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Aqui, você lerá o Capítulo III do romance de Ray Cunha, FOGO NO CORAÇÃO, trabalho de conclusão do curso de Medicina Tradicional Chinesa pela Escola Nacional de Acupuntura (ENAc). Você pode adquirir este livro na Amazon.com.br ou no Clube de Autores.
A reunião, na
sala do diretor da Fundação Holística, Marcelo Quintela, começou às 19h40. Além
do diretor, Marcelo Quintela, Emanoel Vorcaro e Ricardo Larroyed, estavam
presentes mais quatro professores: Bartolomeu Amado; Maurício Couto; Ana Maria
Castro, uma carioquinha linda como o mar; e Walkiria Góes, uma goiana
sessentona, conhecida como “galinha”, porque aninhava todos os seus alunos
debaixo das asas; também era conhecida como “mãe Joana”, porque nas suas aulas
os alunos faziam o que bem entendiam, tanto que suas aulas pareciam concerto de
rock, daqueles mais vagabundos. Quando Ricardo Larroyed entrou na sala, todos
estavam curvados sobre seus celulares, com exceção de Emanoel Vorcaro.
A questão a ser discutida era precisamente que os professores
Bartolomeu Amado e Maurício Couto, que ensinavam várias disciplinas específicas
de medicina tradicional chinesa, estavam confundindo os alunos, os quais foram orientados,
quando entraram na Fundação Holística, a basear-se em Giovanni Maciocia,
enquanto os dois professores falavam mal do acupunturista e escritor italiano.
Houve várias reclamações de alunos que não concordavam com Bartolomeu Amado e
Maurício Couto, que também fizera curso de acupuntura na China, embora curso
técnico.
– Meus amigos, a questão é a seguinte: desde o início, a Fundação
Holística adotou Giovanni Maciocia como teórico nos nossos cursos, mas de uns
tempos para cá os professores Bartolomeu Amado e Maurício Couto vêm ignorando a
posição da escola e até desaconselhando os alunos a lerem Maciocia. Quero
esclarecer, logo de início, que não se trata, aqui, de pôr em dúvida os
conhecimentos dos professores Bartolomeu Amado e Maurício Couto, os quais,
todos aqui sabem, são mestres em medicina tradicional chinesa. Pois bem, o que
queremos, com essa reunião, é adotar uma linha de raciocínio na escola, para
não confundir os alunos, que já andam às voltas com questões comezinhas, que
vão desde a profundidade das agulhas até o tempo de permanência delas. Como
sabemos, a medicina tradicional chinesa é um universo infinito de
conhecimentos, mas nós, como escola, precisamos dar um direcionamento aos
alunos; depois, cada qual seguirá sua própria intuição. Assim, gostaríamos de
ouvir inicialmente o professor Bartolomeu Amado – Marcelo Quintela discursou.
Maria das Dores Craveiro serviu café e chá de erva cidreira. Ricardo
Larroyed gostava do café da escola, um blend encorpado e de aroma forte; serviu-se
de uma xícara. Cada qual serviu-se de café ou chá, antes de Bartolomeu Amado
começar sua fala. Deu uma golada de chá de erva cidreira, espremeu uma
excrescência no queixo, sob a barba rala, e começou a falar.
– Durante minha estada na China, e foi muito tempo, nunca ouvi falar em
Giovanni Maciocia. Depois que entrei aqui para a Fundação Holística tentei ler
Maciocia, mas não consegui. Ele dá muitas voltas, é repetitivo, e além do mais
passou muito pouco tempo na China. Tudo o que aprendi de medicina tradicional
chinesa, e não é pouca coisa, foi dos clássicos e de grandes mestres que tive
na China. Assim, não vejo por que adotar alguém que desconhece o que é
realmente a medicina chinesa. Mas, e que isso fique claro, farei qualquer coisa
pela escola – disse Bartolomeu Amado, calando-se a seguir.
– Professor Maurício Couto, por favor – convocou Marcelo Quintela.
