BRASÍLIA, 31 DE
AGOSTO DE 2013 – Um dos momentos mais ricos da minha formação foi a
convivência com o crítico de cinema José Pereira Gaspar, entre 1975 e 1977, em
Manaus. Eu tinha 21 anos e creio que ele tivesse quase uma década mais do que
eu, mas estava muito além de mim. Chamava-o de Velho e não passava um dia sem
vê-lo, se isso fosse possível. Acredito que o conheci no Curso Dinâmico,
dirigido por Nestor José Soeiro do Nascimento, que faria história como líder
negro.
Na época, eu trabalhava como repórter em A Notícia, jornal diário já extinto. Às
vezes, eu terminava cedo a pauta e antes de retornar ao jornal, onde almoçava,
fiado, na cantina, passava no Conservatório da Universidade Federal do
Amazonas, no centro de Manaus, onde o Velho batia ponto. Conversávamos um
pouco. À noite, costumávamos nos encontrar no Dinâmico, ou num bar, onde
degustávamos algumas garrafas da maravilhosa Antarctica manauara. Conversávamos
sobre tudo, especialmente mulheres.
Graduado em letras em Lisboa, sua cidade natal, o Velho
dominava pelo menos francês e inglês, era bastante viajado e curtíamos algumas
coisas em comum, além das mulheres: o mundo criado por Ernest Hemingway; o
dançarino Mohammad Ali; Mateus Rosé; cinema, no precipício do qual ele me
empurrou numa queda que dura até hoje e acredito que durará para sempre; conversávamos
sobre tudo.
Contudo, havia dois assuntos caros para mim. Uma das razões
que me fizeram oferecer feroz amizade ao Velho foi a degustação e sugestões
preciosas que me presenteou ao ler contos meus. Tratávamos desse assunto com a
maior seriedade, e, pela primeira vez, senti que tinha o dom de parir, criar
personagens de carne e osso, que sofrem e gozam, que vivem, enfim. Devo o
despertar dessa percepção ao Velho.
Outro
assunto caro era Mara, afilhada do Velho e mãe de alguns dos filhos do Nestor.
Descendente de espanhóis, seus olhos verdes me fascinavam, e continham, em
certas manhãs, o azul do mar, e, às vezes, eram felinos. Ocorre-me, agora, um
episódio, certa noite. O Nestor e a Mara encontraram-se num bar na Avenida
Getúlio Vargas, no centro de Manaus. Ele, negro, e ela, lindíssima, ruiva, os
olhos como duas esmeraldas azuis, a pele de alabastro com sardas aqui e ali, no
colo, a voz melodiosa, as pernas bem torneadas, belíssima em vestido rosa, os
cabelos de mel deslizando como música aos movimentos da cabeça. Quatro tipos
sentados noutra mesa não tiravam os olhos deles. Como pode um negro e uma
ninfeta linda de enlouquecer se beijando? Levantaram-se e baixaram a porrada no
Nestor. Mara, lindíssima e valente, meteu as unhas nas bestas, até que a
quadrilha debandou e ela, então, pegou a cabeça do meu dileto amigo Nestor e o
acalantou no seu colo prenhe de redenção.
Meu amigo
Nestor já está nos campos de Deus, onde não há tempo nem espaço, nem limitação
de espécie alguma, muito menos de cor. Ele e Mara vivem no meu coração, para
sempre.
Morei,
durante algum tempo, numa casa do artista plástico Álvaro Pascoa, repleta de
telas de Hahnemann Bacelar, que conviveu com o Álvaro Pascoa. O Velho conseguiu
aquela casa, no bairro de São Francisco, para eu morar. Nela, a que eu chamava
de Finca Vigia, em homenagem a Hemingway, atravessei intensa fase da minha
educação sexual. Foi quando aprendi a cavalgar um feixe de luz tão azul que
vertia sangue, se o fustigava; foi lá que ouvi, pela primeira vez, o som da
alma feminina, gemidos, música sublime, que nem Mozart jamais sonhou compor,
fluindo no abismo dos vãos entre as galáxias do meu espírito, céu de clorofila,
cheiro de madrugada, um leve sabor de vinho e qualquer coisa espanhola.
Naquela
época, o Velho começou um romance com a cantora lírica paraense Marina Monarcha,
com quem se casou, e eu me mudara para Belém, onde fui morar na casa do gênio macapaense
Olivar Cunha e trabalhar no jornal O
Liberal, encaminhado pelo crítico de cinema Pedro Veriano, amigo do Velho. Por
volta de 1981, casara-me pela primeira vez, com Maria Celia Ferreira Chagas,
quando o Velho me visitou. Ele é desses tipos que curtem a vida até o toco, e
naquela manhã soltava estrelinhas dos olhos.
Revi o Velho
algumas vezes, em idas fugazes a Manaus, e sempre foi como quando voltamos à
cidade natal e bebemos a essência das nossas raízes; o Velho contém o espírito
da curtição, um renovar-se, como ouvir Carmen Monarcha.
A última
notícia que tive do Velho foi que a revista Cinéfilo
– que ele editou no fim dos anos de 1960, e interditada pela Ditadura dos
Generais (1964-1985) – ganhou edição histórica, reunindo seus quatro números, e
lançada no dia 13 de junho passado. Bacana, Velho! Quando pudermos, vamos tomar
uma! Quem sabe eu saia do meu jejum alcoólico e beba uma garrafa da maravilhosa
Antarctica manauara, ou um trago de Mateus Rosé, ou mesmo água tônica. Não
importa, pois sempre que nos encontramos, Velho, abre-se o portão mágico do
abismo azul, e surgem os olhos da Mara, grandes como o mundo, e ouço uma prece
de Carmen Monarcha.
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