segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O estuprador nunca mais será o mesmo

O ônibus entrou devagar na baia. A água estava quase chegando ao nível da calçada. Dezenas de pessoas se comprimiam para não pegar chuva. As janelas do ônibus estavam embaçadas, mas podia-se ver que alguém tentava abrir uma vidraça. Forçou-a e ela não cedeu, e então tentou abrir a janela ao lado. A mão atirou um saquinho de plástico na sarjeta. O saco caiu na enxurrada, misturando-se a restos atirados por transeuntes e passageiros, seguindo enxurrada abaixo, rumo ao bueiro, adiante.

O tipo se encontrava abrigado na marquise da lanchonete, ao lado do vendedor de churrasquinho. A fumaça do fogareiro defumava os churrasquinhos e as pessoas ali perto. O tipo examinou o churrasquinho de porco que selecionara. Havia terminado um e aguardava, impaciente, que outro ficasse pronto. Deu uma imensa golada na lata de cerveja e voltou a olhar para o churrasquinho da vez. Agora chovia fino, até a chuva reduzir-se a orvalho. O tipo atirou a lata de cerveja vazia na sarjeta e pediu outra, atacando o novo churrasquinho. A chuva passou de vez. Apenas a atmosfera continuava encharcada. Um ônibus da linha Santa Maria se aproximou. Ela tomou o ônibus. O tipo também o tomou. Estava lotado. O tipo avaliou o corredor. Melhor seria ficar à frente, pois dificilmente conseguiria avançar, com sua barriga, no corredor.

“É hoje!” – ele pensou, concentrado no decote e nos seios túrgidos dela.

Era noite quando o ônibus chegou a Santa Maria. O tipo desceu no mesmo ponto da mulher de decote ousado e a seguiu. Quando ela alcançou a parte erma do quarteirão, ele a abordou. Ela quis gritar, mas viu o revólver na mão dele.

- Chiii! – ele fez. Ela estava apavorada. – Vamos! – ele disse, apontando para o matagal.

Tudo aconteceu rapidamente. O tipo soltou um berro.

- Levanta, porco – disse o policial, apontando uma pistola para o tipo, que gemia, pegando na genitália. – Eu te cacei durante dias; finalmente, te peguei, porca prenha. Levanta!

No dia seguinte, na delegacia de Santa Maria, durante o interrogatório, foram confirmados quatro estupros, incluindo uma policial lotada na delegacia.

- Temos de pô-lo numa cela isolada – disse o delegado.

- E a Orquídea? – disse o detetive que prendeu o estuprador, lembrando-se da sua colega.

- Sei que ela foi estuprada, mas não devemos entrar na mesma vibração do estuprador – disse o delegado, adepto da Seicho-No-Ie. – O importante é que ele foi agarrado. Nunca mais será o mesmo – disse.

Ao sair, o detetive passou pela cela do estuprador. Ele estava dormindo.

“É, nunca mais será o mesmo” – pensou, e foi embora. A luz, no asfalto molhado, dava à cidade a dimensão do anoitecer nos dias chuvosos. 


Valparaíso de Goiás, fevereiro de 2006


Conto publicado no livro O casulo exposto, à venda nas livrarias Saraiva, Cultura e Leitura, ou na Loja Virtual da LGE Editora.

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