sábado, 11 de novembro de 2017

CONTO/A aventura do leão Cândido em Brasília

Este conto está à espera de um artista para ilustrá-lo e se tornar livro!

RAY CUNHA

Era uma vez, no Quênia, país da África oriental, um guia chamado Lili, que ganhava a vida conduzindo expedições ao coração da selva. Um dia, Lili participava de uma expedição policial em perseguição a caçadores, mas não puderam impedi-los de matar uma leoa e fugissem a seguir. Ao se aproximar da leoa, Lili descobriu que havia um gatinho ao lado dela. O gatinho estava chorando. Lili o pegou ao colo e pediu ao chefe da expedição autorização para adotar o gatinho, no que foi atendido.

Cândido Lili, como foi batizado o leãozinho, era muito amoroso e logo fez amizade com todos os animais da fazenda de Lili. Nem as galinhas tinham medo dele, pois Cândido foi educado a não matar sequer uma mosca. Além disso, ele não comia carne vermelha, mas apenas filé de peixe cozido, com arroz integral, e uma ração que Lili inventou, à base de soja. Cândido gostava de tudo da fazenda, sobretudo da companhia de Lili, tanto que o imitava muito bem, de tal modo que acabou aprendendo a se vestir e a falar português do jeitinho de Lili, que nascera em Brasília. À noitinha, os dois sentavam-se na varanda e o guia contava para Cândido como era a vida na capital brasileira.

– Eu gosto de ir ao Conjunto Nacional, um grande shopping defronte ao Teatro Cláudio Santoro, muito agradável, onde sempre compro livros na livraria Leitura, e almoço também lá mesmo. No Brasil, temos um prato, a feijoada, que foi inventada pelos nossos antepassados africanos. Você sabia, Cândido, que os africanos são também nossos antepassados, além dos índios e portugueses?

Cândido ouvia, sonhador, o pai adotivo.

– Pois é, Cândido, a feijoada é composta de feijão preto; pés, rabo e orelha de porco; e toucinho defumado, com arroz e couve frita. Se a pessoa quiser, pode pôr também um pouquinho de caldo de feijão com pimenta.

Cândido sentia água na boca.

E de tanto Lili contar como era Brasília, Cândido jurou a si mesmo que um dia visitaria aquela cidade tão encantadora, sobretudo para se empanturrar na praça de alimentação do Conjunto Nacional.

O desejo de Cândido era tão sincero que, como acontece a todos os desejos que nascem no coração, tornou-se realidade. Filho único, Lilia, todos os anos, passava as festas natalinas com seus pais, em Brasília, e resolveu, naquele ano, levar Cândido consigo.

Algumas providências e cuidados tiveram de ser tomados para a viagem. Mas como Lili tivesse muito prestígio junto ao governo do Quênia não foi difícil convencer as autoridades quenianas a fornecerem um passaporte a Cândido, pois eles mesmos estavam convencidos de que Cândido era um gigante parecido a um leão. E depois, a cada dia que passava, Cândido ficava mais parecido a um homem.

Durante a viagem, tudo correu bem. Cândido se comportou como um cavalheiro, tanto que ninguém desconfiou dele. Voltavam-se para vê-lo devido ao seu tamanho, ao sobretudo, às luvas, os óculos escuros e o chapéu panamá, o que lhe dava um ar misterioso.

Os pais de Lili sofriam de alergia a gatos, qualquer espécie de gato. Além disso, poderiam morrer de susto ao verem Cândido à vontade, em casa. Assim, Lili e Cândido se hospedaram no Hotel Nacional, o hotel mais famoso da cidade. Na noite de Natal, Lili foi cear com seus pais e Cândido ficou no hotel, vendo televisão, pois ele adorou os programas das TVs brasileiras, e no Ano Novo, Lili o levou, à meia-noite, à Esplanada dos Ministérios, para verem de perto a queima de fogos. Foi tudo inesquecível para Cândido: um concerto no Teatro Nacional, a visita à Galeria de Arte da Caixa Econômica Federal, um filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol, em DVD, e algumas idas ao Conjunto Nacional, onde Cândido repetia vinte feijoadas. Quando não estava passeando com Lili, Cândido permanecia o tempo todo no Hotel Nacional, para não dar na vista. Lia muito Euclides da Cunha, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Márcio Souza, Dalcídio Jurandir, João de Jesus Paes Loureiro e Benedicto Monteiro, pois queria saber tudo sobre o Brasil, principalmente a Amazônia, pátria de Benedicto Monteiro, o grande escritor paraense.

