Só quero agora comparecer ao encontro marcado com a mulher amada |
Ernest
Hemingway e meu pai, João Raimundo Cunha, tinham 61 anos quando partiram para o
éter. Sei como as coisas são nessa idade. Nós três nos encontramos no Quartinho
da Casa Amarela, portal onde vivos e mortos confabulam numa festa sem fim. Hemingway
gosta do balcão do bar; papai prefere o quintal. E eu curto intensamente tudo o
que tenho.
Aos 21 anos,
perdi-me, durante décadas, em um emaranhado de labirintos, até descobrir que
estivera andando em círculos. Hoje, caminho melhor nesse mergulho, guiado pela
experiência da longa caminhada. Meus sentidos, inclusive o sexto, estão encharcados
de espilantol, meu corpo denso começa a desaparecer e me sinto flutuando no
éter.
Tantas
coisas me proporcionam prazer intenso: ver as pessoas que amo, ouvir o som da
Terra no espaço, a madrugada, riso de crianças, Mozart, gemidos da mulher amada,
ler, dormir, meditar, andar à toa, especialmente em grandes livrarias, tomar tacacá,
montar a luz, sentir cheiro de mulher nua. O tempo vai deixando de existir,
dilui-se, o passado são cinzas atiradas ao mar, e não há amanhã, só há o agora eternizando-se.
Erguer
universos com palavras tem sido isso que me sustenta, e que me faz enxergar a
nudez das rosas e o mistério que as mulheres exalam, nunca desvendado, porque
eterno. Sou dono de tesouros imensos, de valor inestimável, pois desenvolvi a
capacidade de sentir o voo da luz, o cheiro mar e o choro dos jasmineiros, nas
tórridas noites do mundo, em agosto, e em todos os meses. Tenho telas de Olivar
Cunha e sinto a presença das rosas que Isnard Brandão Lima Filho ofertou para a
madrugada. E sou capaz, como um mágico, de aliviar dores com agulhas.
Não desejo
mais descobrir ouro no morro do Salamangone, Serra Lombarda, município de
Calçoene, no estado do Amapá, nem escalar o Pico da Neblina, nem pilotar um
Boeing 777, nem praticar kendo, nem saltar de paraquedas, nem de mergulhar no
coração das trevas da Amazônia. Basta-me a companhia de Hemingway, ou de
Gabriel García Márquez, ou de Vargas Llosa, ou de Machado de Assis, ou de Rubem
Fonseca, para viajar pelo planeta. Se não posso mais beber Cerpinha
enevoada no quarto de um hotel, no sétimo andar, sei que na hora de ser
enforcado sou salvo e durmo com a princesa.
Tudo o que
quero agora é comparecer ao encontro marcado com a mulher amada, criar
universos, sentir a noite, como um navio iluminado, embriagar-me com o perfume
das virgens ruivas, ouvir o som da madrugada, sentir a presença do mar, do
trópico, do sol das oito no rosto, diluir-me no acme e reaparecer no azul.
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