domingo, 2 de março de 2014

AMAZONÊS, LÍNGUA BRASILEIRA E TRÓPICO, INCLUSIVE O ÚMIDO

O artista plástico amapaense Olivar Cunha e a acrílica sobre
tela de 2005 Baixadapaisagem comum na periferia
das metrópoles da Amazônia, como Manaus e Belém


BRASÍLIA, 28 DE FEVEREIRO DE 2014 – Na letra de Amazonês o compositor e cantor Nicolas Júnior utiliza palavras como “maninha, leso, triscar, ralhava”, só conhecidas na Amazônia, mas disponível na internet. A comunidade Eu Falo Amazonês, no Facebook, registrava, até às 11h39 de de 28 de fevereiro, 65.397 curtidas. No Youtube, o humorista amazonense Abdias, O Cabucão, registrava, às 11h28 de hoje, 995.471 visualizações do vídeo Vou Cagar nas Calças, paródia de Gangnam Style, do coreano Psy.

Para Sérgio Freire, doutor em linguística e pesquisador do falar amazonense, os manauaras sofrem três influências: indígena, portuguesa e nordestina. O índio é autóctone, os lusitanos chegaram ao Amazonas na primeira metade do século 16 e os nordestinos, no ciclo da borracha. “Temos a herança fonológica dos sons do português de Portugal, por isso que chiamos ao puxarmos o s. Também recebemos influência dos nordestinos, que vieram para cá como soldados da borracha na década de 40; e, por fim, a influência muito grande da linguagem indígena, com suas expressões. Nossa matriz oral vem daí, em maior ou menor grau” – explica Freire, autor de Amazonês, que lista expressões regionais, especialmente tupis.

O amazonês é apenas uma peça da língua brasileira, que, cada vez mais, se impõe no planeta, levando para as regiões frias, que antes sediavam a metrópole, a riqueza cultural e a alegria dos trópicos, por meio da literatura, da tecnologia e do trabalho. Tudo começou na região ocidental da Península Ibérica, há 300 anos antes de Cristo, com os soldados romanos e seu latim vulgar. No ano 500 da era cristã, o Império Romano começou a desabar, mas deixava várias línguas, variantes do latim. O português escrito começou a ser utilizado, em documentos, no século IX; no século XV, já se tornara língua literária.

Desde os romanos, havia duas províncias na região em que se formou a língua portuguesa: Lusitânia, hoje Portugal, e, ao norte, Galécia, Galícia para nós, brasileiros. O Império Romano conquistara a região ocidental da Península Ibérica, criando as províncias da Lusitânia e da Galécia, equivalentes, hoje, ao centro-norte de Portugal e à província espanhola da Galícia, a noroeste da Espanha, nas quais se começou a falar latim vulgar, do qual nasceram as línguas neolatinas e 90% do léxico, ou dicionário, da língua portuguesa. Os únicos vestígios das línguas nativas dessa região dormem na toponímia da Galícia e de Portugal.

Entre 409 e 711, o Império Romano entrava em colapso e a Península Ibérica era novamente invadida, agora por povos de origem alemã – suevos e visigodos –, que os romanos chamavam de bárbaros. Entretanto, os novos invasores absorveram a língua romana da península. Devido ao fato de que cada uma das tribos bárbaras falava latim à sua maneira, o resultado foi a formação do galaico-português, ou português medieval, o espanhol e o catalão.

Em 711, a península foi invadida pelos mouros, de língua árabe, oriundos do norte da África. O árabe foi utilizado, então, como língua administrativa nas regiões conquistadas, mas a população continuou a falar latim vulgar. Em 1249, os mouros foram expulsos, mas deixaram grande número de palavras árabes, especialmente relacionadas à culinária e à agricultura, sem equivalente nas demais línguas neolatinas, além de nomes de locais no sul de Portugal, como Algarve e Alcácer do Sal. Muitas palavras portuguesas que começam por “al” são de origem árabe.

O mais antigo documento latino-português de que se tem conhecimento é a Carta de Fundação e Dotação da Igreja de S. Miguel de Lardosa, datada de 882. O Testamento de Afonso II, de 1214, é o texto em escrita portuguesa considerado mais antigo. Esses documentos estão guardados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa.

O vernáculo escrito passou, gradualmente, para uso geral a partir do fim do século XIII. Portugal se tornou país independente em 1143, com o rei Dom Afonso I. Em 1290, o rei Dom Dinis criava a primeira universidade portuguesa em Lisboa – Estudo Geral – e decretou que o português, então chamado “linguagem”, substituísse o latim no contexto administrativo.

