Sobrinhos Klingerly e Márcio, Linda (irmã), Marina (mãe), Olivar Cunha e Mel (irmã)
|
raycunha@gmail.com
BRASÍLIA,
31 DE MARÇO DE 2019 – Nasceu pesando 3,5
quilos e mamou até aos dois anos. Depois que começou a articular as primeiras
palavras, quando queria mamar, pedia “piti”. Pode ser por isso que se tornou o
xodó da mãe, a bela Marina Pereira Silva Cunha, que já tinha, então, uma prole
de quatro homens e duas mulheres; tivera três filhas, porém a mais velha morreu
em tenra idade. Olivar Cunha é, portanto, o oitavo de 11 filhos, e o primeiro a
nascer em Macapá, seguido por mais dois irmãos, entre os quais, eu, e uma irmã.
Morávamos na Rua Iracema Carvão Nunes, esquina
com a Rua Eliezer Levy, numa casa amarela, remanescente do antigo aeroporto, ao
lado do Colégio Amapaense. No dia do
nascimento do Olivar, 31 de março de 1952, nosso pai, João Raimundo Cunha,
plantou a Seringueira que intercepta o muro oeste do Colégio Amapaense, na Rua
Eliezer Levy, e que escapou de ser decepada graças à intervenção do engenheiro
florestal Luiz Guilherme Dias Façanha, nascido em 18 de julho de 1952, e amigo
de infância do Olivar.
Em 1983, Luiz Façanha trabalhava como
especialista em seringueira (Hevea brasiliensis) na extinta Superintendência da
Borracha (Sudhevea), um dos órgãos federais absorvidos pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A
Seringueira apresentava uma grande lesão no tronco. Debilitada, foi atacada por
fungos e insetos.
Segundo Luiz Façanha, estudantes fizeram
forte pressão junto à Prefeitura de Macapá e ao Governo do Estado para que
autorizassem abater a árvore, alegando risco de vida para quem por ali
transitava. Foi então que o repórter da Rede Globo, Antônio de Pádua, solicitou
a Luiz Façanha que fizesse uma gravação no local, para dar sua opinião sobre o
caso. Após minuciosa inspeção, Façanha verificou que a árvore estava se
recuperando do ferimento, embora muito lentamente, e em razão disso posicionou-se
contrário ao abate. “É claro que pesou na minha decisão todo o histórico da
nossa infância brincando em volta daquela árvore: Olivar, João, Chico, Ray
Cunha e eu.”
O fato é que a Rede Globo e Luiz
Façanha salvaram a Seringueira. Em 2004, a Editora Cejup, de Belém do Pará,
publicou meu romance A CASA AMARELA, ambientado em Macapá, a partir do ano de
1964. Nele, a Seringueira, já com inicial maiúscula, se tornou personagem do
romance, com atitudes humanas, como, ao se emocionar, sacudir as folhas sem
vento e verter leite sem golpe no tronco.
“Minha convivência com o Olivar foi,
basicamente, no nosso período de infância. Estudamos juntos no então Grupo
Escolar Anexo da Escola Normal e lá fizemos todo o Curso Primário, nos idos dos
anos 1950/1960. Após as aulas, dividíamos nosso tempo brincando pelos quintais
do seu João (pai do Olivar), correndo por cima dos muros e se pendurando nas
árvores do quintal. Tempo bom que não volta mais” – lembra Luiz Façanha.
Olivar Cunha foi uma dessas crianças
que as mulheres adoram apertar nos braços, beijar, acariciar. Não lembro
quantos anos ele tinha quando sua então professora, que morava sozinha e que se
manifesta, hoje, na minha memória, como uma mulata sensualíssima, se ofereceu
para dar reforço escolar a ele na sua casa e ele não quis de jeito algum,
porque, segundo pude intuir, mais tarde, de declarações suas, ela era
exageradamente carinhosa para com ele, e ele ainda muito criança.
O gênio do artista plástico começou a
se revelar no curso primário; seus trabalhos eram formalmente impecáveis, e já revelavam
criatividade. Encarava também os trabalhos de educação artística de sua irmã Lindomar
Cunha, então se preparando para trabalhar no jardim de infância. Pré-adolescente,
começou a brincar com seu pequeno prato de massas coloridas e pincéis de tamanhos
variados.