– Bem, eu também nunca ouvi falar de Giovanni Maciocia na China; já vim
ouvir falar no nome dele aqui no Brasil, e também nunca me interessei em ler
algum livro dele, embora eu tenha o Fundamentos,
que tentei ler mas achei maçante – disse. – É só o que tenho a dizer. Acatarei
a posição da escola.
– Bem, pedimos ao professor Emanoel Vorcaro para fazer a defesa de
Giovanni Maciocia, em nome dos que não colocam objeção na adoção do ilustre
italiano. Professor! – convocou Marcelo Quintela.
Emanoel Vorcaro trajava-se em indefectível terno; escolhera um de linho
preto, camisa de algodão, de branco imaculado, e gravata de seda azul claro.
– Como os senhores sabem, leio, falo e escrevo fluentemente em
mandarim, inclusive o clássico, e fiz curso superior de medicina chinesa na
China, onde vivi parte da minha vida e aonde retorno de vez em quando. Posso
dizer que três coisas me interessam nesta vida, além do meu país: a China, e
sua cultura milenar, ternos e rabada (todos riram), especialmente a rabada do
Café e Restaurante Dona Neide, na Feira do Guará. Assim, tenho conhecimento
suficiente, acredito nisso, para saber o que é adequado ou não a este Instituto
Holístico, meu segundo lar. Li toda a obra do professor Giovanni Maciocia, além
de ter assistido a uma conferência do grande homem, em Londres, há muito tempo.
Giovani Maciocia, no meu julgamento, fez mais pela acupuntura no Ocidente do
que todos os professores de medicina chinesa, de todos os países ocidentais, que
nunca publicaram um livro, ou que jamais publicarão uma obra como a de Giovani
Maciocia; obra fantástica, porque ele leu os clássicos em mandarim, estudou-os
à exaustão, compreendeu a filosofia que alicerça a medicina chinesa, e traduziu
esse oceano para o inglês, o mandarim do Ocidente, proporcionando a todos,
gostem ou não dele, muito embora, às vezes, sem ter a necessária paciência
chinesa para o ler, proporcionando a todos, como eu dizia, a oportunidade de
entrar nesse mar, seguindo uma hidrovia organizada e sinalizada. Como aqui se
trata de uma questão prática, sugiro aos professores Bartolomeu Amado e
Maurício Couto que comecem já a ler Giovanni Maciocia, até porque, professores,
ensinamos medicina chinesa, porém não estamos na China, mas em Brasília, que,
com a China, só tem algo em comum: escorpiões. Com a diferença de que aqui não
os comemos – disse.
Todos estavam admirados, pois nunca viram o professor Emanoel Vorcaro
falar tanto.
A reunião não demorou, talvez por conta das palavras do professor
Vorcaro, firmes e certeiras, pegando desprevenidos os professores Bartolomeu
Amado e Maurício Couto. Vorcaro não topava com nenhum dos dois, e o destino
havia lhe dado a oportunidade de aplicar um soco elegantíssimo nas caras
espinhenta do bafo de onça e lambida de Maurício Couto, o professor sem ética,
pois não era ele que aconselhava seus seguidores a não curarem logo o paciente,
para terem a oportunidade de meter a mão na sua carteira? Talvez aquela reunião
estivesse destinada a prolongar-se mais um pouco, inclusive com bate-boca, mas
a posição do professor Emanoel Vorcaro, e sobretudo o brilho nos seus olhos,
brilho que jamais viram no zumbi, lançou um balde de água fria em qualquer
predisposição a esticar mais o colóquio. A dupla concordou em não mais depreciar
Giovanni Maciocia diante dos alunos, o que para Marcelo Quintela era
fundamental.
