BRASÍLIA, 13 DE JULHO
DE 2013 – Gosto de todas as horas dos dias e das noites, de domingo a
sábado; contudo, há, a cada 24 horas, dois momentos mágicos: a madrugada e o
anoitecer. Sou amante da madrugada. Levanto-me, geralmente, às 4 horas. Faço a higiene.
O silêncio repousa no apartamento; ouço apenas respirações. Vou para a cozinha
e preparo café, arábica, de preferência Três Corações, gourmet. Aqueço um pão
francês, com queijo, manteiga ou margarina; às vezes, frito um ovo. Arrumo a
mesa, na sala, agradeço pelo alimento e me sirvo. Bebo por volta de duas
xícaras e meia de café com leite em pó; quando há tortas, ou cuscuz, ou
tapioquinha, tomo o café preto. Depois, acordo Josiane, minha gata, e oramos para
os antepassados, almas e anjinhos da nossa família.
Essa rotina é quebrada quando estou hospedado noutra cidade. Levanto-me
também às 4, faço as orações e deixo passar meia hora do início do café da
manhã, e só então vou para o refeitório. É um momento estratégico, pois tudo
ainda guarda o frescor inicial e há muitos comensais. Um dos meus prazeres é
observar as pessoas, apenas para satisfazer a curiosidade do escritor, pois
dessas observações recolho retalhos e invento personagens; a propósito, gosto
de utilizar essa palavra de origem francesa, comum de dois gêneros, no feminino
– a personagem –, pois sou aficionado pelo gênero feminino. Então, a cidade onde nos encontramos é nossa.
Em Brasília, criei vários roteiros, a partir do Cruzeiro
Novo, onde moro. Num deles percorro toda a principal rua comercial do Sudoeste,
bairro pegado ao Cruzeiro Novo, cruzo o Setor Gráfico e entro no Parque da
Cidade, o maior parque urbano do planeta, localizado no âmago da cidade-estado.
Trata-se de 4,2 quilômetros quadrados de bosques, trilhas urbanizadas,
equipamentos de ginástica, quadras de esporte, parque de diversão, restaurantes
e grandes estacionamentos, e onde vemos mulheres tão lindas que permanecem em
nossa memória como perfume. Cruzo o parque e saio na altura do Setor Hoteleiro
Sul, e caminho até a Rodoviária do Plano Piloto, o coração de Brasília. Se isso
ocorre num domingo, compro o Correio
Braziliense e Veja, tomo o ônibus
e retorno para casa.
Gosto muito também de caminhar pelo Cruzeiro Velho e de lá
seguir até a Ceasa, no SIA. Tomo a rua da primeira casa onde minha gata e eu
moramos; minha gata foi fundamental para identificarmos a quitinete, pois, nos
tempos heroicos, eu vivia imerso na cerração do álcool. Ao passar defronte ao
prédio, agora ampliado, sinto sempre simpatia pelo jovem Ray Cunha, esforçando-se
para merecer a mulher que aceitara conviver comigo; errando muito; e, às vezes,
quando as coisas se apresentavam incompreensíveis, sentia o coração dilacerado.
Cruzando-se a Estrada Parque Indústria e Abastecimento
(Epia), fica a Ceasa, no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA). A Ceasa
(Centrais de Abastecimento SA) são empresas estatais ou de capital misto
destinadas a promover o comércio de hortifruticultura por atacado e no varejo,
e existe nas grandes cidades brasileiras, onde ocupam áreas enormes. Gosto
muito de ir à Ceasa, pois remete-me ao Ver-O-Peso, maior feira livre da Ibero-América,
em Belém do Pará. Lá, eu fazia expedições quase diárias, começando, de manhã
cedo, pelo Mercado de Peixe, onde apreciava algumas espécies das cerca de 1.200
da Amazônia. Gosto de apreciar os dorsos luzidios dos pirarucus, dos meros, dos
tucunarés, e de todos os peixes, muitos deles capturados na noite anterior, ao
largo da costa do Pará e do Amapá. Do Mercado de Peixe ia tomar café com
tapioquinha amanteigada e, dependendo dos meus afazeres, apreciava também as
frutas; algumas, especiais, como as mangas, que lembram seios túrgidos, e os
jambos, sedutores como pele cafuza. Pois na Ceasa, de manhã cedo, há um galpão
com pilhas de frutas maravilhosas, e todo tipo de sortilégios, que somente as
feiras proporcionam.
Acho que as madrugadas são também o melhor momento para se
criar, pois o silêncio é redentor.
O anoitecer é outro momento supremo da vida. A tarde escoa
como um rio, lentamente, diluindo-se, como murmúrios, como preces, e a noite
chega de repente, como um navio, as luzes tremeluzindo, aproximando-se do cais
do nosso coração, iluminado como uma catedral. Se estamos num café, podemos
observar o passa-passa das mulheres, que, entre os mistérios do seu labirinto,
conservam-se frescas como as manhãs, o tempo todo, deixando um rastro de romance
e aventura. A cidade mesma acende suas luzes e o planeta imerge na dimensão do
sonho.
No apartamento, o anoitecer é um momento de trégua, de
redenção, de silêncio. Todos os dias, nessa hora, sinto-me ainda mais rico; meu
relicário está entupido de diamantes amarelos e rubis azuis, de rosas vermelhas
colombianas e perfume, caminhos que levam ao coração.
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