Em 1296, a língua portuguesa foi adotada pela Chancelaria Real. A partir daí, o galego-português passou a ser utilizado também na poesia. Já em meados do século XIV, o português alcançara tradição literária. Nessa época, os nativos da Galícia começaram a ser influenciados pelo castelhano, base do espanhol moderno. Entre os séculos XIV e XVI, com as grandes navegações, a língua portuguesa é difundida na Ásia, África e América.

Na Renascença, aumenta o número de palavras eruditas do latim clássico e do grego arcaico, ampliando a complexidade da língua portuguesa. O fim do português arcaico é marcado pela publicação do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, em 1516.

Hoje, fala-se oficialmente português nos oito países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): Angola (África), Brasil (América do Sul), Cabo Verde (África), Guiné-Bissau (África), Moçambique (África), Portugal (Europa), São Tomé e Príncipe (África), e Timor-Leste (Ásia). Mas em cada uma das ex-colônias portuguesas falam-se, a rigor, variantes do português de Portugal. Também falam-se variantes de português nas seguintes regiões: Galícia (província da Espanha, Europa); Goa, Diu e Damão (Índia, Ásia); Macau (China, Ásia), Málaca (Malásia, Ásia) e Zanzibar (Tanzânia, África).

A escrita da língua portuguesa é semelhante em todos os países da CPLP, com poucas variações gramaticais. O que muda, de forma mais evidente, além da grafia de um certo número de palavras, é o significado de outras tantas palavras, com conotações diferentes de região para região; o modo de se utilizar formas verbais; e o estilo erudito, isto é, o modo de se construir frases e contextos literários. Quanto ao falar, um brasiliense só se entenderá com um lisboeta, por exemplo, se ambos conversarem vagarosamente e pronunciarem claramente as sílabas das palavras, do mesmo modo que entre um caboclo (caboco, como se diz na Amazônia) e um gaúcho da fronteira.

Trata-se da quinta língua mais falada no planeta, por cerca de 240 milhões de falantes, em quatro continentes. Se Portugal é o portão de entrada da lusofonia no Velho Continente, o Brasil é o gigante da CPLP.

A LÍNGUA BRASILEIRA – No Brasil, a língua portuguesa sofreu influências do tupi-guarani – tronco linguístico dos índios da América do Sul – e de várias línguas africanas. Desde o início do século XX, Portugal e Brasil buscam a unificação da língua portuguesa escrita, para chegar, pelo menos, ao consenso de um texto burocrático, que possa reforçar o idioma na Organização das Nações Unidas (ONU). Mas a verdade não pode ser mudada. O português de Portugal se esgotou, enquanto o português do Brasil foi enriquecido pelo índio, pela África e pelo trópico, e é aberto.

No dia 29 de setembro de 2008, na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio de Janeiro, em homenagem ao escritor Machado de Assis, que completava cem anos de morto (1839-1908), o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou quatro decretos de promulgação do novo Acordo Ortográfico no âmbito da CPLP. “Com esses atos, Machado de Assis será duplamente exaltado: de um lado, a Academia lhe rende a mais expressiva homenagem neste ano em que celebramos o centenário de sua morte, e, de outro, a assinatura pelo presidente Lula dos decretos que promulgam o Acordo Ortográfico dos sete países lusófonos” – declarou, então, o presidente da ABL, Cícero Sandroni.

Segundo Sandroni, a promulgação do Acordo Ortográfico concretizava uma antiga aspiração de Machado de Assis, manifestada num de seus discursos, em 1897. “A Academia buscará ser a guardiã de nosso idioma, fundado em suas legítimas fontes – o povo e os escritores, todos os falantes de língua portuguesa” – disse, na altura, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O argumento para mudanças ortográficas na língua portuguesa é que a alegada unificação da escrita no Brasil e em Portugal tornaria o idioma lusitano língua oficial da Organização das Nações Unidas (ONU). O fato é que o novo Acordo Ortográfico não unifica as línguas portuguesa e brasileira, nem etimologicamente, muito menos em estilo. E qualquer tradutor na ONU terá que ser bom de ouvido, tanto para o falar lusitano, típico dos países de clima frio, como para o falar brasileiro, tropical, aberto. Isso, sem falar do crioulo.

