Ray Cunha, na Linha Imaginária do Equador, Macapá/AP,
Amazônia Caribenha, em foto de Fernando Canto
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BRASÍLIA,
1 DE MAIO DE 2014 – O último livro de Ray Cunha, Na Boca do Jacaré-Açu – A Amazônia Como Ela
É (Ler Editora, Brasília, 2013, 153 páginas, R$ 25), fecha a trilogia que
começou com A Grande Farra (edição do
autor, Brasília, 1992, esgotado) e prosseguiu com Trópico Úmido – Três Contos
Amazônicos (edição do autor, Brasília, 2000, 116 páginas, R$ 30), e que tem
como espinha dorsal tanto o Inferno Verde quanto as metrópoles da Hileia. Na Boca reúne 14 histórias curtas,
ambientadas em Belém, personagem subjacente no conjunto dos contos, e a quem o
autor dedica o livro (Cidades são como
mulheres. Este livro é para Santa Maria de Belém do Grão Pará).
“O fim da tarde,
imobilizada por nuvens imóveis, e pesada como chumbo, lembrava um tumor...” A
médica pressionou o botão, e a máquina me deslizou para dentro do seu túnel
branco, onde eu ficaria imóvel por vinte minutos, enquanto me escaneavam o
crânio. Então, decidi por escrever esta resenha.
Ray Cunha, em foto recente, de Iasmim Cunha |
“O fim da tarde, imobilizada
por nuvens imóveis, e pesada como chumbo, lembrava um tumor...” Assim começa o
primeiro conto de Na Boca do Jacaré-Açu,
uma tomografia da Amazônia, que tem como resultado imagens em verde tisnadas de
coloração humana.
Não é bem o túnel
tomográfico: parecemos presos na boca verde do jacaré simbólico, mas a imensidão
da floresta e seu universo esplendoroso e ilimitado em fauna e flora são
pequenos para conter as paixões e dramas do ser humano.
Na máquina de
tomografia, ficamos encapsulados no túnel branco. Vistos do espaço, na Terra
somos prisioneiros gravitacionais da esfera azul. Mas a Amazônia de Ray Cunha é
o Inferno Verde.
É certo, não há o
coaxar repetitivo da máquina-mata, com seus sapos-bois roufenhos e metálicos.
Nem a natureza esplêndida e glamourosa da National
Geografic, “macumba pra turista”. Mas eis que a chuva vem e volta nas páginas
amazônicas de Ray. É o Trópico Úmido chorando, suando, gozando sobre, pelos e
com os humanos que se intrometem, abruptos, na obra.
O escritor quando jovem, em foto de Márcia do Carmo |
Os personagens dessa
outra dimensão, amazônica, surgem familiarizados conosco e ao mesmo tempo
estranhos, desafiadores, ridículos ou exóticos. Pois não estão ali o atormentado
Agostinho, o dr. Magalhães e seus impagáveis mugidos, a saborosa Frênia, lânguida
desde a pia batismal? E a mitológica fauna humana: um menino com “olhinhos de
tubarão e nariz de porco”; a mulher “com aspecto de lobo”; outra mulher “que
cacareja”? Humanos, demasiado... Contra o pano verde do cenário vegetal vemos a
selvageria urbana do tráfico de meninas intercalada com dramas freudianos/shakesperianos,
e de súbito, mas suavemente, nos acaricia a narrativa de pequenos flertes e
sutis amores.
Para entrar na Amazônia
e no mundo fantástico de Ray Cunha há que se acolher seus símbolos mais caros: as
zínias coloridas, as rosas colombianas, o
perfume inconfundível do Chanel nº 5, a tapioquinha e Cerpinha enevoada,
o Ver-O-Peso. O autor planta esses elementos exóticos no Inferno Verde, e nele
planta o próprio homem. Como se fosse difícil para o humano ser amazônico. Ou se
forçasse a escolha: humano ou amazônico? O ser humano viceja, mas há algo
errado, desconexo ou incompleto.
A Amazônia não é “o”
mundo todo, mas “um” mundo todo. Um outro mundo. O planeta Amazônia que não é
azul como a Terra, mas verde, terrivelmente verde, ou branco tal qual o medo de
um tumor. Com sua natureza fascinante e temível, e seus habitantes inconclusos,
os contos têm entre si uma espécie de amarração oculta, um cipoal encoberto
pela floresta de palavras, e onde se esconde o temível jacaré-açu.
Na juventude, o
escritor Ray foi pugilista amador. Certamente não era o mão de marreta. Vejo em
suas luvas ágeis o estilo da pena do escritor: jabs repetitivos, incansáveis – não há nocaute, mas desgaste. Uma
sequência contínua, bem encaixada, pode minar o adversário e lhe impor a
derrota silenciosa. O tumor. O jacaré-açu.
SEGUE-SE
BREVE ENTREVISTA COM RAY CUNHA – Como e por que você escolheu o título Na Boca do Jacaré-Açu?