– O acupunturista dispõe de inúmeras técnicas, que ele vai conhecendo
ao longo do caminho, mas será a intuição e a prudência que determinarão o que
deve ser feito. Questões como se abrir meridiano vivifica ou mata, ou se
somente deve-se comer abóbora entre 9 e 11 horas da manhã, horário do baço, ou
se devemos defecar entre as 5 e 7 horas, na concentração máxima de energia no
meridiano do intestino grosso, por exemplo, são subjetivas, mas é necessário
que sigamos, digamos assim, uma escola, e nossa escola básica é Giovanni
Maciocia – Quintela comentou com Ricardo Larroyed e Emanoel Vorcaro, os últimos
a saíram da Fundação Holística, além de Maria das Dores Craveiro, que fechava a
porta. Quintela tinha um compromisso e se mandou. Era cedo, 20h30. Ricardo
Larroyed e Emanoel Vorcaro seguiram para o Sushi San, na 211 Sul. Ambos já haviam
ido lá e concordavam numa coisa: “Trata-se da melhor comida japonesa de
Brasília”. Escolheram uma mesa no térreo e pediram uma garrafa de saquê
japonês.
– O que está acontecendo? – Ricardo perguntou ao seu sócio.
– Você notou? – ele respondeu. – Atendi, hoje, na clínica, uma modelo
ruiva, com o útero tomado de mioma, ampliado em quatro vezes. É uma das
mulheres mais lindas que já vi na minha vida. Hoje, comecei a compreender o que
é vampirismo. Você sabe, Larroyed, que não espero mais nada desta vida, pois
morri naquela manhã. Na verdade, comecei a morrer um dia antes daquela manhã,
quando pensei com tanto furor na mulher amada, que naquele momento era a mulher
odiada, e o ódio, que a tudo destrói, destrói inclusive seu condutor, destruiu
a mulher amada, e, com ela, toda a luz que me conduzia. Mas hoje, apenas por
ver uma faceta do belo, uma amostra, microscópica, da luz, é como se eu
houvesse ressuscitado. Não sei quanto tempo isso durará, mas estou eternizando
essa sensação ao infinito.
– Uma modelo com mioma? – Ricardo perguntou, degustando o saquê.
– Modelo, linda como a minha Eliana, e em vias de ficar estéril, porque
seu útero poderá ser removido, a menos que eu consiga debelar a tara da sua
família: todas as mulheres da família dela são atingidas por miomas, e até onde
pude perceber todas elas foram operadas, mas nenhuma perdeu o útero, até agora.
E eu sei, pelo cheiro, que ela é daquele tipo que fica sempre virgem, embora
tenha sido estuprada e usada inúmeras vezes; ela tem a natureza das rosas: frágeis,
mas inexpugnáveis.
– Como é que essa paciente foi parar nas suas mãos? – Ricardo
perguntou.
– Aquela PM que estuda no Instituto Holístico, Cecília, recomendou ao
irmão da modelo, que é também da PM, me procurar, e foram lá esta manhã.
Comprei, hoje, inclusive, babosa, para fazer xarope, ainda hoje à noite, para
ela começar a tomar amanhã.
– Por acaso ela é da Agência Modelo Cerrado?
– Não sei; sei que ela é modelo.
– Ela será atendida a que horas, amanhã?
– Às 10 horas; sempre às 10 horas.
– O caso dela não é muito comum – disse Ricardo, mergulhando com o
hashi no shoyu um naco de salmão.
– Não! O útero aumentou quatro vezes de tamanho!
– Você já pegou algum caso parecido?
– Não, igual a esse caso, não!
– Eu também nunca peguei um caso desses, nem no Instituto, nem na
clínica. Aparecem casos de mioma, mas não tão grandes como esse. Tenho notado
que é uma doença muito comum; aparecem muitos casos no ambulatório do Instituto?
– Larroyed sondou.
– Sim, sim! Sou capaz de me lembrar, inclusive, no que diz respeito a
modelo, pois já atendi na Fundação duas pacientes modelos. Foram uma vez e não
voltaram mais, ambas com mioma no início. Suponho que tenham resolvido a coisa
com uma raspagem. Minha vida é uma sucessão de aparições de modelos; não sei se
isso é real ou se é sonho. Mas o que é real e o que é sonho!