Sou dois anos mais jovem do que o
Olivar. Em determinado momento da nossa vida, isso faz muita diferença. Aos 14
anos, em 1966, ele já pintava profissionalmente, saía à noite e bebia, e eu era
um garoto de 12 anos. Aos 15, expôs pela primeira vez, e andava na companhia
dos artistas mais conhecidos da cidade: o poeta Isnard Brandão Lima Filho, o
escritor Alcy Araújo e o pintor Raimundo Peixe, além do nosso irmão Pedro
Cunha, então com 22 anos, e que era, naquele momento, uma espécie de guru para
o Olivar. Eu tinha 13 anos. Lembro-me que fiquei deslumbrado com a estreia do
Olivar.
Comecei também a sair à noite, a beber
e a frequentar a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho aos 14 anos. O Olivar
estava com 16. Durante algum tempo, ele não aceitava que eu mergulhasse na vida
noturna, e deixava claro que minha presença no mundo underground de Macapá,
onde ele circulava, não era bem-vinda. Então, eu procurava evitar os bares
frequentados por ele. Mas chegou um momento em que teve que me aceitar, pois me
impus, seja lendo bastante e me tornando interessante nas rodas de artistas,
seja porque bebia cada vez mais pesadamente, o que fazia de mim um adolescente
irreverente, iconoclasta, que impunha respeito pelas besteiras que pudesse
fazer caso fosse provocado.
Só que o Olivar estava muito além de
mim, como, aliás, sempre esteve. Tornou-se um rapaz muito bonito, apolíneo,
ariano, bom de porrada que só ele mesmo, hedonista, e que cada vez mais
dominava as cores e a luz. Eu, que já o admirava, comecei a idolatrá-lo. Permaneci
em Macapá durante meus primeiros 17 anos, quando, em dezembro de 1971,
publiquei o livro de poemas Xarda
Misturada, juntamente com José Edson dos Santos (Joy Edson) e José
Montoril. No ano seguinte, comecei um período de 10 anos na estrada, começando
pela viagem de Macapá ao Rio de Janeiro, em 1972, quando viajei de barco de
Macapá para Belém, onde peguei carona para Brasília e daqui fui de ônibus para
Rio.
De modo que o período mais intenso que
convivi com Olivar Cunha foi dos meus 14 aos 17 anos, juntamente com artistas
locais, como Joy Edson, Fernando Canto, Poeta Galego, Alcinéa Cavalcante, José
Montoril, além de Isnard Brandão Lima Filho, pai literário da minha geração. Não
sei agora, mas, naquela época, os artistas de Macapá incensavam uns aos outros,
nos prefácios dos seus livros, em artigos e nas rodas de papo. Mais tarde,
lendo biógrafos ingleses e americanos, observei como os biografados, por mais
geniais que sejam, são dissecados, e, seus defeitos, checados, e revelados sem
dó nem piedade, o que adotei neste curtíssimo ensaio biográfico sobre Olivar
Cunha: sem incenso, revelando o homem através da lente mais precisa possível, muito
embora, estou ciente disto, resgatar como as coisas eram seja tarefa impossível,
ainda mais em um trabalho tão curto quanto este, com epicentro em apenas três
anos e foco em uma personalidade tão extraordinária e que tanta emoção me
provoca.
Contudo, o homem que vai surgindo na
minha lembrança é o mesmo que me disse, certa vez, que “viver é um tesão”, um
homem capaz de tomar um litro de Run Bacardi sozinho ao longo de um bate-papo,
de sair para a porrada contra dois oponentes e se sair bem, de fumar três maços
de cigarros em uma noite, de beber durante 48 horas seguidas, de pintar
madrugada adentro. O Olivar Cunha que habita minha memória é beberrão, machão,
idealista, bom de porrada, belo, amado, adorado, incansável como Pablo Picasso
e esquizofrênico como Van Gogh.
Uma madrugada, um marchand francês
acordou todo mundo, em casa, porque teria que viajar para a França naquela
manhã e queria porque queria levar alguns quadros do Olivar, e levou o que
estava disponível. Acho que foi mais ou menos por essa época que ele pintou os
Beatles, 1969. Juntou na tela vários momentos diferentes do Beatles, recortando
fotos de várias revistas, reproduzindo-as naquele óleo. Mais ou menos em 1970,
vendeu o quadro dos Beatles para Luiz Façanha, que o mantém na casa dele, no
Recife, onde mora.
