BRASÍLIA, 4 DE FEVEREIRO DE 2015 – Macapá é uma miragem que vai se materializando na medida em que o sol, gigantesca bola de ouro do outro lado do Canal do Norte, na cabeceira da Linha Imaginária do Equador, começa a se levantar, e, de repente, como mulher que emerge do mergulho, respingando água, mostra-se toda nua. À beira-rio, e no início da BR-156, sente-se o tumor latejando. A população avança natureza adentro, sem contar com nenhum metro de rede de esgoto. Macapá é uma cidade ribeirinha emblemática. Seu nome vem do tupi macapaba, lugar de muitas bacabeiras, palmeira nativa da região, de fruto, a bacaba, gerador de suco delicioso, quase tanto quanto açaí, este, de grande significado para os amapaenses, que já foram paraenses, pois o estado do Amapá é um naco da antiga Província do Grão-Pará, e os parauaras são os mais ávidos tomadores de açaí da face da Terra.
Assaltados
pela sede mais desmedida de ambição, os espanhóis, que instalaram no continente
ibero-americano uma aristocracia escravocrata e medieval, que os portugueses
potencializaram até a loucura, sondaram o setentrião da Amazônia Azul antes de
Pedro Álvares Cabral, de modo que em 1544, Carlos V de Espanha sentiu-se à
vontade para chamar aquelas paragens de Adelantado de Nueva Andaluzia, ao
conceder a província ao navegador espanhol Francisco de Orellana, que, cego
pela ambição, vagou pela Amazônia em busca da cidade de ouro, El Dorado, mas,
como seus colegas, foi vencido pelo Inferno Verde.
Em 1738,
colonos portugueses instalaram, ali, um destacamento militar, a Praça São
Sebastião, atual Veiga Cabral, onde, em 4 de fevereiro de 1758, foi levantado o
Pelourinho, um dos símbolos do implacável poder lusitano, na presença do
capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
fundando-se a Vila de São José de Macapá e selando-se o fim da nação que
dominava aquela beirada de rio, o povo tucuju, do tupi tucumã, também palmeira
natural da Amazônia, de frutos doces e oleosos, matéria-prima para vinho, licor
e mingau.
Em 1764,
Portugal deu uma demonstração do seu poderio na Amazônia, iniciando a
construção de projeto do engenheiro italiano Henrique Antônio Gallúcio, a
Fortaleza de São José de Macapá, concluída 18 anos depois, no ano de 1782,
alicerçando a Vila de São José de Macapá, da qual se tornou baluarte e cartão
postal, encravado na frente do Canal do Norte, a cerca de 200 quilômetros da
boca do Amazonas, quando o rio despeja pelo menos 200 mil metros cúbicos de
água túrbida de húmus no oceano Atlântico, por segundo, o suficiente para
encher 8,6 baías de Guanabara em um dia; em média, verte 400 mil metros cúbicos
de água por segundo, chegando, portanto, a derramar 600 mil metros cúbicos de
água por segundo no mar, além de espantosos 3 milhões de toneladas de
sedimento, por dia, 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que
a costa do Amapá está crescendo.
A boca do
rio, escancarando-se do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá,
mede 240 quilômetros, e sua água túrgida penetra 320 quilômetros no mar,
atingindo o Caribe nas cheias e, juntamente com outros gigantes do Pará e
Amapá, fertiliza o Atlântico com cerca de 20% da água doce de superfície da
Terra, contribuindo para que a costa do Amapá e do Pará sejam as mais ricas do
planeta em todo tipo de criatura do mar, especialmente a costa amapaense, pois
o húmus despejado pelo Mar Doce no Atlântico torna a Amazônia Azul setentrional
uma explosão de vida marinha, seu ponto mais esplendoroso, no Brasil mais mal
guardado pela Marinha de Guerra e menos estudado pela academia.
Enquanto os
tucujus se tornaram símbolo de um tempo antigo, espanhóis e portugueses legaram
os tempos heroicos, e persistentes, de colonos e colonizados, o drama que
perpassa a Ibero-América, a tragédia da Amazônia. A construção da Fortaleza por
meio do trabalho escravo de negros e índios foi o cadinho em que se forjou a
etnia macapaense. Os portugueses cruzaram com os africanos e geraram mulatos, e
fornicaram com os índios, formando uma população de mamelucos; os africanos
fundaram o bairro do Laguinho, misturaram-se com os índios e legaram cafuzos; e
mulatos, cafuzos e mamelucos misturaram-se, fechando o círculo, numa
diversidade étnica viva nas ruas de Macapá, nas nuanças de peles que vão do
alabastro ao ébano, passando pelo bronze e jambo maduro, e todos unidos pelo
sotaque caboco, a fusão do português falado em Lisboa, doces palavras tupis,
línguas africanas, patoá das Guianas, tudo triturado em corruptela, isso e a
seminudez dos habitantes do Trópico Úmido, que, antes de ser sensual, é
inocente, como o olhar da mulher amazônida, espilantol se espalhando nas
papilas gustativas da alma, o embalar de rede no rio da tarde, o choro dos
jasmineiros noturnos.
Ao olhar
superficial do leigo, que acidentalmente caiu na Amazônia, a Hileia lhe
parecerá o Inferno Verde, onde encurtará sua vida, devorado por microrganismos
e insetos, ou torrado pelo sol equatorial, ou afogado pela água, não do Mar
Doce, mas em estado gasoso, nos 100% da umidade relativa do ar. Assim, o incauto
será corrido daquelas paragens, grávido da antiga ideia dos colonos – agora, os
governos que se sucedem em Brasília, paulistanos, americanos, japoneses e os
europeus de sempre –, de que a Amazônia só serve para três fins: construção de
hidrelétricas; extração de madeira e mineral; e reserva de caça, pesca e
escravos, especialmente para o pugilato do sexo, além da crença de que os rios
são esgotos naturais. Esse pensamento assenta-se na crença de que os colonos
são deuses e os colonizados, seres inferiores, que existem para servir aos
sangues-azuis; razão pela qual o Trópico Úmido ferve no ventre das trevas. Já
ao escrutínio do iniciado, desvanecem-se as brumas da cegueira e começa-se a
enxergar com o terceiro olho; então, surge o paraíso no coração das trevas.
Seu texto me impressionou não apenas pela beleza, mas também pela riqueza de detalhes sobre essa terra tão cheia de atributos e desconhecida ainda para a maioria dos brasileiros. Feliz aniversário, Macapá!
ResponderExcluir