Trata-se
da história que dá título ao livro. Jacaré-açu é o grande réptil amazônico, que
atinge mais de 6 metros de comprimento e meia tonelada de peso. No caso do
conto, que se passa em Belém e na ilha de Marajó, representa a simbologia da
morte. A personagem central da novela, o arqueólogo Agostinho Castro, é filho
de um homem forte, dominador e suicida, Castro e Castro, que o leva à boca do
jacaré-açu.
Em
que período você escreveu os contos que compõem a obra?
Todos
eles foram produzidos nos anos 1980/1990. Alguns já foram publicados; outros, são
inéditos.
Os
contos têm alguma ligação, um fio temático que os una e justifique, formando
uma obra única?
Sim.
Todas as histórias são ambientadas em Belém do Pará, a quem eu dedico o livro;
algumas delas têm sequências no Ver-O-Peso, a maior feira livre da
Ibero-América. O conto que dá título ao livro, Na Boca do Jacaré-Açu, como já disse, é também ambientado no
Marajó, a maior ilha flúvio-marítima do planeta, situada no que eu chamo Mundo
das Águas, especialmente o Amazonas, o maior rio do planeta, e que despeja no
Atlântico pelo menos 200 mil metros cúbicos de água por segundo.
Quais
escritores influenciaram sua obra e em quê?
Os
escritores que me influenciaram – alguns ainda me influenciam – são muitos, mas
há os mais importantes, os que abrem a porta para outras dimensões, como
Antoine de Saint-Exupéry, Ernest Hemingway, Gabriel García Márquez, Mario Vargas
Llosa, William Faulkner, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha,
e, no caso da Amazônia, Benedicto Monteiro, o mago de Verde Vagomundo. Todos eles me ensinaram, e continuam ensinando,
coisas simples, mas fundamentais, como, por exemplo, enxergar uma rosa nua,
extrair gemidos femininos das palavras, montar a luz, mergulhar como leão de
asas, ver com o coração e garimpar rubis verdes.
Seus
livros têm elementos autobiográficos? Quais?
Tudo
o que fazemos é autobiográfico, o que não quer dizer que os livros que
escrevemos são autobiográficos. Trata-se de um paradoxo, estou ciente disso. O
que fazemos é autobiográfico porque o fazemos; contudo, a realidade carnal não
existe, porque é limitada por altura, largura, espessura, gravidade e tempo. Só
existe, permanentemente, a realidade absoluta, Deus. Assim, as autobiografias
são romanticamente heroicas e jornalismo, às vezes, é mentira pura. Nesse
aspecto, quando se fala em ficção verdadeira é porque o autor deu à luz.
Deixando a filosofia de lado, há muitos elementos autobiográficos no meu
trabalho, especialmente cidades, como Belém, Macapá, Manaus e Rio de Janeiro.
E
os personagens dos contos? Foram baseados em pessoas conhecidas ou são criações
da imaginação do escritor Ray Cunha?
Há
personagens que nascem prontas; outras, são retalhos de várias pessoas;
algumas, ainda, apresentam-se em sonhos e por meio de sons e visões.
Explique
uma de suas marcas como escritor: a repetição, em diferentes obras, de
elementos emblemáticos, como Chanel nº 5 e a personagem Frênia.
Tu bem o disseste:
emblemáticos. Chanel 5 simboliza, para mim, sensualidade; o Caribe; noites
tórridas, encharcadas de jasmim, em Macapá; maresia; o azul, tão azul que
sangra; o perfume das virgens ruivas; rosas nuas; o primeiro beijo; colostro;
negra em vestido de seda; mulher na chuva; espilantol. Daí porque são elementos
recorrentes no meu trabalho de criação. Mais de uma pessoa querida já me
alertou para o que lhes parece falta de criatividade. Mas certos elementos na
escrita de um autor são como fases na produção de um pintor: passam. Quanto à Frênia,
trata-se de um nome feminino danado de sensual; remete-me a frêmito, frenesi,
frenética. Frênia soa como a uma certa noite em que nos dedicamos a mergulhar o
mais fundo possível na mulher mais sensual do mundo; ela é lindíssima porque a
desejamos, e está na nossa frente, nua.
*MARCELO
LARROYED é mestre em Teoria Literária pela Universidade de Brasília e autor,
entre outros livros, do romance Eco
SERVIÇO
Na Boca do Jacaré-Açu – A Amazônia Como Ela É está à venda no site da Ler Editora (www.lereditora.com.br); na Livraria Sebinho, na 406 Norte, Bloco C; na Livraria do Chico, entrada principal da Ala Norte do Minhocão, no campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB), bem como Trópico Úmido – Três Contos Amazônicos
Veja entrevista de Ray Cunha ao programa Tirando de Letra, da UnB TV, sobre Na Boca do Jacaré-Açu
SERVIÇO
Na Boca do Jacaré-Açu – A Amazônia Como Ela É está à venda no site da Ler Editora (www.lereditora.com.br); na Livraria Sebinho, na 406 Norte, Bloco C; na Livraria do Chico, entrada principal da Ala Norte do Minhocão, no campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB), bem como Trópico Úmido – Três Contos Amazônicos
Veja entrevista de Ray Cunha ao programa Tirando de Letra, da UnB TV, sobre Na Boca do Jacaré-Açu
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