Cheguei ao Rio de Janeiro num dia de semana, sem lenço e sem
documento, em 1972. Tinha 17 anos e não portava sequer carteira de identidade,
e contava apenas com o terceiro ano do antigo curso ginasial, hoje, ensino
fundamental. Queria sair de Macapá. Tomei um barco para Belém e de lá viajei de
carona para Brasília e depois tomei um ônibus para o Rio de Janeiro, levando
comigo alguns exemplares de Xarda
Misturada, livro de poemas que publiquei em 1971, em Macapá, com Joy Edson
(José Edson dos Santos) e José Montoril. Lembro-me que cheguei no meio da tarde
e na rodoviária pedi informações e tomei um ônibus para o coração do Rio de
Janeiro, o cruzamento das avenidas Presidente Vargas e Rio Branco, onde fica a
antiga catedral da cidade de São Sebastião. Levava comigo o endereço de
trabalho de uma amiga do pintor e poeta Manoel Bispo, de Macapá, e a confiança
inabalável de um garoto ribeirinho de que a amiga do Manoel Bispo me receberia
de braços abertos. Localizei-a quase à saída do trabalho; já na rua ela me
olhou e me disse que eu não poderia ficar na casa dela, desejou-me boa sorte e
sumiu na multidão.
Eu levava também comigo o endereço de um amigo que conheci no
Colégio Amapaense, Sílvio, paulistano que fora para Macapá com o pai, um
americano que trabalhava na Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e
Manganês (Icomi), que, juntamente com a Bethlehem Steel, transportou do
município de Serra do Navio, para os Estados Unidos, a jazida do melhor
manganês do planeta, a preços vis, e deixou uma imensa cratera no Amapá.
Na época, o Sílvio morava com os tios na Alameda São
Boaventura 208, Fonseca, Niterói. Cheguei lá à noite. O Sílvio, sua tia e seus
primos me receberam muito bem. Em novembro daquele ano apresentei-me na
Primeira Região Militar do Exército. Eu meço 1,64 metro de altura, e creio que
pesasse, naquela época, 50 quilos (hoje, peso 64 quilos), também a mudança de
clima e a poluição causaram uma coceira no meu corpo todo, de modo que fui
dispensado do serviço militar, e vi meu propósito de morar no quartel
esfarinhar-se.
O tio do Sílvio era um oficial da Aeronáutica, negro, coisa
rara na Ditadura dos Generais (1964-1985). Acho que o episódio que aconteceu naquela
noite foi reflexo daqueles anos de chumbo. O tio do Sílvio chegou mais cedo. Eu
estava tocando violão na sala. Aprendera-o em Macapá com um amigo de
adolescência, Ribamar Teixeira. O tio do Sílvio ordenou que fôssemos todos dormir.
Eu dormia num sofá, na varanda. Continuei tocando violão. Então o tio do Sílvio
veio do quarto dele e ordenou que eu pegasse minhas coisas e fosse embora.
Juntei meus pertences – algumas roupas e exemplares de Xarda Misturada – e fui para a rodoviária central de Niterói. Foi
uma longa noite. Só senti mais frio na estação aeroviária de Buenos Aires, em certa
noite que lá passei, e da qual surgiu o poema Noite Horrível, publicado no livro Sob o Céu nas Nuvens (edição do autor, Belém, 1982).
Só quem passa uma noite dessas é que sente o quanto o sol do
alvorecer é vivificante. Nem bem o dia amanheceu, lavei o rosto, tomei café com
leite e pão com manteiga e me mandei para a representação do governo do
Território Federal do Amapá, no centro do Rio de Janeiro. O representante, Couto,
era conhecido por ajudar amapaenses. Conversamos. Ele me perguntou se eu
conhecia o Itabaraci, que é de uma geração ligeiramente antes da minha, de
Macapá (onde hoje vive); contudo, seu pai, Aimore (em tupi, não leva acento
agudo na última sílaba) Nunes Batista, era padrinho da minha irmã caçula, Rosa
Maria. Disse ao Couto que sim, conhecia o Itabaraci, e ele me deu um conselho.
- Vai procurar o Itabaraci; ele mora num apartamento em
Copacabana, onde a senhoria, dona Maria Antônia, aluga vagas – disse-me ele, e
me deu o endereço: Rua República do Peru 210, Apartamento 204, entre as ruas
Tonelero e Barata Ribeiro, Copacabana. Vivi dois anos lá.
