Ray Cunha retratado por Olivar Cunha em grafite sobre tela para a capa do livro de poemas SOB O CÉU NAS NUVENS - Belém, 1981 |
Estou só, na tarde. A tarde é prenhe de mistérios, que
desvendo com um olhar para meu jardim. Ele ostenta uma rosa amarela, de Gabriel
García Márquez. Visto uma camisa branca de algodão, calças e casaco azuis de
linho, e sapatos pretos de couro. Meu rosto está bem barbeado e recendo a
Chanel 5, amadeirado, e assim misturo-me aos murmúrios e cheiros da tarde.
Fragrâncias de mar, vindas do meu coração, amalgamam-se ao ar prenhe do perfume
das virgens ruivas. A tarde é azul, tão azul que escorre na tela que Olivar
Cunha está pintando. Ouço os sussurros da tarde como o roçar dos lábios de uma
mulher de olhos verdes.
Estou só, na tarde, pois minha amada viajou. Assim, navego
no rio da tarde, sozinho, ao encontro da minha amante. Meus passos me levam a
um café no Setor Hoteleiro Sul. Há tantas mulheres lindas no café! Duas
conversam sentadas em um sofá. Uma é loira e seus olhos são azuis como a tarde;
a outra é ruiva, e seus olhos se confundem com esmeraldas. Riem. Seus risos são
cristalinos como crianças recém-lavadas, ao sol matinal da primavera. Conversam
tão perto uma da outra que seus lábios, grandes e vermelhos, parecem uma dança.
Degusto Mateus Rosé. Preparo-me para quando minha amante chegar.
A tarde agoniza. Morre como uma rosa, que, depois de se
tornar a joia mais delicada, preciosa e bela do mundo, deixa um eterno rastro
de luz. Assim desliza o rio da tarde. Logo a cidade será um transatlântico todo
iluminado, e as criaturas mais esplendorosas do universo, que são as mulheres,
espargirão seu perfume, como jasmineiros em tórridas noites em Belém do Pará.
Uma jovem mulher passa ao meu lado, quase roçando em mim.
Volto-me para vê-la. É uma negra em vestido de seda, tal qual uma que vi na
Estação das Docas, em Belém. Talvez fosse da Guiana Francesa, ou de Trinidad e
Tobago, ou da Martinica. Falar em Martinica, se Hemingway estivesse aqui comigo
eu o convidaria para pescar ao largo de Sucuriju, no Amapá. Bem que Fernando
Canto poderia estar comigo nesta tarde, que morre. Mas o poeta tem suas
próprias tardes, que são, certamente, prenhes do perfume das virgens ruivas, e
mar. O poeta decifrou a dimensão da intensidade e tem olho clínico para o
cheiro de maresia.
Não tenho nem um, nem outro, nem a mulher amada. Só me resta
esperar mais um pouco para cair no colo da minha amante. Ela chega suavemente,
e, quando a percebo, sua paradoxal luz ofuscante entra nos meus sentidos e me
conduz à dimensão do primeiro beijo. Mas nunca estamos preparados. Minha amante
é puro mistério, e é também amante de todos os homens, e, principalmente, de
todas as mulheres. Ela é a mais bela das rosas: é a noite.
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