– A Cecília o acompanha desde sempre no ambulatório do Instituto; ela é
talentosa?
– Você está pensando em dar uma oportunidade a ela na clínica? Não! Ela
é medíocre no diagnóstico, mas é a melhor aplicadora de agulha entre meus
alunos; é só dizer onde é o ponto. Ela sabe o nome de todos os pontos
anatômicos, embora não tenha noção do que esteja fazendo. Estão ensinando os
alunos de maneira errada. Muitos, lá, que já acabaram inclusive as matérias
teóricas, quando vão aplicar agulha banham o paciente com álcool e antes de
aplicar cada agulha orientam o paciente a respirar fundo. Assim, eles são
preparados para sentir dor, e a sentem, claro. Após dez agulhas eles ficam
estressados. Lembro-me que atendi uma paciente que não suportava agulha e dizia
sentir dor até se a triscássemos; apliquei nela 10 agulhas e quando terminei
ela me olhou com olhos esbugalhados exclamando: o senhor já colocou as agulhas?
Sim! Disse-lhe. Doeu? Ela: Não! Nem um pouquinho! Nossa! Pensei que isso
doeria! Os alunos que estavam me acompanhando ficaram boquiabertos,
especialmente os que aprenderam essa besteira de banhar o paciente com álcool e
alertá-los para uma sequência de punhaladas. Mas como eu ia dizendo, comecei a
duvidar se estou vivendo ou sonhando, ou nem um nem outro, já estou morto mesmo
– disse o professor Emanoel Vorcaro, comendo um naco de sushi.
– Pode ser que nenhum de nós esteja vivo; de qualquer jeito, quando
sair daqui irei para a casa da Greta, e, morto ou não, pretendo meditar nela –
disse Ricardo Larroyed. – Mas esse negócio é intrigante, se a vida, na dimensão
da Terra, é real ou fictícia, ou melhor, se a própria dimensão, altura,
largura, espessura e tempo, além da força de gravidade, é verdadeira ou é
ilusão.
– Seja como for, este excelente Kamoizumi, fabricado em Hiroshima, a
mim parece bem real – disse Vorcaro, tomando um grande trago da bebida.
– Só conheço Tókio – disse Ricardo.
– Conheço razoavelmente o Japão – volveu o professor Vorcaro. – Gosto
de lá, especialmente de Tókio, que é realmente uma cidade grande, cosmopolita,
como São Paulo. Foi lá que aprendi a lidar com adagas. Posso cravar uma adaga
na outra a 30 metros de distância. Acho que daria um bom cirurgião, pois além
de manejar com destreza ferramentas cortantes, como navalha, por exemplo,
conheço minuciosamente a anatomia humana. Certa vez, conversando com um doutor
em anatomia, ele se surpreendeu com meus conhecimentos. Posso descrever
minuciosamente, e de forma erudita, a região de cada acuponto – disse Vorcaro.
O jorro de conhecimentos que ele vertia minava como água das pedras; talvez se
originasse disso parte da sua elegância, que é o oposto da pose.
– Você é capaz de auscultar um baço? Se você quisesse golpear um baço,
seria capaz de alojar um punhal exatamente nele?
– Até a 30 metros de distância; com mais do que isso talvez errasse e
atingisse o pâncreas – disse Vorcaro, com o que Larroyed já havia detectado
nele: humor negro. – O intrigante é que tenho esse poder, mas, com relação à
minha querida Eliana, não pude ajudá-la; nunca pude perceber o que estava
acontecendo com ela, nem se quando a conheci ela já mergulhara naquele vício. O
que desencadeou o vício? Por que ela me escolheu? Por que ela morreu antes de confessar
sua tragédia? Por que não conversei com ela naquela noite? Por que um gato me
entregou o diário dela? Por quê? Por quê? Só há por quês!
– É o caminho! – disse Larroyed. – Acho que devemos prestar atenção
apenas no agora; agora é a eternidade, e a eternidade pode ser uma modelo ruiva
– disse.