Dona Maria Antônia, paraense, funcionária dos Correios, há
muito radicada no Rio, foi uma das mulheres mais bacanas que encontrei. Ela simplesmente
me acolheu, e só passei a pagar vaga depois que ela mesma conseguiu emprego
para mim, como ajudante de carteiro numa agência dos Correios em Copacabana, e
depois como faz-tudo numa empresa de conserto e venda de peças de
eletrodomésticos, primeiramente numa loja em Ipanema e depois em Copacabana.
Quanto ao Itabaraci, e seu irmão, o violonista e pianista Aimorezinho, que
nessa época tocava na banda do Raul Seixas (hoje, vive em fortaleza),
trataram-me como a um príncipe. Por isso sou eternamente grato a eles.
Logo depois, o compositor amapaense Luiz Tadeu Tavares Magalhães,
que estava morando no Rio e trabalhava na White Martins, conseguiu para mim uma
vaga como contínuo na filial de Jacaré, na Zona Norte. O Tadeu era músico e
radialista em Macapá, e me entrevistara várias vezes, na condição de escritor. Em
1971, antes de publicar Xarda Misturada,
participei de um jornalzinho colegial anarquista, A Rosa, de modo que eu tinha ideia de como fazer um house organ, e
foi o que eu fiz, o jornalzinho da filial. Além disso, eu pagava mensalmente uma
empresa que fornecia entradas a pelo menos quatro peças teatrais por mês. O
gerente da filial, dr. Arlindo, também era cliente da mesma empresa, e andamos
nos encontrando nos teatros. Conclusão: ele morava em Ipanema e passou a me dar
carona para Copacabana quando saíamos juntos. O jornalzinho e o interesse comum
por teatro entre o gerente da filial e eu, além da companhia do Luiz Tadeu,
tornavam o ambiente pesado de multinacional da White Martins em um convívio
bastante agradável.
Às sextas-feiras, principalmente após recebermos o salário,
eu saía com o Luiz Tadeu. Às vezes, íamos para a casa do nosso colega de White
Martins, Frank Loiola Matos, em Padre Miguel. O fato é que bebíamos muito.
Também foi nessa época que conheci o Luiz Loyola, Lula, irmão do Frank, no Curso
de Interpretação Teatral no antigo Teatro de Comedia do Estado da Guanabara
(Teco), na turma do professor e ator Jorge Paulo. A prova final do curso foi a
encenação de Morte e Vida Severina,
de João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque de Holanda, no
extinto Teatro de Arena no Largo da Carioca. Fiz um dos coveiros. Nessa mesma
época, começamos leituras e laboratório da peça Miolo de Pão, texto de Luiz Loyola e que expressava “a realidade
conflitante, festiva e utópica de uma família do subúrbio carioca” – como diz o
próprio Loyola. Nós nos reuníamos na casa do Jamil Viana, na Pavuna; na casa da
belíssima Beth Bello, na Ilha do Governador; e na Vila Valqueire.
No quarto do Loiola, BOE (Boite Onda Estudantil), na casa em
Padre Miguel, “aconteciam reuniões com muita música, teatro, poesia,
happenings, num clima underground e ambiente psicodélico, cheio de posters de
vanguarda, caricaturas, painel com capas de LP, objetos antigos, como um armário
centenário com um enorme espelho de cristal na frente da porta, que encantava
os narcisistas, uma luminária em formato de chapéu mexicano vermelho, iluminada
por uma tênue luz azul opaca, lembrando cabarés da Avenida Prado Júnior, no
Leme; no chão, havia um espelho retrovisor redondo, de aproximadamente um metro
de diâmetro, do serviço de trânsito do Rio, apelidado de “poço” pelo
companheiro de trabalho Paulo Cesar Americano do Brasil, da Remington Rand,
onde trabalhei com Luiz Tadeu no inicio da década de 70” – lembra Luiz Loiola.
“Num desses eventos, em uma noite festiva, tive o prazer de
receber o amigo Ray Cunha, sutilmente trajando: calça jeans do Lixo (boutique
cult de Copa), camisa mangas compridas com gola rolé cor roxa e sapatos bicolor
vermelho e amarelo... a figura tinha cabelos ruivos black-power no melhor
estilo saltimbanco do ator do filme musical Gospell...
em sua companhia chegaram Luiz Tadeu e Iara Picanço, depois de uma viagem de
trem da Central do Brasil, direto do subúrbio do Lins de Vasconcelos” – recorda
Luiz Loila.
