Tuiuiú Crucificado, acrílica sobre tela, de Olivar Cunha |
Para Olivar
Cunha
Na Amazônia,
aquela região remota do planeta, o leigo, na sua imaginação, é devorado por
insetos e microrganismos, torrado pelo sol equatorial, afogado pela água do ar,
num santuário onde a danação atinge o clímax: a ideia, indelével, de que os
colonos – europeus, americanos, paulistas, gaúchos, mineiros das Alterosas,
japoneses – são deuses; ideia estratificada no pensamento, acomodado, dos
colonizados, que se imaginam seres inferiores, servos dos sangues-azuis. Então,
a Amazônia ferve no ventre das trevas. Assim, o leigo foge da miragem
amazônica, grávido das velhas ideias preconcebidas de que o Trópico Úmido só
serve para três fins: construção de hidrelétricas, extração de madeira e mineral, e reserva
de caça e pesca. Já ao olhar clínico dos iniciados se desvanecem as brumas e
vê-se com o coração. Aí, surge o paraíso. De modo que a Hileia é uma só: inferno
verde e paraíso tropical – depende do olhar.
O olhar do coração é a chave dos iniciados; cada qual possui
seus portais, nos quais ganham asas e mergulham em busca da alma amazônica. E é
precisamente em uma erva que viceja como mato na Hileia que se aloja a alma da
Amazônia: o jambu, que encerra cheiros, sabores, texturas, sons, visões e mente
do caboco no espilantol. Minha cidade natal é um dos portais por onde enceto o
voo. Vista de quem chega pelo rio, Macapá é uma miragem que vai se definindo na
medida que o dia amanhece, como mulher emergindo do mergulho, respingando água,
aos primeiros raios do sol, na cabeceira da Linha Imaginária do Equador. Macapá
significa macapaba; em tupi, lugar de muitas bacabeiras, palmeira nativa da
região; o fruto, bacaba, é transformado em suco delicioso, quase tanto quanto
açaí, este, de grande significado para os amapaenses, que já foram paraenses; e
os parauaras são os mais ávidos tomadores de açaí, outro portal.
Tomados pela cólera dos deuses, os espanhóis instalaram no
continente ibero-americano uma aristocracia escravocrata que os portugueses
potencializaram e que perdura até hoje, e desembarcaram no setentrião da
Amazônia Azul antes mesmo de Pedro Álvares Cabral, de modo que em 1544, Carlos
V de Espanha chamou aquelas paragens tucujus de Adelantado de Nueva Andaluzia,
ao conceder a província ao navegador espanhol Francisco de Orellana, que, cego
pela ambição, vagou pela Amazônia em busca da cidade de ouro, El Dorado, e,
como seus colegas, foi vencido pelo inferno verde. Em 1738, colonos portugueses
instalaram, ali, um destacamento militar, a Praça São Sebastião, atual Veiga
Cabral, onde, em 4 de fevereiro de 1758, foi levantado o Pelourinho, na
presença do capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, fundando-se a Vila de São José de Macapá, selando o fim da
nação que dominava aquela beirada de rio, o povo tucuju, do tupi tucumã,
palmeira natural da Amazônia, de frutos doces e oleosos, matéria-prima para
vinho, licor e mingau.
Em 1764, Portugal mostrou seu poderio na Amazônia, iniciando
a construção de projeto do engenheiro italiano Henrique Antônio Gallúcio, a
Fortaleza de São José de Macapá, concluída em 1782, encravada defronte ao Canal
do Norte e a cerca de 200 quilômetros da boca do Amazonas, quando o rio despeja
pelo menos 200 mil metros cúbicos de água e húmus no oceano Atlântico, por segundo,
contribuindo para que as costas do Amapá e do Pará sejam as mais ricas do
planeta em vidas marinhas. Quanto aos tucujus, tornaram-se o símbolo de um
tempo heroico; espanhóis e portugueses legaram a era atual, de colonos e
colonizados – a tragédia que perpassa a Ibero-América, e toda a questão
amazônica.
Nos portais há outros portais. Rosas para a Madrugada e Malabar
Azul, de Isnard Brandão Lima Filho; Os
Periquitos Comem Manga na Avenida, de Fernando Canto; o próprio Alcyr
Araújo, o Poeta do Cais; o poeta e contista José Edson dos Santos, Joy Edson; o
pintor Raimundo Peixe; o gênio Olivar Cunha, que completa 61 anos neste 31 de
março de 2013; nasceu no mesmo dia em que nosso pai, João Raimundo Cunha, plantou
a seringueira que intercepta o muro do Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy. Mágico
como Goya, sua fase de mendigos no Guamá, subúrbio de Belém do Pará, durante a
década de 1970, e sua fase de tuiuiús crucificados, nos anos de 1990,
garantem-lhe lugar entre os grandes do expressionismo brasileiro; óleos como Lavadeiras do Sol são como o tacacá da
dona Maria do Carmo Pompeu dos Santos, às 6 horas da tarde, sentado no calçadão
defronte ao Colégio Nazaré, em Belém.
A construção da Fortaleza por meio do trabalho escravo de
negros e índios foi o cadinho em que se forjou a etnia macapaense. Os africanos
fundaram o quilombo do Curiaú e o bairro do Laguinho, misturaram-se com os
índios e legaram cafuzos; os portugueses cruzaram com os africanos e geraram
mulatos, e fornicaram com os índios, formando uma população de mamelucos, numa
diversidade étnica viva nas ruas de Macapá, nas nuanças de peles bronzeadas; de
jambo maduro; ébano; e alabastro, unidos pelo sotaque caboco, a fusão do
português falado em Lisboa, doces palavras tupis e fiapos do patoá das Guianas,
além da seminudez dos habitantes do Trópico Úmido e do olhar da mulher amazônida,
como jambu espalhando-se pelas papilas gustativas da alma, o embalar de rede no
rio da tarde, o choro dos jasmineiros noturnos.
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