domingo, 31 de março de 2013

Os portais da Amazônia

Tuiuiú Crucificado, acrílica sobre tela, de Olivar Cunha
 
Para Olivar Cunha
 
Na Amazônia, aquela região remota do planeta, o leigo, na sua imaginação, é devorado por insetos e microrganismos, torrado pelo sol equatorial, afogado pela água do ar, num santuário onde a danação atinge o clímax: a ideia, indelével, de que os colonos – europeus, americanos, paulistas, gaúchos, mineiros das Alterosas, japoneses – são deuses; ideia estratificada no pensamento, acomodado, dos colonizados, que se imaginam seres inferiores, servos dos sangues-azuis. Então, a Amazônia ferve no ventre das trevas. Assim, o leigo foge da miragem amazônica, grávido das velhas ideias preconcebidas de que o Trópico Úmido só serve para três fins: construção de hidrelétricas, extração de madeira e mineral, e reserva de caça e pesca. Já ao olhar clínico dos iniciados se desvanecem as brumas e vê-se com o coração. Aí, surge o paraíso. De modo que a Hileia é uma só: inferno verde e paraíso tropical – depende do olhar.
 
O olhar do coração é a chave dos iniciados; cada qual possui seus portais, nos quais ganham asas e mergulham em busca da alma amazônica. E é precisamente em uma erva que viceja como mato na Hileia que se aloja a alma da Amazônia: o jambu, que encerra cheiros, sabores, texturas, sons, visões e mente do caboco no espilantol. Minha cidade natal é um dos portais por onde enceto o voo. Vista de quem chega pelo rio, Macapá é uma miragem que vai se definindo na medida que o dia amanhece, como mulher emergindo do mergulho, respingando água, aos primeiros raios do sol, na cabeceira da Linha Imaginária do Equador. Macapá significa macapaba; em tupi, lugar de muitas bacabeiras, palmeira nativa da região; o fruto, bacaba, é transformado em suco delicioso, quase tanto quanto açaí, este, de grande significado para os amapaenses, que já foram paraenses; e os parauaras são os mais ávidos tomadores de açaí, outro portal.
 
Tomados pela cólera dos deuses, os espanhóis instalaram no continente ibero-americano uma aristocracia escravocrata que os portugueses potencializaram e que perdura até hoje, e desembarcaram no setentrião da Amazônia Azul antes mesmo de Pedro Álvares Cabral, de modo que em 1544, Carlos V de Espanha chamou aquelas paragens tucujus de Adelantado de Nueva Andaluzia, ao conceder a província ao navegador espanhol Francisco de Orellana, que, cego pela ambição, vagou pela Amazônia em busca da cidade de ouro, El Dorado, e, como seus colegas, foi vencido pelo inferno verde. Em 1738, colonos portugueses instalaram, ali, um destacamento militar, a Praça São Sebastião, atual Veiga Cabral, onde, em 4 de fevereiro de 1758, foi levantado o Pelourinho, na presença do capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, fundando-se a Vila de São José de Macapá, selando o fim da nação que dominava aquela beirada de rio, o povo tucuju, do tupi tucumã, palmeira natural da Amazônia, de frutos doces e oleosos, matéria-prima para vinho, licor e mingau.
 
Em 1764, Portugal mostrou seu poderio na Amazônia, iniciando a construção de projeto do engenheiro italiano Henrique Antônio Gallúcio, a Fortaleza de São José de Macapá, concluída em 1782, encravada defronte ao Canal do Norte e a cerca de 200 quilômetros da boca do Amazonas, quando o rio despeja pelo menos 200 mil metros cúbicos de água e húmus no oceano Atlântico, por segundo, contribuindo para que as costas do Amapá e do Pará sejam as mais ricas do planeta em vidas marinhas. Quanto aos tucujus, tornaram-se o símbolo de um tempo heroico; espanhóis e portugueses legaram a era atual, de colonos e colonizados – a tragédia que perpassa a Ibero-América, e toda a questão amazônica.
 
Nos portais há outros portais. Rosas para a Madrugada e Malabar Azul, de Isnard Brandão Lima Filho; Os Periquitos Comem Manga na Avenida, de Fernando Canto; o próprio Alcyr Araújo, o Poeta do Cais; o poeta e contista José Edson dos Santos, Joy Edson; o pintor Raimundo Peixe; o gênio Olivar Cunha, que completa 61 anos neste 31 de março de 2013; nasceu no mesmo dia em que nosso pai, João Raimundo Cunha, plantou a seringueira que intercepta o muro do Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy. Mágico como Goya, sua fase de mendigos no Guamá, subúrbio de Belém do Pará, durante a década de 1970, e sua fase de tuiuiús crucificados, nos anos de 1990, garantem-lhe lugar entre os grandes do expressionismo brasileiro; óleos como Lavadeiras do Sol são como o tacacá da dona Maria do Carmo Pompeu dos Santos, às 6 horas da tarde, sentado no calçadão defronte ao Colégio Nazaré, em Belém.
 
A construção da Fortaleza por meio do trabalho escravo de negros e índios foi o cadinho em que se forjou a etnia macapaense. Os africanos fundaram o quilombo do Curiaú e o bairro do Laguinho, misturaram-se com os índios e legaram cafuzos; os portugueses cruzaram com os africanos e geraram mulatos, e fornicaram com os índios, formando uma população de mamelucos, numa diversidade étnica viva nas ruas de Macapá, nas nuanças de peles bronzeadas; de jambo maduro; ébano; e alabastro, unidos pelo sotaque caboco, a fusão do português falado em Lisboa, doces palavras tupis e fiapos do patoá das Guianas, além da seminudez dos habitantes do Trópico Úmido e do olhar da mulher amazônida, como jambu espalhando-se pelas papilas gustativas da alma, o embalar de rede no rio da tarde, o choro dos jasmineiros noturnos.

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