“Numa única visita à casa de Ray Cunha, na Rua República do
Peru, em Copacabana, na década de 70, o poeta me recebeu em seu quarto (vaga),
onde havia uma cama beliche e o seu estado de saúde era gripal e febril, e
driblamos aquele quadro e resolvemos sair pra respirarmos uma brisa do mar
caminhando pelo calçadão, depois paramos numa lanchonete e tomamos um delicioso
café e suco de laranja com sanduíche, e serpenteando pelas ruas sombrias do
bairro, o poeta fez uma citação irreverente dizendo que "Copacabana era
uma enorme cama, onde nordestinos descansam...” – Luiz Loiola mergulha mais
naqueles anos dourados, referindo-se ao poema Essa Copacabana Triste Mulher, publicado no livro Sob o Céu nas Nuvens.
“Não posso deixar de relatar, uma noite quando eu e o poeta
chegamos em minha casa em Padre Miguel fomos para a cozinha e nos deliciamos
com café com bolo, pães, cuscuz de fubá preparados por minha mãe, dona Maria
Amélia (in memorian); foi quando o poeta, degustando uma banana, começou a
declamar versos de Xarda Misturada, dando
um toque tropicalista romântico àquela noite de inverno tímido” – registra meu
caríssimo amigo Luiz Loiola.
Nessa mesma época, Manoel Bispo foi fazer um curso de
pintura no Parque Lage, e foi vizinho do Luiz Tadeu, no Lins. Havia fins de
semana que o Bispo e eu saíamos para bater perna. Parávamos para ver os
pintores que expõem nas ruas da Zona Sul, entrávamos nas galerias, íamos a
cinema e conversávamos sobre tudo. Eu ia muito a teatro, cinema de arte, circos
como o Moscou e a grandes shows, como o Santana. Ia muito, também, aos programas
de auditório da extinta TV Tupi. Varava o Rio noite adentro. Em 1974, já como
balconista da filial da White Martins de Jacaré, pedi demissão e voltei para
Macapá.
Em 1982, em Belém, com o matrimônio fracassado, parti
novamente para o Rio de Janeiro. Mas era como se eu estivesse sonhando.
Lembro-me que fui com o Luiz Tadeu para Pedra de Guaratiba, onde o Luiz Loiola
festejou seu aniversário, com muita batida do Primo, vinho, cerveja, happenings
e a bela voz do Luiz Tadeu. Dessa vez, minha estada no Rio durou pouco tempo.
Retornei para Belém e concluí o curso de jornalismo.
Nos anos 1990, eu estava novamente no Rio quando o pintor Olivar
Cunha expôs na Fiesp, em Botafogo, defronte ao Shopping Rio Sul. Ao coquetel de
abertura estavam presentes Luiz Tadeu e sua filha e minha querida amiga Luciana
Magalhães, e Luiz Loyola.
Em 1992, fui ao Rio para lançar A Grande Farra (edição do autor, Brasília, 1992, contos). Foi uma
estada etílica.
Em 2000, fui participar da Bienal do Livro, com Trópico Úmido – Três Contos Amazônicos. Num
domingo de manhã eu acabara de sair da praia de Ipanema, com Luciana Magalhães,
quando houve o primeiro arrastão televisionado - cenas aterrorizantes. Também
dessa vez foi como se eu estivesse mergulhado num sonho etílico.
Em 2010, passei uma semana com a minha gata, Josiane, no
Rio. Ela é psicóloga e foi participar do décimo primeiro Congresso Brasileiro
de Psicooncologia e do quarto Encontro Internacional de Cuidados Paliativos em
Oncologia, de 22 a 25 de setembro, no Centro de Convenções do Colégio
Brasileiro de Cirurgiões (CBC), em Botafogo. Hospedamo-nos no Hotel Inglês, ao
lado do Museu da República, onde Getúlio Vargas se matou, no Flamengo. Jantávamos
num restaurante defronte ao Museu, quase sempre camarão. Todas as comidas
daquele restaurante são deliciosas. Aquela parte do Flamengo, até Botafogo,
passando pelo Largo do Machado, é a Europa no trópico – fantástico. Durante o
dia, enquanto a Josiane estava no CBC, eu incursionava pela Zona Sul, num
resgate memorialístico redentor da cidade que eu tanto amo. Durante aquela
semana eu esquadrinhei a Zona Sul, agora com o olhar maduro do homem de 56 anos
de idade e que não mergulhava mais em bebedeiras mortais.
Perambulei por muitas ruas da Zona Sul, observei a
arquitetura, a Lagoa Rodrigo de Freitas à noite, bati perna em Copacabana,
Ipanema, Leblon, Barra da Tijuca, Flamengo, Botafogo, centro do Rio, e retornei
ao Pão de Açúcar, com minha amada. Lá de cima sabemos de pronto por que o Rio é
a Cidade Maravilhosa. Há cidades que aonde quer que eu vá estarei sempre nelas,
porque elas, como o Rio de Janeiro, vivem para sempre no relicário do meu
coração.
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