, entre os eucaliptos. A parte dianteira transformara-se num ferro velho. Do outro lado da pista jazia o bagaço de um fusca. Havia muito vidro e sangue por ali. Logo correu o rumor no ônibus de que sete pessoas haviam morrido e que um homem fora degolado, com a cabeça atirada a vários metros de distância dele. “Como é que conseguiram essa informação?” - Alfredo pensou. Agora o ônibus ia numa boa velocidade.
Muita gente ficou no primeiro ponto da Avenida Comercial Sul, próximo ao Alameda Shopping. Alfredo pegou uma rua transversal, passou defronte ao bar da esquina, deu uma olhada para dentro, mas continuou caminhando. Estava mesmo cansado. O apartamento ficava no sétimo andar. Tomou o elevador pensando em Alessandra e Aline. Entrou. Silêncio. Foi ao quarto de Alessandra. A menina dormia a sono solto. Beijou-a na testa e ficou ali, algum tempo, a olhá-la. Tinha o rosto da mãe, oval, os lábios polpudos, o nariz afilado, os cílios longos, os cabelos claros e encaracolados, a pele branca como alabastro.
No outro quarto, Rosana dormia também. Só o bebê, Aline, estava acordado. Olhou para Alfredo, com seus olhos enormes, e sorriu. Estava molhada. Alfredo beijou-a na testa. Foi lavar as mãos e voltou para trocar a frauda do bebê. Rosana acordou.
- Você chegou? - disse.
- Acho que ela quer mamar - disse Alfredo, pegando Aline e entregando-a à mãe, que havia se sentado na cama.
- O bebê da mamãe quer mamar? - disse a mulher, sacando para o bebê um lindo seio, alvo e de grande mamilo rosado.
Alfredo foi ver o que havia para jantar. Destampou o prato sobre o fogão. Continha um bifão de alcatra com tutu. Abriu a geladeira e serviu-se de um copázio de coalhada. Adoçou-a. “Melhor do que isto só açaí com camarão” - disse para si mesmo, enquanto ligava a televisão, já sintonizada na TV Globo.
Valparaíso de Goiás, 1998
Nada como alcatra com tutu e coalhada, sintonizado na TV Globo foi publicado no livro O casulo exposto, à venda nas livrarias Saraiva, Cultura e Leitura.
Pedidos para o editor
LGE Editora: www.lgeeditora.com.br
Editor: Antonio Carlos Navarro
lgeeditora@lgeeditora.com.br
(55-61) 3362-0008
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluir