terça-feira, 22 de março de 2011

O casal Lélis brigou ontem à noite

Este conto foi publicado no livro O Casulo Exposto, à venda nas livrarias Saraiva, Cultura e Leitura. Em Brasília, pode ser encontrado nas lojas da Livraria Leitura do Conjunto Nacional e do Pátio Brasil. À venda ainda no site: www.lojalge.com.br.

Leia mais sobre O Casulo Exposto linkando a matéria Brasília como ela é, no Marcador Brasília.

Pedidos para o editor
Editor: Antonio Carlos Navarro
(55-61) 3362-0008


O ônibus parou e abriu a porta de trás. Era um ônibus bem iluminado. Um facho de luz projetou-se na parada. Um homem, de meia-idade, calvo, pequeno, com a pele branca queimada de sol, avançou escada abaixo, trôpego. Ao pisar a calçada, estudou ao redor de si, como um náufrago que chega à terra firme e aguarda um pouco até o chão parar de se mover. Pouco adiante, uma ruela dormia nas trevas. O ônibus arrancou e o homem ficou só. Começou a avançar em direção à ruela. Viu que vinha alguém.

- Onde tem um bar por aqui? - disse ao tipo que caminhava na sua direção. Era um negro bastante alto.

- Sei onde há um – disse o negro.

O homem que descera do ônibus meteu a mão num dos bolsos do casaco, tirou uma carteira de Malboro e a estendeu ao outro. - Meu nome é Souza Lélis, prazer! - apresentou-se.          O outro recusou o cigarro com um gesto. Souza Lélis acendeu o isqueiro. Notou que o negro trajava-se de terno preto, fosforescente.

- Vamos - disse para Souza Lélis, que o seguiu sem pestanejar. Notou que o negro era corcunda.

A ruela era sinuosa e escura, ladeada por casas imersas no sono da madrugada. Souza Lélis viu três homens numa esquina e percebeu que um deles empunhava um revólver. Mas os homens não fizeram nada, como se não os vissem. Em certo ponto, a ruela enviesava-se para a esquerda. Havia ali um bar, onde uma mulher, de pé, diante do balcão, parecia uma alma penada. Ao ver os dois homens entrando no bar seus olhos brilharam. O garçom era grande como um guarda-roupa e tinha a cabeça mais chata de tantas quanto Souza Lélis já vira. “Este ganharia facilmente um concurso de cabeças-chatas” - pensou.

- Uma rodada de Antarctica, para todos - disse.

O negro bebia em silêncio, observando Souza Lélis. A mulher se aproximou de Souza Lélis, insinuante, mas não foi adiante, pois se chocou no olhar do negro.

- Onde estou, irmão? - perguntou ao negro.

- No céu - disse a mulher, rindo.

Souza Lélis ouvia o riso interminável. Luz lhe ofuscou os olhos. Um automóvel passou perto, espantando o vira-lata que gania como hiena. Souza Lélis estava sentado na sarjeta da ruela. Tentou se levantar e logrou consegui-lo. Saiu ziguezagueando. Levou a mão ao bolso, encontrando a carteira e o dinheiro. Olhou para si e viu que suas roupas continuavam limpas. A manhã começou a esquentar e muitas pessoas caminhavam na ruela. O botequim, que é do botequim? Caminhou; ao dobrar uma esquina deu de cara com uma padaria. Parecia uma padaria despropositada, pois era luxuosa demais, surgindo, de repente, no monturo. Olhou-se num espelho. Havia espelhos por toda parte na padaria. Havia também um grande banheiro. Entrou nele, urinou, lavou as mãos e o rosto, e ajeitou um pouco os cabelos. Foi ao balcão e pediu um pingado e um sanduíche de queijo e presunto no pão francês. Momentos após, apanhou um táxi.

- 703 Sul - disse ao motorista.

Quarenta e cinco minutos depois entrava em casa.

- A Alessandra já se levantou? - perguntou à empregada.

- Já. Ela está se sentindo mal - disse a empregada.

Alessandra estava com os olhos inchados de tanto chorar, desde a briga com Souza Lélis na noite anterior. Ao vê-lo entrando no quarto caiu nos seus braços, derretendo-se como manteiga em pão recém-saído do forno.

A empregada foi levar o café da patroa, mas ficou em pé, à porta do quarto, ouvindo os gemidos que saíam de lá e iam morrer pouco adiante, como bolhas de sabão ao vento.


Valparaíso de Goiás, 7 de dezembro de 1998

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