Cândido fazia trinta refeições diárias, a maioria das quais comprada por Lili fora do hotel, para não dar na vista. Mas numa sexta-feira, Lili foi visitar seus pais e na volta ficou preso em um gigantesco engarrafamento, por duas horas, o que atrasou na compra da comida de Cândido. No começo da tarde, cansado de ler seus autores prediletos, de ver televisão e faminto, Cândido resolveu almoçar no Conjunto Nacional.

– Morrerei de tédio, se não morrer antes de fome. Preciso ir ao Conjunto Nacional comer trinta deliciosas feijoadas – disse a seus botões.

Dito e feito. Pegou o sobretudo, as luvas, os óculos escuros e o panamá e pouco depois estava num táxi a caminho do Conjunto Nacional. A praça de alimentação do shopping é muito aprazível, embora, naquele momento, estivesse lotada. Mas nosso herói teve a sorte de encontrar uma mesa ocupada somente por uma pessoa, um velhinho muito atencioso. Reservou uma cadeira e foi se servir. O velhinho assobiou quando viu o prato de Cândido, que sentou seu corpanzil e se pôs a comer. Em pouco tempo havia uma pilha de pratos na mesa e o velhinho, de queixo caído, olhando para Cândido.

Após vinte e nove feijoadas, o cinto de Cândido começou a ficar apertado, as patas começaram a doer e o calor ficou insuportável. E como também Cândido tivesse posto muita pimenta na última feijoada, estava com a boca pegando fogo. Então, esquecido das recomendações de nunca tirar em público o sobretudo, os sapatos, as luvas, os óculos escuros e o panamá, de nunca ejetar as garras e arreganhar a bocarra, livrou-se das roupas quase que num só golpe, além de expelir as poderosas garras e emitir um despropositado rugido de prazer.

Foi o caos. Em alguns segundos a praça de alimentação ficou vazia. Era gente voando para todos os lados. O velhinho que estava à mesa de Cândido nem pegou sua bengala e foi o primeiro a alcançar as escadas. Uma senhora gorducha e de sapatos muito altos chegou às escadas em segundo lugar, e sem deixar cair nada do enorme prato que levou consigo. A gritaria era muito grande, principalmente dos pais das crianças, que teimavam em ver Cândido de perto.

Nesse meio tempo, Lili, preocupado, finalmente saiu do engarrafamento e voou para o hotel. Encontrou um bilhete sobre o criado mudo da cama de Cândido: “Estou esperando o senhor na praça de alimentação do Conjunto Nacional. Cândido”.

Lili saiu novamente a jato e chegou ao Conjunto Nacional pouco antes dos bombeiros. Subiu até o piso da praça de alimentação. Não havia vivalma por ali. Então Lili viu as roupas de Cândido, juntou-as e procurou-o. Acontecera o seguinte: logo depois que o pessoal começou a correr, Cândido foi até uma torneira de Coca-Cola e bebeu três litros de refrigerante, depois, deitou-se no chão e adormeceu. Quando Lili o encontrou, Cândido estava roncando. Lili o sacudiu.

– Ah! Até que enfim o senhor veio para me fazer companhia – disse Cândido.

– Não há tempo para mais nada. Os policiais e bombeiros estão vindo aí para prendê-lo, ou acertá-lo igual os caçadores fizeram com sua mãe. Vista-se rapidamente, não há tempo a perder. Temos de sumir daqui. Vamos!

Cândido era dócil e obediente, e pelo tom de voz de Lili, que não era de perder a serenidade, compreendeu que acontecera algo grave. De modo que quando a polícia e os bombeiros chegaram os dois já haviam deixado o Conjunto Nacional por uma das saídas laterais.

Lili e Cândido voltaram no dia seguinte para o Quênia.

Agora, Cândido demorava-se mais na selva do que em casa. Um dia, disse a Lili que ia lhe apresentar Elza, uma bela gata, digo, leoa, com quem se acasalou e teve muitos gatinhos. Lili, agora, não é mais guia. Casou-se com uma princesa africana chamada Loló e já tem sete candanguinhos da gema, pois os meninos nasceram todos no Hospital Regional da Asa Sul. Lili mudou-se para Pirenópolis, uma cidadezinha goiana no Entorno de Brasília, onde construiu um pesque-pague muito movimentado, que vai de vento em popa. Todos os anos, Lili, Loló e os sete Lilicos vão ao Quênia visitar Cândido, que ficou morando na fazenda de Lili e tem uma prole tão grande quanto à de Lili e Loló. Então batem papo sobre os velhos tempos e morrem de rir da aventura em Brasília.

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