quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

É fácil morrer à noite

Belém em dezembro, paradoxalmente desmoronando, sólida, sob
o chumbo aquoso do mundo das águas. Foto de Luiz Braga

De onde estava, podia ver os luminosos e os faróis dos carros sob a chuva torrencial. Bebeu um gole, grande, e voltou a olhar para a rua. O bar tinha portas largas e um toldo sobre o passeio público, onde Reinaldo se sentara, de modo que recebia o vento embebido de água. Era uma chuva de fim do inverno amazônico, que não demorou. Nem bem a chuva passou as pessoas que estiveram abrigadas voltaram para a calçada. Mas foi uma trégua curta, pois a chuva voltou mais forte.

Pediu outro gim-tônica, que Muhammad Ali preparava bem forte para ele, e voltou a prestar atenção para a rua. Gostava de ir ao Castelo de Ouro e ficar apreciando o movimento e ficar apreciando o movimento da rua; isso o entretinha, e hoje havia aquela chuva, com luzes sob ela como pinceladas impressionistas, e as pessoas que corriam, lembrando soldados que pretendessem tomar uma trincheira. Pensou nas chuvas que duram três dias. As grandes chuvas começam chuviscando, mas sempre são anunciadas por trovoadas e duram três dias. As manhãs são desoladas e crepusculares. À tarde, começa a rescender a cheiro de água, e as crianças se divertem na chuva até ficarem roxas. A cor de barro do céu metamorfoseia-se de negro, se desfaz lentamente e encobre a cidade. A noite é fria, e o frio, um túnel negro e pastoso. A porta de um bar fosforesce na noite, como a boca do inferno. Lá dentro é quente e úmido, e fumacento e ácido. Bêbedos ordinários estão atentos como lobos. Entrou no bar e pediu uma Antarctica. Alguns bêbedos o assediaram. Pagou uma dose de cachaça para cada um e foi se refugir no outro lado do balcão. Os bêbedos ficaram olhando-o, matutando um meio de se aproximar dele, com suas caras de vira-lata sob o efeito de uma cadela no cio. Pediu para si uma dose de Pitú. A aguardente desceu-lhe garganta adentro, aquecendo-o, enxugando-o e molhando seus nervos. Havia um papa-defunto perto da porta. Viu quando o garçom se dirigiu para a mesa do papa-defunto e limpou-a. O garçom assentiu com a cabeça e foi, manquejando, preparar uma bebida. O papa-defunto ergueu os olhos para Reinaldo. Era um olhar desconfortável. Reinaldo tomou outro gole, mas dessa vez a bebida quis voltar. O papa-defunto levou a mão ao bolso interno do casaco. Havia ali um volume. Era um maço de cigarros. Pediu mais um gim-tônica. Tomou um gole e a bebida refrescou seus nervos e o livrou mometaneamente dos bares infernais da paranoia.

Parara de chover. Consultou o relógio: onze horas. Sentiu fome. Saiu a caminhar. Não queria ir para casa. Sua mulher, que estava grávida, haveria de se enroscar nele, lamurienta.

- Eu ia ter o neném sozinha – diria. Ouviria os passos da governanta no corredor e o som dos nós dos dedos dela na porta. Quereria saber se madame estava bem. O médico estaria pronto para uma emergência. Tudo preparado como uma Luger.

Apanhou um táxi.

- Hotel Ver-O-Peso – disse. O motorista era jovem e queria ser agradável, portanto aumentou o volume do alto-falante atrás da nuca de Reinaldo. Um berro em inglês se fez ouvir. – Desligue o rádio, por favor! – pediu.

- Não é rádio – disse o jovem. – Mas vou desligar...

Lá em cima, no restaurante do hotel, havia aquela atmosfera suburbana de hotel três estrelas. Pediu, sem consultar o cardápio, filé com fritas e uma Antarctica. O garçom andava apressado e parecia onipresente em todas as mesas, mas, na verdade, demorava-se muito para atender efetivamente os fregueses. Reinaldo queria ir embora quando ele apareceu com o filé e batata frita.

- O senhor quer arroz também?