Os olhos de Vorcaro voltaram a se iluminar.
– Agora é a eternidade! Mortos ou não, temos muito, ainda, o que viver.
A eternidade pode estar nesse Kamoizumi – disse, bebendo um gole. – Preciso
preparar o xarope daquele anjo. Ela pode muito bem ser o avatar da minha
Eliana. A Eliana só não era ruiva, mas era toda simétrica; eu a medi toda.
Tínhamos esse jogo: mediamo-nos. Eu sou praticamente aleijado, ou pelo menos
completamente assimétrico, enquanto ela era perfeita; em vez de lavas de rubi,
o que escorria da sua cabeça era mel, mel e lava de ouro, e sua boca lembrava
uma rosa colombiana, esmigalhada, como a boca da Aline Moraes. Ela era
perfeita, exceto por não poder ter filhos, e por se comportar como cadela no
cio. Mas cadela no cio é apenas um animal irresistível aos cães, e todos eles
enlouquecem quando sentem o cheiro. Eu também enlouquecia; Eliana me levava à
loucura, e assim foi durante uma década, uma década inteira. Eu pensei que ela
não quisesse ter filhos e não a forçava, até porque ela era aquela cadela no
cio, e, como Rosa Nolasco, ela tinha bezerro; seu sexo sugava o meu como uma
ventosa, e era sempre apertado, e cada vez era como se eu rompesse seu hímen;
ela era sempre virgem, e tinha o perfume das virgens ruivas o tempo todo. Sei
disso porque a primeira mulher da minha vida era ruiva. Eu tinha 14 anos e ela,
16. Era virgem, e ruiva. Foi também meu primeiro beijo na boca. Ah! Foi um
cataclismo aquele beijo. Pela primeira vez senti que, realmente, estamos
girando no espaço, a velocidades inacreditáveis. Foi um terremoto, seguido de
uma queda para cima. Caí num abismo sem fundo, pois rompi o hímen do abismo,
até chegar ao fundo, e então me vi num labirinto sem fim, e comecei a caminhar
nele, a correr, a voar, até ver uma luz insuportavelmente branca na boca do
túnel onde me encontrava: era o acme – disse Vorcaro, que tinha bebido pelo
menos três quartos do saquê. – Vá e mergulhe na Greta; quanto a mim, preciso
preparar o xarope para aquele raio de luz, para aquele Pequeno Príncipe, que
parece ter vindo me resgatar do mundo das trevas. Dê, por mim, um abraço na
Greta; o resto é por sua conta – disse, sinalizando ao garçom para levar-lhe a
conta. – Este jantar é meu; você pagará nosso almoço, amanhã. Poderemos nos
encontrar na clínica, você conhecerá a Rosa Nolasco e então decidiremos onde
vamos almoçar.
– Vorcaro, há uma coisa que precisamos conversar – disse Larroyed. E
então contou tudo sobre a investigação que começara naquele dia.
Do Sushi San, Ricardo Larroyed se dirigiu para o apartamento de Greta
Cantanhede. Gostava de ir lá. Já passava das 23 horas quando subiu para o
apartamento, de três quartos, no último andar de um prédio próximo à
panificadora e confeitaria Pão Dourado, na Primeira Avenida do Sudoeste. Quando
não mergulhava no trabalho, pesquisas, cursos e viagens ao exterior, Greta
adorava cozinhar, ouvir música, ler e curtir Ricardo Larroyed. “Por que não
casamos ainda?” – pensava. “Será que ela está aguardando que a peça em
casamento? Mas ela não é desse tipo, de ficar aguardando pelos outros. Ela,
quando quer alguma coisa, vai lá e pega. Quem sabe faz a hora, não espera
acontecer, como canta Geraldo Vandré! Mas ela é mulher, e mulheres não pedem
homens em casamento, pelo contrário, deixam-se caçar, pois essa é a natureza
delas. Contudo, se ela quisesse já teria pelo menos insinuado que quer se casar
comigo. E depois, será que eu não iria atrapalhá-la profissionalmente? E também
será que não ocorreria a síndrome de Mara? Não, no caso de Mara era diferente:
ela estava sempre disponível, e me queria disponível também; além do mais, Mara
é dessas mulheres que querem fornicar todos os dias, e eu passava até uma
semana para bater ponto; ela não aguentou. Poderia sair por aí, como a esposa
do Vorcaro, mas não, era fiel a mim. Depois não sou Vorcaro, sou cana!” –
pensava. Quando a porta do elevador se abriu lá estava “o anjo que povoa meus
sonhos”. Apreciava tudo em Greta, inclusive seu nome, que lhe evocava púbis
angelical, greta, fenda, grota, rio de mistérios, voo na luz, como no poema Viagem Dentro de Ti, de Emanoel Vorcaro.
