Minha vida é um navio que as rosas, indiferentes, veem passar. O dia amanheceu nublado. Saí para uma caminhada. Gosto de andar pelo calçadão da Avenida W3 Sul, da 711 até o Conjunto Nacional. A manhã é vazia, sem estudantes, que pintam as ruas de azul. Estão de férias. Contudo ficaram mulheres que perfumam tudo por onde passam. Sinto desejo de bater papo com Olivar Cunha. O pintor está distante, próximo ao mar, preparando exposição para este ano, na galeria Artefix, em Brasília. Mas tu, poeta, estás sempre perto.
Quando vivíamos em Belém, e nas noites em que me sentia deprimido, eu telefonava para o Walmir Botelho ou para ti. Uma noite, me levaste para o bar do teu tio e eu fiquei bêbedo de gim fizz. No dia seguinte, ao tomar banho, bêbedo ainda, rescendia a gim inglês. O pior era a nostalgia das mulheres e das cidades que eu havia amado e que deixara para trás. Não havia drink que aliviasse a angústia. Até que um dia, em Ilhas na Corrente, Hemingway me ensinou que aonde quer que vamos levamos sempre conosco nós mesmos. Então comecei a pôr minha família, as mulheres que amei (e nunca deixamos de amar), todas as cidades, todos os amigos, no relicário do meu coração. E nunca mais senti saudade.
E quando nos encontramos, caro querido, em Belém, no Rio de Janeiro, em Brasília ou em Macapá, é como se nos víssemos todos os dias. Em Macapá, comemos ventrecha de dourada com farofa no Curiaú e observamos telas de Olivar Cunha na tua casa. E também sentimos o cheiro do oceano Atlântico na boca do rio Amazonas. E não precisamos dizer um ao outro que haverá sempre perfume, merengue e azul escorrendo na poesia que despejamos no papel, como se fôramos deuses adoradores do sol.
Caro querido, além do perfume das virgens ruivas, que nossas narinas, treinadas, pressentem no ar mais rarefeito, tangível como pirão de açaí com farinha de tapioca e camarão, há, na nossa memória, toda a alegria da nossa juventude embalada por sonhos ensolarados e regada a Pitú. Tudo isso voa pela minha cabeça na caminhada pela W3 Sul. Sinto-me tão intenso quanto na noite em que fiz se mover um girassol ao toque do meu olhar.
Em casa, espera-me a criação do último capítulo de um romance. Também aguardo, a qualquer momento, a revisão definitiva de O Lugar Errado. À tarde, recebo correspondência do poeta Jorge Tufic: Poema-Coral das Abelhas, A Amazônia: o massacre e o legado (Ensaios) e A Amazônia e a quinta lei de Asoka. Jorge Tufic Alauzo é fenício, Cidadão do Amazonas, pela Lei 3.447, de 21 de outubro de 2009, assinada pelo então governador Carlos Eduardo de Souza Braga. Conheci Jorge Tufic no Clube da Madrugada. Eu tinha então 21 anos de idade e ele já era um deus das noites de Manaus. Degustávamos Antarctica enevoada no Nhatalia.
É noite. Minha mulher faz um estudo da Seicho-No-Ie na sala. Minha sogra está no quarto. Minha princesinha está em Ibiúna, São Paulo. Eu estou em toda parte. A dimensão, na minha mente, é completamente diversa desta do mundo fenomênico. Hemingway bebe daiquiri. Está calibrado. Aproximo-me dele.
- Tu podes pegar um marlim azul de 637 quilos no Atlântico, pouco acima da linha do Equador, na altura da vila de Sucuriju, no município de Macapá, na Amazônia Caribenha – digo-lhe, utilizando um número cabalístico.
- Abaixo de Trinidad e Tobago? – ele pergunta. Conversamos quase até o amanhecer.
Caro querido, vamos tomar uma Bohemia enevoada no Bar do Abreu?
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