A embarcação mergulhava a proa e dava a sensação de um dorso de cavalo a galope. Durante toda a manhã foi assim. À tarde, o sol amarelava a baía; não havia vento e o calor estava sufocante. E assim passou-se o dia até a noite, quando chegaram à ilha ao largo de Marajó.
Cedo, no dia seguinte, contornaram a ilha, desembarcaram e se internaram no mato em busca de porcos, que tinham sido vistos naquele ponto. Os rapazes avistaram uma clareira, onde erguia-se um taperebazeiro, e ouviram os porcos. Jiparaná se abaixou para ver as pegadas e um porco passou desembestado por eles. Isaías engatilhou a doze, mas o porco sumira no mato. Jiparaná pediu a doze e quando pegou a arma ela disparou para o ar.
- Bando de filhos da puta! Como é, seu sacana, que tu me dás esta porra engatilhada, em, seu filho da puta?
- Lá está ele! – gritou um dos caboclos, apontado para o porco, que estacionara adiante e procurava orientar-se. Entraram no mato atrás dele e conseguiram-no encurralar numa capoeira impenetrável. Jiparaná disparou. O animal deu um grunhido e caiu. Fora atingido na cabeça.
À tarde, a ilha pareceu inflar. Surgiram praias até onde alcançavam os olhos.
- Vamos levantar, cambada de vagabundos – disse Jiparaná, sob o protesto dos rapazes. Jiparaná ergueu Carlos da rede e foi atirá-lo no rio, do extremo do trapiche. – Vou fazer uma operação daqui a pouco – disse, enquanto tomava um gole de café. – Alguém quer ir comigo?
Só João quis ir e Jiparaná largou-se com ele e um caboclo.
- Outro dia peguei uma criança. Estava morta. Quase podre já.
- E agora, o que é?
- Gangrena.
A casa havia surgido ao longe. Na frente havia meia dúzia de crianças. Quando os avistaram as crianças entraram correndo.
O doente gemia numa rede atada na parte central da casa.
Jiparaná olhou a mão gangrenada e fez uma careta, e pediu que fervessem água.
- João, me dá a maleta. – Tirou um bisturi, Quelene e álcool. João guardou para si uma caixa de Quelene, sem que Jiparaná notasse.
Não havia muito o que fazer. O doente teria que ser removido para Macapá na madrugada seguinte. Jiparaná fez suas recomendações e disse que passaria, com a maré, para pegar o doente. De volta à ilha aproveitariam o que sobrava do dia para pescar.
- Vou dar uma cagada enquanto isso... – disse João, apanhando uma Bíblia. Então mostrou um frasco de Quelene para os outros rapazes. Tomaram um caminho que dava para o mato. Sentaram-se e puseram-se a cheirar Quelene. João sacou meia página da Bíblia e preparou um cigarro.
- Só falta agora Abbey Road e a Telma – disse Isaías.
- E vodca também – lembrou João.
- Com laranja – Carlos completou.
- A Telma é uma delícia...
- Ela deve estar banhadinha uma hora dessas, escutando os Beatles.
Jiparaná os chamou. Foram pescar nos poços ao longo da praia. Os peixes não morriam imediatamente, envenenados pelo timbó, e uma grande piramutaba saltou de dentro da rede, caindo no poço, para logo depois flutuar.
A noite caiu. E tudo pareceu imerso dentro da noite. A ilha era a casa. Quem se aproximasse da casa veria a brasa dos cigarros, que se alumiavam, de vez em quando, pousados no piche da noite.
Do livro de contos A grande farra (edição do autor, Brasília, 1992, 153 páginas, esgotado)
Nenhum comentário:
Postar um comentário