Estou pronto para ti
Sereno como um homem deve ser diante de uma mulher nua
Pegar-te-ei com tanta suavidade, e firmeza,
Que lamentarás o prazer, intenso como o voo do orgasmo
Tocarei cada ponto dos teus meridianos
No fundo mais recôndito dos teus abismos insondáveis
Cavalgar-te-ei, preso em ti, na tua boca, nos teus seios, no teu sexo
Como a Terra gravitando em torno do Sol
A 108 mil quilômetros por hora
O sistema solar girando em volta do núcleo da Via Láctea
A 830 mil quilômetros por hora
A Via Láctea indo para o Grupo Local
A 144 mil quilômetros por hora
O Grupo Local voando para o aglomerado de Virgem
A 900 mil quilômetros por hora
E tudo isso seguindo em direção ao Grande Atrator
A 2,2 milhões de quilômetros por hora
O Grande Atrator fica para além de Centauro
A 137 milhões de anos-luz da Terra
A madrugada instalara-se. É interessante a madrugada. Seu som é um não
som, ou, simplesmente, silêncio, mas som, som que somente os iniciados ouvem. É
como o som das rosas, pulsar da música de Mozart, a regularidade da maresia,
injeção de espilantol; assim, o som da madrugada pode ser ouvido pelos nervos,
e é um som que também tem cheiro, às vezes, da mulher amada. O cheiro da mulher
amada é o das rosas nuas; só pode ser inalado pelo coração. O som da madrugada,
também, às vezes, é um gemido, uma sequência de gemidos, acme, um beijo,
profundo e prolongado, pois o caminho de um beijo assim é como um tobogã que
nunca termina, só termina no momento em que tudo se transforma em luz, um
deslizar, o colchão, lençóis perfumados, o contato acetinado, infinito, do
corpo de uma mulher. O corpo de uma mulher é sempre redentor, pois uma mulher é
sempre mãe. E, como disse seu dileto mestre e amigo Emanoel Vorcaro: haverá
obra de arte mais sublime do que uma mulher muito linda, nua? Oh! Não! Greta
era a própria eternidade do acme, um voo que nunca termina, como o latejar da
música de Mozart, uma vibração sutil, a mesma vibração da mulher de Vorcaro, simétrica.
As pessoas simétricas são assim. Os outros gravitam em torno das pessoas
simétricas, e, às vezes, voam para a luz, voo cego, como o dos cães ao
farejarem o cio, e se queimam na luz, a menos que oscilem na mesma intensidade,
que é quando se dá a sintonia. É o mesmo princípio do Tao, da acupuntura, do
Universo: harmonia. Haverá diferença entre harmonia e equilíbrio? Ou será o
equilíbrio a harmonia? O equilíbrio está sempre à beira do abismo; um passo em
falso e dá-se a queda. Na harmonia, nada pode ser imperfeito. O assassino é
desequilibrado; a harmonia é simétrica; o golpe no baço é perfeito; o púbis é
ruivo; a manhã de sábado recende a pupunha.
