Ray Cunha, 2011, em flagrante de Iasmim Moreira Cunha |
Nesta época, em Brasília, as manhãs são geladas, com a temperatura caindo até abaixo de 10 graus. É muito frio para quem passa a maior parte do ano com temperaturas em torno dos 30 graus. Este ano, o sabiá da minha quadra começou a cantar dia 3 de agosto, às 6 horas. Os sabiás habitam todo o Brasil e cada um tem o canto diferente do outro. As notas são as mesmas, mas o timbre e as variações são diferentes. É como a urina dos cães, que demarcam seu território por meio de ácido úrico. Os sabiás demarcam sua área com seu canto. Eles aparecem em agosto e vão até o início do ano seguinte, atraindo as fêmeas e expulsando rivais com seu canto. É a festa da procriação. Em Brasília, em cada quadra, há um sabiá reinando na primavera, que se aproxima, e no verão.
Levanto antes que os sabiás comecem a cantar, às 5, faço as abluções e preparo café, Três Corações, gourmet. Bebo três xícaras médias do bom arábica, com duas fatias de pão de passas. Às vezes, saio antes das 7 horas. Nesta época do ano, de manhã cedo, está sempre frio, mas é frio tropical, basta um casaco de lã para me sentir confortável ao atravessar o Setor Comercial Sul, numa caminhada redentora em meio a tantas mulheres bonitas e perfumadas, algumas com os cabelos ainda molhados, até a rodoviária do Plano Piloto, onde tomo ônibus metropolitano para o jornal DF-Goiás, em Luziânia, no Entorno Sul e distante 58 quilômetros de Brasília. Quando não medito em casa, no oratório, conecto-me no ônibus mesmo com Deus.
O cientista mais brilhante da era moderna, o judeu-alemão Albert Einstein, disse que acreditava no Deus do filósofo holandês Baruch Spinoza, “que se revela na harmonia de tudo o que existe”, manifesta-se apenas em a natureza ordenada do Cosmos. Deus jamais será medido por recursos físicos, ou pelos cinco sentidos. Sentimo-Lo pela intuição. Alguns de nós têm a percepção altamente desenvolvida, como o príncipe nepalês Siddhartha Gautama Buda, o carpinteiro judeu Jesus Cristo e o filósofo japonês Masaharu Taniguchi. Então, sua Luz bendita inunda nossas células, a alma.
Há também artistas que manifestam Luz. Quando ouço o Concerto para Piano e Orquestra, em Ré Menor (número 20, K 466), do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, sinto a Terra roçar o espaço, da mesma forma que ao me desfazer no acme e me transformar em luz. Cientistas comprovaram que a Quinta Sinfonia do alemão Ludwig van Beethoven mata células cancerígenas, assim como Atmosphères, do húngaro György Sándor Ligeti.
Domingo, completo 57 anos. Nasci às 5 horas de 7 de agosto de 1954, numa cidade localizada na esquina da Linha Imaginária do Equador com a boca do maior rio do mundo, o Amazonas. Macapá é o nome da minha cidade natal. Além da sua singularidade, se debruçar para a boca do rio Amazonas, que despeja 220 mil metros cúbicos de água por segundo no oceano Atlântico, suas noites, tórridas, cheiram a jasmim. Há, portanto, no meu DNA, a Amazônia.
Hoje, já não sinto a gana de quando tinha 21 anos. Naquela época, eu amava como leão e bebia como Hemingway, e me internava na noite, essa grande amante, armado apenas da beleza suprema da juventude. Já não tenho arma, porém arranco gemidos ainda mais altos da mulher amada, porque nas minhas mãos há luz. Também não dilacero mais carne, embora minhas mãos tenham se transformado em tenazes de nióbio, mas que roçam a pele da mulher amada com a leveza de uma pétala de rosa colombiana.
Completo 57 anos domingo 7, contudo não sinto mais o fluir da vida no tempo, mas como o grande rio, que escorre, ininterruptamente, para o Atlântico. A Terra, a lei da gravidade, aos poucos dá lugar à luz, portal entre o mundo fenomênico e a dimensão espiritual. Ouço murmúrios na tarde, Mozart, e caminho para a noite. O perfume noturno é intenso – Chanel número 5, noites tórridas sob o choro dos jasmineiros, mar, Don Pérignon, safra de 1954, leite da mulher amada, são os cheiros que sinto agora e agora, o momento mesmo da vida.
Meus cabelos ainda são negros - há quem pense que os pinto -, mas são cada vez mais ralos. Minha pele, aos poucos, vai sofrendo a oxidação de maracujá de gaveta e os desconhecidos já me olham desconfiados, pois normalmente confiamos em pessoas de até 30 anos. Já não bebo mais, nem vinho, depois de 43 anos mergulhado no álcool, como uma poça que se avolumou e começa a secar. Ouço, agora, o silencioso som da madrugada, emociono-me ao ver crianças, choro de alegria no jardim prenhe de rosas, e voo no riso da minha filha e da mulher amada, e de todos que eu amo.
Já não tenho mais apego e não quero nada que não seja meu, e tudo o que é meu está guardado num relicário, no meu coração. Minha riqueza é imensa, pois à minha passagem os jardins florescem, as crianças riem e a Luz triunfa.
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