Macapá é uma cidadela limitada pela selva e o maior rio do
mundo. Na maré cheia, e se os alísios sopram mais forte, ondas de dois metros
rebentam no muro de arrimo defronte à cidade, e quando a maré baixa, o leito do
Mar Doce aparece, numa faixa escura de um quilômetro, rio adentro. A cidade
começou a invadir a floresta; aos poucos, põe-na abaixo, em marcha de terra
arrasada. Quanto ao rio Amazonas, continua levando a Belém. Vivi 17 anos em
Macapá, e desde então nossa vida tem sido de reencontros e partidas. Hoje eu
sei que uma cidade são várias cidades, incluindo as que construímos em nosso
coração, de modo que fecho os olhos físicos quando chego, de barco ou de avião,
e apuro os sentidos, para mergulhar nos indeléveis labirintos da cidade da
minha infância, prenhes de espilantol.
Eu tinha 17 anos quando a deixei, peguei o rio e a estrada e
sumi em Copacabana. Em dezembro de 1971, publicara, juntamente com Joy Edson
(José Edson dos Santos) e José Montoril, Xarda
Misturada, um livrinho de poemas adolescentes no qual o poeta Isnard Lima
Filho encontrou um veio de pedras preciosas (certamente os poemas do Joy) e me
batizou de Ray Cunha, profetizando que um dia entraria no mercado livreiro
norte-americano. Meu nome é Raimundo, do gótico “sábio protetor”, uma homenagem
a meu avô paterno, Manoel Raimundo Cunha, e a meu pai, João Raimundo Cunha,
além de uma promessa de vovó Rosa Maria Cunha a São Raimundo Nonato, padroeiro
das parteiras e obstetras.
Naquela época, em Macapá, artistas eram vistos como
vagabundos. E achei que deveria me mandar, e me mandei. Peguei minha cota de Xarda Misturada, tomei um barco no
trapiche de Macapá e parti rumo a Belém, onde, com ajuda do meu irmão Paulo
Cunha e de amigos peguei carona pela Belém-Brasília, ainda em construção, e fui
bater na cidade recém construída por Juscelino Kubitschek. Na cidade-estado –
hoje, fogueira das vaidades e valhacouto de assaltantes perigosos –, consegui,
no antigo Ministério da Educação e Cultura (MEC), passagem para o Rio. De lá,
queria ir a Paris e cheguei a conversar isso com o dramaturgo Paschoal Carlos
Magno, que baixou meu fogo e me aconselhou a me aquietar no Rio mesmo.
Eu tinha 19 anos quando vi pela primeira vez uma orquestra.
Foi em 1973, no Teatro da TV Globo, no Jardim Botânico. Naquele dia, uma nova
porta se abriu na minha vida. A Orquestra Sinfônica Brasileira – não me lembro
quem era o regente – apresentou A
Sagração da Primavera, do russo Igor Stravinsky. Quando Le Sacre du Printemps, balé em dois
atos, estreou, em 29 de maio de 1913, no Théâtre dês Champs-Élysées, em Paris,
foi um escândalo. Tratava-se de música moderna, inovadora, revolucionária. Os
acontecimentos só são importantes quando nos atingem em profundidade. Isso
ocorreu também, em 1983, em Belém do Pará, ao ouvir Mozart pela primeira vez, Concerto para Piano e Orquestra em Ré Menor.
Já estou descendo o morro da vida. A encosta é íngreme. Não
importa; foi a trilha que escolhi. Fui belo e imortal, inquieto, dramático,
desesperado e trágico, como, quase sempre, os jovens todos. O corpo é um
amontoado de átomos, que se unem enquanto há vida, e a vida segue um
afunilamento, e amplia-se. Às vezes, Deus arruma nossas manhãs, e as roseiras
rebentam em rosas nuas (visíveis pelos olhos do coração), jasmineiros choram
perfume, ouve-se o riso de crianças e o esplendor do sol roça o mundo.
As zínias; as rosas; beijos que são como terremoto; a
intensidade, quase insuportável, de criar o poema, são luzes que fecundam o
tao, o caminho, a estrada da vida, que pode ser escura, mas não deve ser
escura. Precisamos pontilhá-la de luzes, portas para o rio da tarde.
Brasília, 14 de
janeiro de 2016
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