Ricardo Larroyed costumava levantar-se às 5 horas; não quando dormia no
apartamento de Greta. Acordou às 7 horas sentindo cheiro de café, um café
encorpado, um Antonello Monardo, e um cheiro indefinido, mas que conhecia.
Apurou o nariz; não conseguiu definir o cheiro. Saiu da cama, foi ao banheiro,
onde não se demorou, e entrou na cozinha. Na mesa havia um alguidar cheio de
pupunhas, vermelhas e grandes.
– Pupunha? Não acredito! – disse Ricardo Larroyed, com água na boca.
– Chegou ontem de Macapá, e quis te fazer uma surpresa. Não vai te empanzinar;
você tem o almoço de sábado com o Vorcaro!
– Até lá, já estarei novamente com fome.
Bebeu meio copo de água, beijou Greta e sentou-se à mesa. Sentia-se
satisfeito. Seria isso o casamento? Anos e anos duas pessoas se encontrando o
tempo todo dentro de quatro paredes, às vezes na companhia de uma prole. Seria
isso o casamento, uma sequência de manhãs e noites, de cafés da manhã e de
noites, televisão, filmes americanos, pupunha, cuscuz, tapioquinha? Era isso o que
queria, ver Greta no vaso, Greta encaixando absorvente, Greta retirando
absorvente com mênstruo, Greta doente, Greta amassando o tubo de pasta dental
no meio, criança chorando, cachorro latindo, gato empestando a casa toda com
pelo e mais pelo? Greta monitorando suas saídas, suas roupas, suas palavras;
Greta envelhecendo.
– Você está preocupado com alguma coisa – ela disse, servindo-lhe café.
Ele degustava uma enorme pupunha; soltou um suspiro.
– Comecei ontem a investigar o assassinato de três modelos; uma delas
parece que foi suicídio, mas não está descartado assassinato, e ontem mesmo surgiram
pistas que podem esclarecer mais rapidamente do que eu esperava o que parece
assassinatos em série, e isso me perturbou um pouco – explicou. Costumava
sondar Greta quando algo o perturbava.
– Fale mais sobre o caso – ela pediu, descascando uma pupunha.
– O caso é o seguinte: a primeira modelo foi assassinada, ou se
suicidou, em janeiro deste ano. Você deve ter ouvido falar neste caso: uma
modelo paraense que se jogou, ou foi jogada, do décimo primeiro andar do Grande
Hotel. O segundo caso ocorreu em fevereiro, quando num banheiro do primeiro
subsolo do Grande Hotel foi encontrada uma modelo com uma punhalada no baço e
uma no útero. O terceiro caso ocorreu agora em dezembro. Outra modelo foi
encontrada no apartamento onde morava, na Asa Sul, morta com uma punhalada no
útero; estava estupidificada de boa noite Cinderela quando foi atacada, e
morreu de hemorragia. As três eram da Modelo Cerrado, sediada no complexo
arquitetônico do Grande Hotel, e todas as três sofriam de mioma e se tratavam
com acupuntura; duas delas chegaram a ser atendidas, uma vez somente, no
Instituto Holístico, pelo professor Emanoel Vorcaro, que começou a atender
ontem, na Clínica de Terapias Holísticas, uma quarta manequim, a qual eu ainda
não sei se é da Modelo Cerrado. Falar nisso, preciso estar na clínica às 10
horas, pois o Vorcaro quer meu parecer no caso da modelo, que está com o útero
aumentado quatro vezes de tamanho, tomado de miomas. Não consigo ver o Vorcaro assassinando
alguém, embora o que eu veja, ou não, seja irrelevante. Mas estou ainda no
nível das cogitações; tudo o que tenho são cogitações, cogitações e mais
cogitações! Ainda bem que posso contar com elas. Mas terei um dia promissor:
além da modelo às 10 horas e do almoço com Vorcaro, terei uma conversa com um
suspeito às 16 horas e com o delegado que investigou os assassinatos às 19
horas, lá no Grande Hotel – disse Larroyed, descascando uma pupunha.
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