Nas décadas de 1970/1980, casado com
Maria da Glória Nascimento Cunha, o artista morou em Belém, quando produziu
algumas dezenas de telas que o colocam como um dos mais importantes artistas
plásticos contemporâneos: seus mendigos do Guamá, subúrbio da Cidade das
Mangueiras, são chocantes. Olivar e Glória namoraram durante 7 anos e foram
casados por 7 anos. Ela partiu cedo para o mundo espiritual. Em Belém, Olivar
ganhou um novo nome: Lili, batizado pela sua filha Tatiana, assim que ela
aprendeu a falar, e que lhe deu um neto: Bernardo Cunha Barros, hoje com 4
anos. Lili teve outra princesa com Glória: Taiana, que lhe deu um neto: Alexandre
Cunha de Sousa, hoje com 3 anos.
Viúvo, Lili foi para o Rio de Janeiro, estudar
artes plásticas no Parque Lage. De volta a Macapá, conhece a capixaba Célia
Maria Rocha Cunha, em 1986, casam-se no ano seguinte, e, em agosto de 1988,
mudam para o Espírito Santo, onde nascem os filhos Ângelo Ticiano Rocha Cunha e
Luciano Rocha Cunha.
Nos anos de 1990, consolida sua posição
como um dos grandes expressionistas contemporâneos, com a série de animais
agonizando nos esgotos das grandes cidades, como na impressionante acrílica
sobre tela Tuiuiú Crucificado, sobre a
baía de Guanabara – talvez o berro mais fovista, o grito mais expressionista de
Olivar Cunha. Ele pintou esse quadro em três meses, em 1992, em seu apartamento
na praia atlântica de Jacaraípe, distrito do município de Serra, na grande
Vitória do Espírito Santo.
Trata-se de uma acrílica sobre tela, em
espátula e pincel, de 120 por 100 centímetros. Pertence à fase que o pintor
chama de Habitat Transform, desenvolvida no Rio de Janeiro e em Jacaraípe, após
pesquisa sobre a devastação da flora e da fauna do Amapá, do Pará e do
Pantanal. Depois que se mudou para Jacaraípe, começou também a recuperar obras
sacras de igrejas da região.
Apesar de contar com o mar onde foi
fisgado o maior marlim azul do mundo, o Atlântico ao largo do Espírito Santo, é
a Amazônia que pulsa nas telas do gênio, recriada à base de espilantol, o
princípio ativo do jambu. O tacacá, que leva jambu, é gostoso servido naquele
momento de transição em que a tarde escoa como um rio de planície, que vai se
esvaindo, lentamente, ao mergulhar nas luzes do anoitecer. É o espilantol que
dá aquela sensação de dormência nas papilas gustativas, ativando as papilas da
alma. Então, sentimos gosto de Cerpinha, Run Bacardi, a vertigem do beijo, som
de merengue.
O gênio pinta a alma das suas
criaturas, sejam elas pessoas ou paisagens. Assim, as telas de Olivar Cunha
gritam como o coração das trevas, mas também pulsam no rio da tarde, prenhes do
perfume dos jasmineiros noturnos. O artista dá à luz a Amazônia eternamente
viva, a Hileia que só os cabocos entendem – os apreciadores de merengue, de
mapará assado na brasa servido com pirão de açaí, os que se emocionam com o
trotar da mulher amazônida no calor equatorial, o mergulho no rio que deságua
na tarde, os segredos que se encerram na Fortaleza de São José de Macapá, no
Trapiche Eliezer Levy, no Ver-O-Peso, na Estação das Docas, em Mosqueiro, em Salinas,
no Bailique, em Caiena.
Convivi com Lili, em outros momentos da
minha vida, em Belém e no Rio de Janeiro. A presença dele, sua simples
lembrança, me causa sempre alegria, uma espécie de sensação de coisa nova, de
descoberta, de novas possibilidades, de viagem, de aventura. Ele emana uma
força poderosa até no repouso, no silêncio, na simplicidade. Mas seu grande
poder se manifesta ao usar a paleta, o pincel e a espátula, ao conceder à luz o
triunfo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário