BRASÍLIA, 16 DE MAIO
DE 2015 – Alguns dos meus ídolos – Ernest
Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry – manifestam duas
características em comum: são escritores classe A e foram homens de ação. Um
homem de ação é aquele que pensa e age simultaneamente, e também não vive quieto,
pois está sempre metido em alguma aventura. A própria vida é sua grande
aventura, até que, no caminho, é derrotado pela barreira da dimensão física,
mas não é vencido, e passa a povoar o universo azul. Meu pai, o maior dos meus
ídolos, não era escritor, mas era um homem de ação, e me contou histórias
eternas.
Quando, aos 5 anos, descobri, no quarto do meu
irmão mais velho, Paulo Cunha, que seria escritor, ao meio de uma galáxia de
gibis, revistas e livros, meu pai tinha 44 anos. Media 1,68, era seco e forte,
o rosto oval, olhos castanhos e oblíquos, e usava uma loção à base de pinho após
raspar, com navalha, o rosto, deixando apenas o bigode. Foi o homem mais
corajoso que já encontrei; nada o intimidava. Internava-se na selva dias
seguidos, sozinho, e era capaz de meter uma bala no buraco de outra, a mais de
100 metros de distância. Ele não era escritor, mas escreveu alguns poemas, que
se perderam no tempo.
Lá pelos 14 anos, quando comecei minha carreira de
escritor, trabalhando num poema, que também se perdeu, dedicado a poeta Alcinéa
Maria Cavalcante, uma ninfeta completamente linda, peguei os originais do papai
e li alguns dos poemas na Rádio Educadora, não me lembro mais se num programa
do João Lázaro, ou do Luiz Tadeu Magalhães. Papai soube e me passou uma
reprimenda. Mas senti, ali, naquele momento, que, de alguma forma, ele não se
importou muito que eu tivesse lido publicamente seus poemas, e isso me deixou
feliz, pois agradar o ídolo é para o fã o sonho mais ousado.
Papai não era escritor, mas foi um extraordinário
contador de histórias. Leu Tarzan, de
Edgar Rice Burroughs, e contava a história para nós, meus irmãos e eu, como se
Tarzan fosse real. Porém o que mais me fascinava eram as aventuras do próprio
papai, especialmente quando se internou na selva profunda e foi atraído por uma
sucuriju. Tonto, quase desmaiando, foi salvo pelo seu anjo da guarda; conseguiu
avistar a cabeça da sucuri, apoiou o rifle numa forquilha e estourou a cabeça
da serpente, uma cabeçorra do tamanho de uma lata de leite Ninho.
Papai chefiava todo o trabalho pesado no Aeroporto
de Macapá, dos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul. Começava sinalizando à chegada
dos Douglas DC-3, abastecia os aviões e os despachava. A primeira vez que o vi
fazendo isso fiquei deslumbrado, e quando fui autorizado a entrar no avião foi
como se houvesse entrado numa nave espacial. Meu pai conversava com os pilotos
da nave e entrava no avião como se estivesse em casa, e serviram-me sanduíches
e biscoitos inimagináveis.
Apenas uma vez o vi fraquejar. Foi quando a
tragédia invadiu a Casa Amarela, a casa da minha infância, na esquina das ruas
Iracema Carvão Nunes e Eliézer Levy, onde hoje uma seringueira plantada por meu
pai no ano de nascimento do meu irmão, o gênio do pincel Olivar Cunha, intercepta
o muro do Colégio Amapaense. Foi quando anunciaram a morte do meu irmão
Francisco Pereira Cunha. Era 22 de novembro de 1965. Francisco tinha 18 anos e
era belo como Zeus, e imortal como todo jovem. Meu pai foi atingindo por um
raio. Caiu numa cadeira, mole, sem tônus, os olhos, sempre tão interessados
pela vida, gritavam de dor. E logo depois veio o segundo choque: o corpo
chegando. Não compreendi bem aquilo, apesar de ter 11 anos. Para mim, a matéria
era para sempre, e só fui entender o que se passara quando, no Cemitério São
José de Macapá, vi todos se sacudindo em choro, como chuva que não passa nunca.
Meu pai tinha 57 anos e eu 17, em 1972, quando peguei
um barco para Belém e de lá, de carona pela Belém-Brasília, em construção, fui
até Brasília, de onde parti para o Rio de Janeiro, onde vivi durante dois anos
em Copacabana. Retornei a Macapá e, ainda inquieto, tomei a estrada novamente,
até Buenos Aires, onde permaneci durante um mês, trabalhando como carregador de
fardos de trapo, utilizado em pequenas oficinas, para um judeu-argentino que
fora comando israelense, e que me viu na rua, no dia em que cheguei a Buenos
Aires, identificou-me imediatamente como brasileiro, não me largou mais, pois adorava
bater papo comigo sobre o Brasil, e sobre tudo.
Em 1975, retornei a Macapá e tentei voltar aos
estudos, interrompidos no quarto ano ginasial, no Colégio Amapaense. Mas a
inquietação não passara e resolvi conhecer a família do meu pai, em Manaus. Na
ida, estacionei em Santarém, onde Paulo Cunha morava, e trabalhei na Rádio
Difusora de Santarém, como redator e apresentador do jornal falado, durante um
mês. Então parti para Manaus. Assim que cheguei e me hospedei na casa da tia Isabel,
procurei saber o endereço do jornal mais central da cidade e fui até lá. O Jornal do Commercio ficava num prédio
neoclássico na Avenida Eduardo Ribeiro, e exibia uma placa na porta: “Precisa-se
de repórter policial”. Subi, procurei o diretor de redação, Cidade de Oliveira,
e lhe disse que a vaga era minha. No dia seguinte, comecei a trabalhar.
No dia 6 de março de 1977, recebi um telefonema de Laurindo
Banha, compadre do papai. Ele morrera, de colapso cardíaco fulminante, como árvore
atingida pelo raio. Naquela época eu morava sozinho numa casa no bairro de São
Francisco, onde o artista plástico português Álvaro Pascoa guardava dezenas de
telas do pintor amazonense Hahnemann Bacelar. Só fui me dar conta de sua morte
cinco anos depois, em 1982, em Belém, cursando Jornalismo na Universidade
Federal do Pará (UFPa.), aos 28 anos. Meu pai morreu com a mesma idade que
Ernest Hemingway, aos 61, e, naquela época, eu já conversava com Papa nos bares
da mente, quando o desejo de também bater longos papos com papai começou a se
avolumar na minha alma.
Em carta de 8 de novembro de 1991, a mim
endereçada, meu irmão caçula, Ricardo Cunha, graduado em História e pesquisador
da nossa árvore genealógica, diz, sobre nosso pai: “Nasceu em Sobral, Ceará, e
veio criança para a Amazônia. Seu primeiro emprego foi o de trabalhar na
lavoura, com a mãe, Rosa Maria Cunha, para sustentar as irmãs, Isabel, Maria e
Cunhã, já que seu pai, Manuel Raimundo Cunha, morreu quando ele e seus irmãos tinham tenra
idade. Foi capataz de quadreiro (capinador de campo de seringal) e serrador na
Companhia Ford Motors, em Belterra/PA. Posteriormente, transferiu-se para a
Cruzeiro do Sul SA, primeiramente em Belterra, depois em Santarém/PA e,
finalmente, em Macapá, onde chegou em janeiro de 1950, seguido pela já numerosa
família, em outubro daquele ano. Aposentou-se em 1975 pela Cruzeiro do Sul SA,
com 35 anos de serviço ativo. Era alto, forte, sereno, ao mesmo tempo rude;
embora semialfabetizado, era inteligente e intuitivo”.
Ontem, recebi e-mail do Ricardo: “Amanhã (16/05),
se o nosso pai estivesse vivo, completaria 100 anos de idade. Soldado da
borracha, caçador profissional, operário-padrão e um homem absurdamente honesto;
um homem que amava as mulheres (desde a juventude até casar-se com nossa mãe),
ele sempre representou para mim o arquétipo de macho durão, autossuficiente e
mantenedor da entidade familiar”.
Abro aqui um parêntese para dizer que nossa mãe,
Marina Pereira Silva Cunha, era a mulher mais bonita do mundo, e forte como as
rosas, que são eternas.
Ricardo: “Sei que nunca serei cinco por cento que
o nosso pai foi, pois, apesar do verniz de civilização que os estudos me
proporcionaram, o nosso pai, perante a vida, foi mais homem do que a maioria
dos homens que eu já conheci e mais e mais o admiro perante sua postura filosófica
perante a vida: foi um homem cético (ele não acreditava que o homem tivesse
chegado à Lua, por exemplo), mas extremamente honesto com seus princípios; não
proibiu que a mamãe continuasse sendo católica devota e nem aos seus filhos, e
também não vendeu seus princípios para agradar quem quer que seja.
“Amanhã, irei à missa, como faço costumeiramente
todos os sábados, e até pensei em mandar rezar uma missa em ação de graças pelo
seu centenário, mas depois refleti: aonde quer que o nosso pai esteja, ele
esboçaria um sorriso irônico, por não acreditar em sistemas de pensamentos
religiosos ou idealistas; daí resolvi respeitar a crença ou não crença do nosso
pai e apenas farei um silêncio obsequioso e uma oração para, onde ele estiver, agradecer
a sorte de ter sido meu pai e rogar que nos ajude nessa longa caminhada,
em busca de felicidade e paz”.
Andei por aí como judeu errante, como dizia Paulo
Cunha, durante uma década (1972-1982), em busca de mim mesmo, em busca de paz,
e a encontrei ao iniciar a caminhada interior, que nunca termina, pois é
uma espiral eterna, o caminho do Tao. Hoje, mergulhado na criação literária,
que é tão somente um portal para a dimensão infinita, e no taoismo, quando mergulho
no abismo de silêncio mozartiano da Meditação Shinsokan, no oratório do meu
quarto, sinto papai e mamãe me abraçarem e me beijarem.
Chamávamos para o quarto do meu irmão Paulo Cunha
na Casa Amarela de Quartinho; é lá que costumo encontrar-me com papai, Ernest
Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry e todos os mortos que amo, num
bate-papo interminável.
Muito emocionante relato. Ele também tive um pai assim, que em 1º de setembro deste ano completaria 100 anos. Homens como eles são muito especiais. Só quem os conheceu é que sabe o que significaram para a humanidade. Parabéns pelo seu pai.
ResponderExcluirUM TEXTO MEMORIAL, RICO EM SENTIMENTOS.PARABENS !
ResponderExcluirTENHO CERTEZA QUE TEU PAI { A QUEM VIA QUANDO PASSAVA DE MONARCK PARA IR AO IETA.) SEMPRE MEXENDO AQUI E ALI
FICARIA MUITISSIMO FELIZ OUVINDO-LHE LER ESTA HOMENAGEM
A ELE NA RADIO DIFUSORA DE MACAPA.
E DIRIA : - FILHO TUDO ISTO FUI EU?
E OUVIRIA DE VOCÊ. MUITO MAIS PAI. MUITO MAIS...
Conheci seu valoroso Pai e seu irmão Joãozinho, Cheguei em 69 para Supervisionar o tanqueio dos YS11, turbo hélice, fiquei na Cruzeiro do Sul S/A, em MCP até 1971 fui designado para Cruzeiro do Sul AC, até 1975, trabalhei depois na Aerofoto C.do Sul, posteriormente fiz o concurso para o Banco do Brasil e hoje estou aposentado pelo BB.
ResponderExcluirSeu pai foi um grande homem, honrado em ter tido a chance de conviver com ele, um abraço amigo.