As roseiras estão grávidas. Entre os botões há uma rosa vermelha,
do tamanho do meu coração. Mostrei ao Fernando Canto o meu jardim, anos atrás, quando
veio me visitar. O jardim estava mal cuidado, mas havia pelo menos uma rosa
amarela para mostrar ao poeta. Tenho também dois jasmineiros. Nas noites
ardentes, o perfume invade minha memória. Tenho ainda leea rubra, um belo
comigo-ninguém-pode, violetas, lírios, jibóias e samambaias. Há, certamente,
outras plantas, como em todos os jardins. Essas flores, e borboletas, e fadas, povoam
o jardim que brota no meu coração.
Gosto de ouvir o silêncio, os rumores, que, às vezes, nos
chegam de outros planetas, e de percorrer as lombadas dos meus livros de
cabeceira na estante. Apanho Cheiro de
Goiaba, de Gabriel García Márquez; um bate-papo entre Gabo e Plínio Apuleyo
Mendoza, publicado em 1982. Em espanhol, El
Olor de la Guayaba. Este livro contém todo o trópico, e inunda, como
tempestade, os campos das minhas lembranças.
Nos dias quentes, mulheres povoam as ruas e os shoppings
trajando roupas folgadas e decotadas. Recendem a Chanel 5, maresia e gim.
Lembras-te, Fernando Canto, daquela noite, quando nos embriagamos com gim? E houve
outras noites regadas a daiquiri, Cerpinha e Strega.
Troncos de árvores, gigantescos, se espraiam até onde a
vista alcança, desde a Fortaleza São José de Macapá ao Igarapé das Mulheres. O
Trapiche, defronte ao Macapá Hotel, é uma rua comprida, sem semáforos e sem
esquinas. Se acaso é maré cheia e venta, ondas explodem no quebra-mar. Mulheres
bonitas espalham o rastro perfumado no rio azul da tarde, quase noturno. Na Rua
Mário Cruz, Isnard Brandão Lima Filho ouve o silêncio, enquanto espera a grande
dama, a noite, para ofertar rosas à madrugada.
O rio Amazonas açoita o quebra-mar com sua força descomunal.
Os troncos foram removidos faz muito tempo. O Trapiche se afoga no Mar Doce e,
longe, um navio, grande como uma cidade, se move como lesma para o norte. Logo
se encontrará com o Atlântico. Fernando Canto degusta Cerpinha. Sirvo-lhe de
nova taça. Fernando Canto também ouve o silencioso aproximar-se da noite, e
merengue. O poeta, quem sabe, trabalha um poema, ou compõe uma canção, ou engravida
de um conto, ou, quem sabe, de um romance, enquanto voa na noite iluminada por
mulheres inacreditáveis de tão lindas.
Quanto a mim, há muito tempo não me sinto tão feliz. Estou
em Macapá, bebendo Cerpinha enevoada com Fernando Canto.
– A poeta logo virá – diz Fernando Canto.
Sim. Aguardo-a. Ela esparge rosas colombianas à sua passagem
e tem o poder de evocar a Estrela Azul.
– Será como num conto – diz meu querido amigo.
– Como num conto de Gabriel García Márquez – digo.
– Em Barranquilha? – Fernando Canto pergunta.
– Não! – respondo. – Em Macapá, mesmo, num conto de Gabriel
García Márquez.
De repente, sinto o perfume das rosas.
– Gabo é como um velho amigo com quem eu gostaria de ter
convivido – disse. Fernando Canto está atento. – Conheço-o demais sem nunca o
ter visto. Mas conheço-o apenas na dimensão da poesia, não como conheço a ti –
disse ao poeta. – Isso ocorre também com meu pai e com Ernest Hemingway. Ah! Meu
pai era bonito e não tinha medo! Ele me contou histórias maravilhosas... Vejo-o
em sonhos e sinto sua presença. Gostaria de bater papo com ele, agora que me
sinto maduro.
– E Hemingway? – Fernando Canto pergunta.
– Todos os anos, envio para a Academia Espiritual da
Seicho-No-Ie, na cidade de Ibiúna, em São Paulo, pedidos de oração para mortos
queridos, entre os quais Papa Hemingway. Os mortos recebem oração o ano todo.
Saiba, Fernando, que, para os mortos, oração é luz, luz que conduz à harmonia
cósmica, que é Deus. Pois bem, no primeiro ano que enviei o nome de Papa para
Ibiúna sonhei com ele. Encontrava-me em um teatro que me lembra o interior do
antigo Cine Palácio, na Avenida Presidente Vargas, em Belém. Papa sentara-se
entre duas pessoas na platéia superior. Seus cabelos estavam completamente
brancos e ele parecia muito magro e com aquela debilidade das pessoas muito
velhas, embora tivesse apenas 61 anos. Logo depois o vi no palco. Várias
pessoas o ladeavam. Era o jovem Hemingway, trajando seu humilde terno preto dos
tempos de Paris. De repente ele desceu do palco e passou por mim, se voltou e
me olhou nos olhos. Obrigado! Disse-me, em silêncio.
Fernando Canto pede novas Cerpinhas e novas taças, e me
serve a enevoada cerveja paraense, a mais deliciosa do mundo. É uma noite
mágica. Todas as estrelas da galáxia se aglomeram no céu de Macapá, os
jasmineiros enlouquecem e as mulheres ficam ainda mais bonitas.
– Isnard! – Fernando Canto grita. O poeta Isnard Brandão
Lima Filho, trajando linho branco, aproxima-se sorrindo. Logo depois chega o
pintor Olivar Cunha. De um instante para outro nos reunimos em torno de várias
mesas, agora também com Alcinéa, Hemingway, Gabo e meu pai. Ganhei um sorriso
da Savina. Lá está Antoine de Saint-Exupéry, sentado à mesa pouco distante de
mim. Francisco, meu irmão, me abraça. Conserva a mesma beleza e imortalidade de
sempre. João Cunha acaba de chegar e me beija na testa. Mamãe me dá um abraço
redentor. É a mulher mais maravilhosa, linda e forte que conheço. Linda, minha
irmã, também está lá. Recebo beijos da Josiane e da Iasmim. De repente, todos
estão lá, mortos e vivos, ofertando rosas que não acabam nunca.
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