Fizera um calor estúpido durante todo o dia, mas agora, já no início da madrugada, a temperatura estava agradável. Contudo Gim suava, apesar de estar apenas de camiseta. Gim vivia suando mesmo. Era o maior dos dois. O outro, apesar do seu metro e oitenta de altura, parecia bem menor do que Gim, pois batia-lhe no ombro. O telefone tocou e Gim atendeu. Ouviu o que disseram, desligou o telefone e o guardou no cinto.
- Calisto, o homem está saindo - disse para o outro.
Estavam dentro de um Gol, no estacionamento do bar e restaurante Anturius, no Setor Hoteleiro de Taguatinga. No começo da noite fora um entra e sai de políticos, empresários e jornalistas, mas àquela hora havia poucos carros no estacionamento.
- Lá vem ele - Gim avisou.
O homem que acabara de sair era pequeno e usava óculos. Teria menos de sessenta anos, mas seu cabelo já estava todo branco. Dirigiu-se para seu carro, também um Gol branco, estacionado ao lado do Gol dos dois sujeitos. Nem chegou a abrir a porta. Sentiu algo duro na nuca. Era o cano preto de um trinta e oito.
- O Gol é este - disse Gim, indicando, com o cano, seu carro. - Vai entrando!
O jornalista não esboçou qualquer sinal de surpresa e entrou tranqüilamente no automóvel.
- Posso fumar? - perguntou.
- Aproveite - disse Gim.
Arlindo tirou o maço de Hilton, ofereceu cigarro aos dois; diante da recusa de ambos, pôs um cigarro na boca e o acendeu. Calisto, ao seu lado, brincava com uma peixeira. Arlindo bebera bastante, mas, diante das circunstâncias, sentia-se sóbrio.
- Posso saber para onde os senhores estão me levando? - perguntou. Ninguém respondeu.
Já vira Gim, antes, mas não se lembrava onde. Concentrou-se e acabou se lembrando. Vira-o na Décima-Segunda Delegacia de Polícia. Por que o estavam seqüestrando? Seria por causa da sua investigação sobre caixa dois no Partido dos Trabalhadores do Movimento Democrático Brasileiro (PTMDB)? O presidente nacional da agremiação morava numa mansão no centro de Taguatinga, sob jurisdição da Décima-Segunda.
O Gol entrara em um local ermo, no Areal, atrás da Universidade Católica.
- Fim da linha, bonitão - disse Gim.
Arlindo desceu.
- Você vai parar com a investigação sobre o caso do PTMDB - disse Gim.
PTMDB. Essa sigla sempre soara mal nos ouvidos de Arlindo.
- Eu lamento, mas a próxima edição da Confraria Candango já está pronta.
- A edição vai ficar com a gente - disse Gim.
- Vocês foram mandados pelo deputado Jesus, não foram?
- A edição vai ficar com a gente e você vai esquecer esse assunto - disse Gim.
- De qualquer modo, a edição já está pronta...
Calisto deu uma cacetada tão forte na cabeça do jornalista que ele aterrissou e comeu capim.
- Ele não vai cooperar - disse Calisto. - Vamos apagar logo ele.
- Espera! Você não ouviu ele dizer que tem uma edição pronta? Temos de ir com ele até o jornal e destruir tudo - disse Gim.
Começou a chover de repente. Calisto chutou o jornalista na cabeça e depois pisou nela.
- Espera! - disse Gim - senão ele não vai poder dizer onde é que está a edição da Confraria.
Meia hora depois, Gim e Calisto estacionaram na CNB-7. Gim desceu e abriu uma porta, que dava para estreito hall e sinuosa escadaria. Não havia viv’alma na Avenida Comercial Norte. Arrastaram Arlindo até o hall e o jogaram lá, como se joga um saco de lixo. Sentiram movimento em cima. Alguém abriu uma porta.
- Vamos! - disse Gim. - O palhaço está morto e não sabemos qual é a sala.
A secretária do jornal chegava sempre antes das oito horas, preparava café e logo depois Arlindo entrava na redação e ia direto para a cozinha. Naquela manhã de sábado, Vânia chegou mais cedo, pois sabia que não tardaria a chover. Quase cai ao tropeçar em Arlindo. Ele gemia baixinho e uma bolha de sangue formava-se na sua boca. Vânia gritou.
- Ai, meu Deus! Socorro! - gritou, histérica.
Mais tarde, no Hospital Regional de Taguatinga, o médico explicou a Arlindo Filho: - Tivemos de drenar água de dentro do crânio dele.
- Filho - Arlindo sussurrou no ouvido do rapaz -, a arte do jornal está em casa, dentro do gavetão do guarda-roupa, no meu quarto. Leva-a para o Jornal de Brasília para rodar. Antes, manda tua mãe e teus irmãos para Goiânia, procura o pessoal da Confraria Candango e toma muito, muito cuidado. Vai!
Em seguida, Arlindo sentiu que mergulhava em uma vala cheia de sangue, mas agüentaria mais um pouco. Queria ver a cara do deputado Jesus e dos dois policiais quando lessem o jornal. Tinha de agüentar só mais um pouco. Depois, então, que se fodessem.
Brasília, 2002
Confraria Candango integra o livro O casulo exposto, à venda nas livrarias Saraiva, Cultura e Leitura, e na Loja Virtual da LGE Editora
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