A luz amarela do sol esvaía-se. Isaías levantou-se e foi à janela; ficou observando, por algum tempo, o trânsito lá embaixo. Tinha dormido doze horas e sentia-se muito bem. Foi ao banheiro, sentou-se no vaso e lá ficou durante um bom tempo. “Posso ir à casa de Babí” – pensou. Levantou-se. Saiu do banheiro e foi até o telefone. Ligou para Babí. Ninguém atendia. Voltou ao banheiro. “Porra!” – disse. A água estava boa.
Pouco depois, no balcão do La Bodega, batia papo com Tio. Vestira-se de branco, exceto os sapatos e as meias. Pusera seu melhor sapato. As meias eram cor da pele. As calças, de linho, eram folgadas, tanto quando a camisa de seda.
A noite, através da vidraça, caía mais lenta. Era fim de maio, e lá fora o sol ainda agonizava, entrando, finalmente, nos espasmos do crepúsculo. Mas de dentro do bar era como se víssemos de óculos escuros a tarde. Estava agradável. Tanto lá fora a tarde, quando dentro, no bar. O ar refrigerado batia na pele recém-lavada e produzia uma sensação de prazer, que aumentava com o silêncio envolto a fragmentos de conversas das poucas pessoas que se encontravam, àquela hora, ali. O som da buzina de um automóvel atravessou a porta do bar e foi morrer na penumbra, ao som de Thender Is the Night. Isaías olhou para fora, através da vidraça, e viu que era noite. Automóveis cruzavam as ruas, na esquina, e de vez em quando estacionavam em frente ao bar, com suas luzes vermelhas pigmentando a noite.
O bar, às sextas, lotava sempre. Às oito, o burburinho aumentara. Havia muitas mulheres bonitas, mas nenhuma como Babí. Viu aquela moça promíscua, que estudava medicina e que bebia muito e fumava também. Ali estava o tipo que uma vez saíra sem pagar, mas voltar – certamente não podia passar sem ir ali. Do outro lado, havia um pai e uma rechonchuda garotinha, ocupada ora em espetar com um garfo o sanduíche que o pai cortara, num prato, ora a fazer-lhe perguntas, que o pai ia respondendo sem tirar os olhos do Jornal do Brasil. Havia também três moças tão lindas que causavam sofrimento em quem as visse e nada pudesse fazer, além disso. Havia ainda um negro e um mongoloide, que agora estavam saindo. Quando chegaram, o negro ofereceu cachaça ao garoto, e ele riu muito da piada. Serviram-lhe meio abacaxi recheado de sorvete e frutas. Ele olhou maravilhado para aquilo e pôs-se a comer como quem desmonta, cuidadosamente, uma casa. O negro, ao seu lado, bebia chopp, satisfeito com a felicidade do garoto. As mesas, nos fundos, também estavam ocupadas. Isaías reconheceu, numa delas, um radialista em companhia de uma ninfeta, avistou um plantador de urucu e notou as presenças de um político, de um editor de jornal e de um piloto de avião, que conhecera no Aeroclube de Belém.
“Bem que o João podia estar aqui” – pensou. Só havia um problema, que era a dipsomania do João. Mas poderiam falar de Curzio Malaparte, Fiódor Dostoiévski e Fraz Scott Fitizgerald.
- Quem sabe ela já não chegou? – disse Tio, servindo-o de mais um gim-tônica duplo. Tio já estava ao telefone ligando para Babí. Desta vez ela atendeu.
- É o Isaías!
- Meu Deus! – disse ela, sem crer.
- Vem para o La Bodega – convidou-a. Mas ela não queria acreditar que fosse ele mesmo.
- Meu Deus! – voltou a dizer.
- Cheguei ontem.
- Ontem? E por que você não me ligou ontem? Só agora é que você me ligou?
- Vem logo. Estou à tua espera.
- Vou tomar banho e em uma hora estarei aí.
- Está certo.