- Sim! – disse Reinaldo, e pôs-se a comer. Estava faminto. Se quisessem acertá-lo que fosse de barriga cheia. Não o pegariam como daquela vez no calçadão da Avenida Braz de Aguiar. Era o fim da tarde e a noite insinuava-se como doce música. Sentiu alguém tocá-lo no ombro e encostar-lhe algo nos rins. Um tapa de vento fez a rua desaparecer e caiu no vazio, exceto pelo medo concreto, de gelo, que o paralisou.  

- Arria tudo.

Então o pistoleiro era ladrão também? Voltou-se e viu um louco e o grande pente verde que ele, agora, afrouxava das suas costas.

- Filho da puta! – disse, sentindo aquela paralisia evaporar-se. Aspirou gulosamente o ar, confiante, e foi embora, deixando o louco a olhá-lo, desolado.

O Ver-O-Peso cochilava. Atravessou o Boulevard Castilhos França e caminhou devagar, na esperança de encontrar um vendedor de amendoim. Duas mulheres cruzaram com ele e o olharam cobiçosas. Pensou em Celina. Pegou um táxi e foi para casa.

Naquela hora, a casa dormia, como toda a rua. Apenas as mangueiras estavam acordadas, ainda molhadas, como mulher que sai do banho. Sentiu que poderia ser morto ali e se revoltou contra a facilidade com que se pode ser assassinado. Talvez, desde cedo, o matador estivesse ali, a esperá-lo. Abriu o cadeado do portão e entrou. O robusto fila veio lamber-lhe a mão. Reinaldo afagou-lhe a cabeça e se agachou para beijá-lo. “Talvez o tiro venho agora” – pensou. “Ou talvez ele tenha se cansado e ido embora” – disse em voz alta. “Mas um pistoleiro nunca abandona seu esconderijo à espera da presa.” O cão o ouvia atentamente e mordeu levemente a mão de Reinaldo.

Celina dormia a sono solto, nua. Reinaldo se despiu, foi ao banheiro e limpou os dentes com fio dental, nas não estava disposto a escová-los. Lavou o rosto e foi deitar-se. Nem bem se acomodou e ela se voltou para ele, sem acordar, e o abraçou e murmurou alguma coisa. Era cheirosa e seus cabelos, curtos, permaneciam bem escovados. Reinaldo encostou seus lábios na boca de Celina, depois beijou seu nariz arrebitado. Ela abriu os olhos. Eram grandes e castanhos, quase verdes. Ele lhe disse algo no ouvido.

- Não! – ela disse, num longo miado. Mas se virou de costas para ele. A gravidez selara-lhe mais as costas, e vista assim, à luz do abajur, era roliça e macia, as coxas grossas e brancas, e os seios volumosos e delicados. Reinaldo gostava de pegá-los por trás dela, de mergulhar a mão no seu púbis e ouvir seu ronronar. Não era decente, agora que teria seu primeiro bebê, que o matassem. Queria comprar as bonecas mais graciosas para o bebê, se fosse menina, ou então, se fosse menino, pensava que seriam grandes amigos, e quando ele crescesse sairiam juntos para bater papo e beber, empoleirados no balcão do Café Cosa Nostra. Manteriam grandes papos, ele, tomando gin fizz, ou daiquiri, ou qualquer outra bebida preparada pelo Filgueiras, e seu grande amigo tomando um grande sorvete. “Haveria sorvete no Cosa Nostra?” Era algo sobre o que não tinha pensado ainda. Fora um dia puxado no jornal. Precisava se afastar da Editoria de Polícia. Haveria de sair da cidade logo que o bebê nascesse. Firmemente  seguro ao corpo redondo de Celina todos os bandidos da cidade se puseram em debandada e uma lassidão adveio ao jorro com que inundou a mulher, que se virou para ele e se pôs a lamber-lhe o rosto, ronronando, mais gemendo, agora, que ronronando.

A manhã veio vermelha para a janela, e um sabiá cantou durante muito tempo, até Reinaldo sonhar com as manhãs encobertas de neblina em Pedra de Guaratiba.


Do livro A Grande Farra, edição do autor, Brasília, 1992, 153 páginas, esgotado

Nenhum comentário:

Postar um comentário