- Brasília cresceu sob o equívoco de cidade mais moderna do mundo. Nunca foi moderna, pois até hoje suas instituições públicas não fazem justiça à modernidade, especialmente o transporte coletivo, e assim foi engessada como Patrimônio Cultural da Humanidade – criticava K. Ele falava tão escorreitamente quanto escreve. - Brasília foi construída no alto do Planalto Central, no Cerrado, savana que vem sendo substituída por imensas plantações. É seca, calorenta, suja, caótica e poluída como qualquer metrópole brasileira. A maior argumentação para a construção de Brasília é a de que viabilizou a integração da Amazônia ao Sudeste. Essa integração seria legítima se houvesse uma ferrovia do Chuí, no Rio Grande do Sul, até Rio Branco, Acre, e até Boa Vista, Roraima, e, quem sabe, de Roraima a Macapá, no Amapá. Ferrovias não promovem a devastação da Amazônia, não como as rodovias. Essa ferrovia passaria por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia e Belém, com ramal para o Nordeste – disse K, com sua indefectível pachorra adquirida em incontáveis idas e vindas mundo afora.
- Cara, e o traçado de Lúcio Costa, e a obra de Oscar Niemeyer? – Alfredinho perguntou. Tratava-se de um carioca cabeludo que foi assaltado no Rio de Janeiro e como não tivesse dinheiro apararam seus cabelos cuidadosamente e os levaram. A caminho da delegacia para dar parte foi novamente assaltado e como não tivesse nem cabelos levou uma pancada na cabeça que quase ficou doido. Veio para Brasília e virou candango de carteirinha, e voltou a ser cabeludo.
- O traçado de Lúcio Costa, uma cruz no Cerrado, serviu mais como tema para incontáveis cronistas do que para se projetar uma cidade. Uma cidade não deve ser crucificada, mas vivificada. Quanto a Oscar Niemeyer, é um projetor de monólitos de concreto e crê que esquerdistas são santos – K atacou, ferino.
- Cuidado para não sufocar com a língua – disse Alfredinho, tomando mais um gole pantagruélico. - E você, Ray, o que diz da obra de Niemeyer? – disse, dirigindo-se a mim.
- Niemeyer é intocável; é como Fidel Castro. Mas Oscar Niemeyer, além de esterilizar o chão com hectares de concreto, constrói monumentos no lugar de palácios. A Biblioteca Nacional de Brasília, aquele complexo cultural na Esplanada dos Ministérios, por exemplo, o meio ovo que ele projetou, cercado de concreto por todos os lados, sem nenhum arbusto para simbolizar uma sombrinha naquele deserto de concreto, aquilo é insano – eu disse.
- Insano! Gostei da palavra. A Esplanada dos Ministérios é insana, e o Congresso Nacional é paradoxalmente insano – disse K.
- Não diria o Congresso Nacional, mas o PTPMDB – observei.
- O que, PTPMDB, o que é isso? – Alfredinho perguntou.
- Um animal híbrido, de fome hienídea e paladar suíno – eu disse.
- Explique-se – K exigiu. K é um sujeito absolutamente lógico.
- Os petepeemedebistas são murídeos com cabeça de hiena – respondi.
- Égua! – disse Alfredinho, me parodiando. – Vocês dois deveriam ser expulsos de Brasília.
- Quando o Brasil saiu da ditadura, o então presidente José Sarney deu o governo de Brasília para Joaquim Roriz, que montou um formidável esquema de distribuição de lote por futuros votos, nepotismo, superfaturamento, invasões e negociatas, até ser pego, já com a coroa de senador. Aí, a “cidade mais moderna do mundo”, fria, setorizada, sem esquinas, povoada de comunidades estanques, explodiu, e se transformou no que é – deblaterou K. - Se não houvesse Brasília é provável que não teríamos 21 anos de ditadura, e todas as ditaduras, todas, inclusive a de Hugo Chávez, são, simplesmente, indefensáveis. Comparo ditaduras a uma quadrilha que faz de conta que segue uma ideologia. Ditadores não são mais do que bandidos bancando políticos, todos eles, incluindo Getúlio Vargas.
- Acho que Brasília foi a tacada de mestre de JK, embora tenha se tornado um perfeito esconderijo dos petralhas – observei.
As amigas de K nos salvaram daquele papo, que estava ficando amargo. À sua chegada a noite ficou mais intensa. Elas representavam, em si mesmas, o agora e o agora, o momento mesmo da vida. Então Brasília se transmudou na capital do trópico. Não do Trópico Úmido, que é Belém, mas do trópico apenas. Estávamos no café ao lado da Livraria Saraiva. Àquela hora, o ParkShopping lembrava um grande aeroporto internacional, onde pode-se ver as mulheres mais bonitas do mundo. O café regurgitava, imerso em perfume.
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