A pergunta que lateja é: A “unificação” da língua portuguesa escrita no Brasil com o português grafado em Portugal tem alguma utilidade? No caso do Brasil, não seria melhor investir maciçamente no ensino básico? E depois o Brasil tem mais com que se preocupar. Enquanto Lula levava seu palanque para a Academia Brasileira de Letras, o Correio Braziliense, maior jornal da capital do país, publicava uma série de reportagens sobre crianças, meninas e meninos, que embarcavam em carros de luxo, no coração de Brasília, para serem estuprados a troco de comida. A propósito, a exploração sexual de crianças é comum na província potencialmente mais rica do planeta, a Amazônia, onde a miséria humana, a escravidão, o assassinato, campeiam.

A grande tragédia brasileira é a escola pública. O senador Cristovam Buarque (PDT/DF) costuma comparar as escolas públicas brasileiras, regidas por orientação federal, com o Banco do Brasil. Se as agências do BB em Brasília contam com a mesma estrutura das agências nos grotões brasileiros, como, por exemplo, o sertão do Maranhão, uma escola pública do Plano Piloto não é a mesma na hiterlândia da Amazônia.

O novo Acordo Ortográfico só beneficiou editoras, principalmente as que integram a panelinha do Ministério da Educação; estão faturando bilhões. Quanto ao ensino público e à pesquisa no Brasil são para inglês ver. E a CPLP tem mais com se ocupar. Ela poderia encampar o Instituto Camões e criar o Instituto Machado de Assis, e, por meio deles, difundir mundialmente a língua portuguesa, que são várias: a de Portugal; a do Brasil; a crioula, ou africana; a galega; a do Timor-Leste etc. Cada um desses países conta com escritores que representam bem suas culturas, e que não estão absolutamente preocupados com burocracia. Os grandes escritores deste continente chamado Brasil são tradutores da nossa mestiçagem mulata, cafuza e mameluca, das nossas cores, cheiros, florestas, mar, sol e alegria. A CPLP pode e deve é influenciar a democracia e se aperfeiçoar como bloco econômico.

O Acordo Ortográfico foi mais uma peça de marketing do governo lulapetista, em um país de esmagadora maioria de alfabetizados funcionais – que leem mas não entendem o que leem –, com pelo menos 20 milhões de pessoas que vivem na Idade da Pedra – não sabem ler e, muitos deles, não têm sequer certidão de nascimento; outros, são escravos mesmo, principalmente nos medievais estados da Amazônia.

No Brasil, nós não precisamos de reforma ortográfica. Precisamos de reforma política, fiscal, educacional, do Judiciário, administrativa, previdenciária, de pacto federativo, de reforma do Estado, e, sobretudo, faz-se necessário jogar os ladrões de colarinho branco na cadeia e fazê-los pagar o que roubaram, tudo. Também é preciso acabar com a indecência da imunidade parlamentar; urge passar a limpo o Brasil corrupto.

A reforma ortográfica tudo muda para nada mudar, como diz uma personagem no romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, referindo-se à monarquia italiana, então com as ventosas no erário, como ocorre hoje e sempre no Brasil chavista e patrimonialista. A célebre frase literária se ajusta à nomenklatura de plantão, embora o destino do Brasil, a província agrícola, florestal e mineral mais rica do planeta, é o de ser uma potência mundial, o que só poderá conquistar por meio da democracia. E a democracia dorme no idioma. Só então, a língua brasileira será respeitada, procurada e aprendida.

No nosso caso linguístico, enquanto o português lusitano se esgotou, o português brasileiro é uma língua jovem, enriquecida pelo tupi-guarani, por idiomas africanos, por estrangeirismos e pelo calor, cores, aromas, sabores e contexturas do trópico e da Amazônia.

Quanto à Hileia – o subcontinente cortado pelo rio Amazonas/Solimões e a Linha Imaginária do Equador, a eterna colônia inicialmente ibérica e agora dos países hegemônicos, de Brasília e do Sudeste –, a melhor maneira de compreendê-la, e a amar, é por meio da arte, e nesse contexto alguns artistas são fundamentais nesse mister; para citar uns poucos, os romancistas paraenses Dalcídio Jurandir e Benedicto Monteiro, e o amazonense Márcio Souza; os poetas amazonenses LuizBacellar e Jorge Tufic, e o paraense João de Jesus Paes Loureiro; o jornalista paroara Lúcio Flávio Pinto; o pintor amapaense Olivar Cunha.

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