Pôs-se a beber, devagar, mergulhado em fantasias. Babí, com seus olhos verdes, que pareciam soltar estrelinhas, o rosto ovalado, lábios carnudos, cabelos crespos e longos, olhando-o nos olhos, sorrindo, beijando-o, gozando, beijando-o quase com violência, tirando, inutilmente, os cabelos que lhe caíam no rosto e entravam na boca, debruçada sobre ele, a comê-lo.
Uma chuva fina e passageira caiu e molhou o asfalto, a calçada em frente ao bar e a capota dos carros estacionados no meio-fio.
Sentia-se bêbedo. “Cadela” – disse para si. “Devemos deixar que as mulheres nos escolham; assim, serão nossas sem reservas” – pensou, lembrando-se do quanto insistiu cortejando Babí. Viu, pelo espelho, quando ela entrou no bar.
- Deus! – disse para Tio. Ela estava muito linda mesmo. As três beldades tiveram de olhar para ela. Babí atravessou o salão completamente indiferente, os olhos verdes em Isaías. Eram os olhos verdes mais bonitos que pudesse haver. Grandes, grandes. Sentou-se, no tamborete, ao lado de Isaías.
- Muito bem! – disse. – Aqui está nosso caçador. Para a caça – disse, voltando-se para Tio -, um dry Martini.
Isaías beijou-a.
- Assim não! – ela protestou. – Está violento demais. – E beijou-o. Babí beijava e a sensação que se tinha era de que ela se esvaía, evanescente, nos nossos lábios, mas sabia-se que ela estava ali, nas nossas mãos.
- Deste vez quantos troféus trouxe o meu caçador?
- Meu grande troféu és tu.
- Você porá minha cabeça na sala?
- Vivo em quartos sórdidos de pequenos hotéis.
- Então case-se comigo.
Ele ficou um pouco triste.
- Ora, tu não viverias naqueles buracos miseráveis, na selva.
- Eu o aguardaria sempre na cidade.
- Traindo-me... Eu te amo, Babí, mas o mato é minha vida. Não saberia ganhar dinheiro senão levando esses alemães ricos para matar jacaré. Às vezes, ganho um bom dinheiro quando me exibo, matando onças.
- Receio que o IBDF o flagre.
Ele riu.
- Isto aqui é Cuba antes de Fidel Castro.
Os olhos de Babí estavam da cor do dry Martini. Ele olhou-a suplicante.
- Vamos! – pediu-lhe. Quase ordenou.
O motel estava imerso no recolhimento. Motéis despertavam um sentimento ambíguo nele, um sentimento de recolhimento, mas, ao mesmo tempo, de vulgaridade. A ssíte era silenciosa e limpa, mas a penumbra sempre o afetava. Se não estava na selva, gostava de muita claridade. Pegou o aparelho de TV e o tirou do quarto. Depois, foi à cama e experimentou-a. O desgosto aflorou no seu rosto. O colchão d’água parecia-lhe demasiadamente vulgar. De qualquer modo já estava infeliz mesmo. Relembrou o que houvera. Misturara profissão com prazer. E de um modo imperdoável. Se ao menos tivesse apenas tido um caso com a alemã, estaria quase bem. Mas apaixonara-se por ela. E ela, agora, uma condesinha, devia estar se divertindo por aí.
Despiu-se e foi para o banheiro. Babí estava lá, nua, linda, sob a ducha. Ele entrou e beijou-a.
- Não, aqui não – Babí protestou.
- Aqui – disse-lhe.
Ela olhou-o. Estranhara-lhe a voz.
- Não, Isaías, aqui não!
- Aqui sim, e já!
- Você está me machucando, Isaías!
- Vamos, vaquinha!
Ela estava perplexa e pôs-se a chorar enquanto ele a tinha. Quando ele saiu do banheiro, deixou-se sentar no chão, e seus olhos verdes choravam; eram tudo quanto se podia ver naquele quarto.
Ele se deitou e dormiu.
Do livro de contos A grande farra, edição do autor, Brasília, 1992, 153 páginas, edição esgotada
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