A grande farra, capa de Olivar Cunha, edição
do autor, Brasília, 1992, contos, 153 páginas
Em 1975, eu tinha 21 anos e morava em Manaus, a cidade mais sensual do mundo. Naquela época, eu trabalhava no jornal A Crítica e pelejava para escrever o suficiente para um livro de contos. Mas além do trabalho como repórter, que começava cedo da manhã e às vezes entrava pela noite, eu gastava meu tempo em bebedeiras intermináveis. Assim é que só publiquei o livro 17 anos depois, em 1992. Eu já morava em Brasília quando o publiquei em edição de autor, com o título A grande farra. Ainda é possível encontra-lo em sebos, por meio do Google.
Naquela época, em Manaus, um dia eu ia para o trabalho quando comecei a ouvir a palavra “Marcelo”, e assim foi por três dias, ao final dos quais, zonzo, senti que deveria escrever um conto com a personagem central chamada Marcelo, e assim o fiz, à noite, quando cheguei em casa. A história curta saiu de uma assentada, redonda, como se já estivesse pronta, precisando apenas ser passada para o papel, a qual intitulei de Outono. Depois disso, nunca mais ouvi a palavra Marcelo, exceto quando estou batendo papo com meu querido amigo Marcelo Larroyed.
Segue-se o conto Outono
A tarde estava bastante ventilada. O vento fazia os galhos das grandes mangueiras da praça balançarem-se, arqueados sob o peso das pencas de mangas. Quando ventava mais forte, mangas amarelas como ouro polido despencavam e produziam sons fragorosos. O canto das aves em bandos misturava-se à gritaria das crianças brincando, ou à cata de mangas, e ao som cavo, em surdina, que vinha do rio. A tarde atingira aquele momento fugaz, logo seguido pela noite, em que o mundo dá a impressão de parar um minuto, imerso em sons.
Marcelo estava sentado em um dos bancos da praça. Havia muita gente na tacacazeira ao lado da igreja e, no outro lado da rua, táxis estavam enfileirados, um ao lado do outro, no estacionamento ao longo do passeio. Adolescentes brincavam em torno da grande pedra de manganês que uns estudantes cariocas do Projeto Rondon pintaram de branco. Havia umas três mocinhas bonitas e Marcelo voltou a pensar em Adriana. Levantou-se e dirigiu-se para o Gato Azul, onde pediu um cuba-libre. Sentado no banquinho, no balcão, pôs-se a pensar.
O hospital parecia-lhe grande e descorado, entre as árvores. Adriana estava numa boa enfermaria, pareceu-lhe. “O senhor não pode ficar aqui” – disse-lhe uma enfermeira. “Mas pode voltar amanhã” – disse, com um tom amigável. Adriana estava pálida e dormindo. Perdera muito sangue durante o aborto.
Agora, ali no Gato Azul, Marcelo punha-se a pensar. Adriana queria que fosse uma menina, e que ela fosse bailarina ou pianista. Marcelo não tinha preferência, mas se fosse um menino haveriam de beber juntos no Gato Azul, e de viajar de barco para o Marajó.
Já havia bebido bastante. Foi para casa e se deitou. A noite estava fresca e a brisa levava-lhe o marulhar do rio. Isso, mais a bebida, fizeram-no adormecer imediatamente. O primeiro sonho que teve foi um pesadelo. Estava sozinho numa sala. A porta se encontrava aberta. Alguma coisa deveria entrar por ali. Não sabia o que era e isso o aterrorizava. Acordou. Levantou-se. Ligou a lâmpada e olhou pela janela o rio. A noite estava calma. A madrugada já iniciara. Lavou o rosto e pôs-se a ler uma revista. Havia um ensaio sobre a sexualidade dos árabes. Era interessante e o prendeu bastante tempo, até que adormeceu novamente, agora com a lâmpada ligada. Sonhou então pela segunda vez. Estava no trapiche em frente ao Macapá Hotel, e o rio Amazonas rugia. Havia, no trapiche, uma cadeira. Ele se sentou nela e se pôs a olhar para o rio.
Alexandre estava ali, ao lado dele. Era um pequeno muito bonito e de rosto muito adulto. Adriana deveria estar feliz porque o menino se salvara. E era menino. Haveria de conquista-lo e se tornariam grandes chapas. Iriam beber no Gato Azul e passear na Praça da Matriz. Adriana estaria linda como sempre, com seus olhos verdes e seus lábios de cupido, sorrindo encantadoramente. Iriam de barco a Afuá e no verão iriam para o Rio de Janeiro. E também pescariam no rio Amazonas.
Agora, no sonho, Marcelo estava pescando mandi, mas não fisgava nenhum e anoitecia. No outro lado da baía nuvens negras moviam-se. A oeste, estranhamente, o sol não se punha, mas agonizava, eterno, em brasas imóveis como pintura.
Quando Marcelo acordou, o sol batia na sua cara. Procurou Adriana e o menino, mas a consciência do que houvera o acordou de vez. Lavou-se, vestiu-se com roupas leves, e foi para o hospital.
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