A tarde desmaiava, assaltada por flocos negros, invisíveis,
acamando-se na cidade, e logo os anúncios luminosos, as luzes dos postes e os faróis
dos carros começaram a povoar as ruas. Dentro do bar, onde eu estava, de repente
a vida recomeçou. Podia ver parte do Setor Hoteleiro Sul, o Pátio Brasil e alguns
prédios do Setor Comercial Sul. Em primeiro plano, o anoitecer me ofertava o
passa-passa de mulheres tão lindas que eram, estou certo disso, miragens. Lá
fora, o tempo estava seco e quente como um soco na boca do estômago, mas dentro
do bar o ar refrigerado e o umidificador funcionavam ajustados como um foguete
tripulado.
- O Mensalão começou a respingar no Chefão – disse meu
amigo, velho jornalista que não conseguiu se adaptar aos novos tempos. Quanto a
mim, ainda logrei ajustar-me a treinamento motivacional, coaching, como se diz, voltada para o que eu chamaria de “escravidão mansa”. Lembrei-me
de William Faulkner: “É uma vergonha que haja tanto trabalho no mundo. Uma das
coisas mais tristes é que a única coisa que um homem pode fazer durante oito
horas diárias, dia após dia, é trabalhar. A gente não pode comer, beber ou
fazer amor durante oito horas diárias: só o que se pode fazer, durante oito horas,
é trabalhar. Eis aí a razão por que o homem torna a si próprio e a todos os
demais tão miseráveis e infelizes”.
- Mas não te iludas; gente como o Chefão está tão blindado
que nem Klark Kent conseguiria prova contra ele – disse-lhe. – Continuará chiando
sua algaravia.
Uma jovem entrou no bar do hotel. Remetia imediatamente a
jambo maduro, com sua alva pele cafuza, e longos cabelos de índia descendo-lhe
como ervas daninhas até a garupa de DNA africano. Trajava vestido de seda
branco, estampado de amarelo e vermelho. Foi direto para o balcão e se aboletou
num tamborete, os quadris maravilhosos enchendo meus olhos, e os do meu velho
amigo jornalista, que perdeu, de repente, o interesse pelo Chefão. Duas jovens
europeias, com suas peles brancas, rosadas, quase vermelhas, inflamadas pelo
sol tropical, também olharam para a cafuza, que deixou um rastro de jasmineiros
chorando em noites tórridas em Macapá, cidade que flutua na boca do maior rio
do mundo, o Amazonas. A cafuza pediu água tônica. Inadvertidamente, levei minha
água tônica à boca. Gelada, refrescante, a bebida assumiu sabor de Caribe, ao
som da voz da mulher improvável, que tinha sotaque francês. “Será da Guiana
Francesa?” – pensei, referindo-me à colônia que os franceses mantêm vizinha ao estado
do Amapá, que o senador Zé Sarney, o dos Atos Secretos, anexou ao Maranhão.
Meu velho amigo jornalista suspirou. Parecia o último
suspiro de décadas de álcool, cigarro, noites indormidas, desregramento.
- Produto genuíno do trópico – cochichou-me, quase babando.
Fiz sinal ao garçom para que levasse mais uma garrafa de água tônica para mim e
uma Cerpinha para meu amigo. Cerpinha é a melhor cerveja do mundo. Quando eu
era alcoólatra e ia a Belém, começava a beber Cerpinha enquanto tomava banho e
depois observando a cidade pela janela do quarto de hotel, de modo que ao
mergulhar nas veias da Cidade Morena já estava pronto.
- É da Guiana Francesa – disse-lhe. – Ou de Macapá, há muito
tempo morando em Caiena.
- Conheci uma assim no Acre – confidenciou-me.
De repente, lembrei-me de Gabriela, Cravo e Canela, em cartaz na Globo. A mulata, a mulher
cor de canela, a negra, a índia, mulheres produzidas para a libidinagem dos
europeus e brasileiros de sangue azul. Um paradoxo. Mesmo com 10 mil anos de
polimento, levado ao paroxismo em países como a Grã-Bretanha, a natureza
masculina conserva o animal irracional que a habita. Se queres conhecer a
verdadeira personalidade de um homem, lança-o à guerra, ou enche-o de cachaça,
ou observa seu comportamento ao assalto de uma mulher fatal.
- Temos mulheres assim em toda a Amazônia – comentei, pois
sabia que meu amigo conhece a Hileia tanto quanto eu, o que quer dizer que
ambos já mergulhamos na alma da mulher amazônida, e sentimos o mundo girar, a
mesma experiência de tomar tacacá às 6 horas da tarde na banca do Colégio
Nazaré. Jambu! Jasmineiros chorando! Cerpinha! O céu, tão azul que sangra!
Maresia! O balanço de uma rede! Leite da mulher amada! Jambo, doces como seios!
A cafuza fazia, agora, anotações em um caderno tipo
Moleskine, e vi que era da Tilibra. Seria jornalista também? Ou secretária
executiva de algum bilionário do ramo dos hotéis fazendo prospecções para a
Copa do Mundo de 2014? Seja lá o que for, era tão linda que causava dor. Eu
estava tão concentrado nela, que a mulher improvável se voltou para mim. Só
então vi seus olhos, de clorofila, duas pedras preciosas a me engolirem. Fiquei
petrificado, com o mesmo terror que deve acometer as presas na boca do jacaré.
Depois percebi que o olhar da cafuza fora ocasional, que ela sequer me viu, nem
à sua saída, deixando um banzeiro de romance e aventura na noite. Meu amigo e
eu ficamos calados. Eu sabia o que ele estava pensando e ele também sabia
perfeitamente o que eu sentia. Logo depois saímos. A noite era como um
relicário de joias. Mais tarde, em outro bar, ouvi, quase inaudível, vindo de
algum lugar, Zorba, o Grego, de Mikis
Theodorakis.
Brasília, 15 de novembro de 2012
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