terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Memórias: quase tudo

Haverá obra de arte mais emocionante do que mulher muito linda?

Sim, nua!

Cheirando a púbis!

E mais bela do que isso?

Grávida!

Amamentando!

Mais belo

Só crianças rindo!

Luz se eternizando!

 

O som do azul, do livro De Tão Azul Sangra


RAY CUNHA

BRASÍLIA, 22 DE DEZEMBRO DE 2020  Livro de memórias tem que ser excepcional. Há três que mexeram comigo. Um deles é Paris é uma festa, de Ernest Hemingway. É como se lêssemos um romance, porque Papa, como era conhecido, reinventou no livro tudo o que tinha vivido em Paris. Os grandes escritores são assim. Não veem Gabriel García Márquez, capaz de pegar um ladrão carniceiro como Fidel Castro e mostrá-lo como um sujeito culto e humanitário?

Paris é uma festa relata a estada de Hemingway na capital francesa nos anos 1920. Foi lançado em 1964, três anos depois da morte do escritor, a partir de manuscritos dele, editados por sua viúva, Mary Hemingway. Em inglês o título do livro é “uma festa móvel”, retirado de uma carta de Hemingway, que diz: “Se você tiver tido a sorte de ter vivido em Paris na sua juventude, então, aonde quer que você vá no resto da sua vida, isso ficará com você, porque Paris é uma festa móvel”.

Hemingway começou a trabalhar em Paris é uma festa em novembro de 1956, quando recuperou dois pequenos baús que deixara no porão do Hôtel Ritz Paris, em maio de 1928, contendo vários cadernos nos quais fizera anotações durante os anos 1920. Com base nesses cadernos, começou a preparar um livro de memórias, chegando a uma versão final, mas que não chegou a publicá-la, pois se matou em 1961. Foi aí que Mary, sua quarta esposa, editou o manuscrito.

Em 1982, o professor Gerry Brenner, da Universidade de Montana, questionou a edição de Mary, acusando-a de alterar a ordem capítulos por motivos cronológicos, o que teria prejudicado a estrutura dramática organizada por Hemingway. Acusou-a também de reinserir um capítulo que Hemingway excluíra e, o mais grave de tudo, acusou-a de excluir uma apologia que Hemingway escreveu para sua primeira esposa, Hadley Richardson.

Verdade ou não, em 2009, o neto de Hemingway e Pauline Pfeiffer, Seán Hemingway, lançou uma nova versão do livro com alterações: a carta introdutória de Hemingway, montada por Mary a partir de fragmentos, foi removida; um capítulo e trechos de outros capítulos foram adicionados; e alguns capítulos foram mudados de lugar. Mas Seán retirou trechos pouco lisonjeiros à sua avó, Pauline Pfeiffer, segunda mulher de Hemingway.

Seja lá como for Paris é uma festa é uma delícia. Já o li mais de uma vez e pretendo degustá-lo de novo, pois os clássicos são sempre recentes, e surpreendentes. Mas para ver como as coisas são: do mesmo autor, e também de memórias, Verdade ao amanhecer, relato do último safári de Hemingway na África, é uma chatice, tanto que tentei lê-lo em mais de uma oportunidade e o larguei sempre, até dá-lo para um projeto de doação de livros aqui de Brasília.

Mary, a quarta e última mulher de Hemingway, foi quem curtiu mais a companhia de Papa, então uma celebridade internacional e ganhando muito bem com a venda dos seus livros. Assim, era ela quem estava junto dele no seu último safári. Hemingway era prolixo quando escrevia, mas quando cortava, para obter o texto final, ia até o osso, de modo que seus livros póstumos, como Verdade ao amanhecer, de mais de 400 páginas, são obesos, ou contêm diálogos quilométricos.

Mas escrevendo este texto, agora, me deu vontade de enfrentar mais uma vez Verdade ao amanhecer. Acho que vou comprá-lo de novo. Tem um negócio em que Hemingway é um mestre, que é enxergar as coisas que somente olhos clínicos veem. Em Paris é uma festa ele descreve minúcias de algumas celebridades com quem conviveu, como, por exemplo, F. Scott Fitzgerald, assim como em Verdade ao amanhecer.

“Eu sou um autor de ficção; logo, também sou um mentiroso e invento a partir daquilo que sei e ouvi dizer. Sou um trapaceiro” – declarou Hemingway, sobre si mesmo. Isso nos aproxima muito.

Outro livro de memórias que eu já li várias vezes é Papa, uma biografia pessoal, de Gregory, filho caçula de Hemingway, com sua segunda mulher, Pauline Pfeiffer. Já médico, publicou Papa em 1976. Travesti, Gregory virou Gloria. Mas se casou quatro vezes e foi pai de oito crianças. Em 1995, se submeteu a uma operação para mudança de sexo. Em 2001, aos 69 anos, Glória morreu de hipertensão com agravante cardiovascular, numa penitenciária feminina de Miami, seis dias depois de ter sido preso nu; devia comparecer perante o juiz no dia em que morreu, acusado de atentado violento ao pudor e de resistir à prisão.

O romance póstumo As ilhas da Corrente, do Nobel criador de O velho e o mar, é, na verdade, um maravilhoso livro de memórias. Nele, Hemingway dá pistas sobre Gregory, e o livro de Gregory, Papa, é uma espécie de As Ilhas da Corrente, só que, nele, desnuda Hemingway, mostra o homem em pelo, ou vestido com o manto dos seus terrores.

O pai de Hemingway se matou e a mãe dele era perturbada. Vestia Hemingway de menina até seus dois, três anos. Talvez por isso Hemingway, que era um baita macho, de mais de 1,80 metro, pugilista amador, bom de tiro e pegador das beldades que o cercavam, fazia de tudo para mostrar que era macho, sem necessidade.

Em Papa, o filho caçula de Hemingway o despe do mito e revela o homem em toda a sua nudez, mesquinho, cafajeste, beberrão, mas lhe presta uma das mais emocionantes homenagens que um filho pode fazer a um pai, que ele amava e admirava pelas qualidades do homem que não tinha medo de nada, do artista revolucionário de O sol também se levanta, do escritor, que, como todo escritor, se autoimpõe disciplina militar e que, como os pugilistas, enfrenta sozinho, no ringue, sua solidão, pelejando, a cada dia, para não ir a nocaute.

Agora, além de Paris é uma festa e de Papa, um livro, que acabei de ler, com atraso de 14 anos, mexeu comigo. Trata-se de Quase tudo, de Danuza Leão, lançado em 2006. O livro desmitifica a vida de celebridades que frequentam capas de revista e a televisão, mostrando que enfrentam as mesmas questões existenciais dos pés-rapados, como depressão, drogas e suicídio. E mostra, em letras garrafais, que a maior ignorância de todas é não saber que nós, humanos, somos seres espirituais. Mas mostra, em prosa deliciosa, o tesão de viver.

Danuza, como sua irmã, Nara Leão, musa da Bossa Nova, e como Roberto Carlos e Rubem Braga, é capixaba, e, claro, carioca. Modelo, jornalista e escritora, foi casada com uma lenda do jornalismo: Samuel Wainer, fundador do extinto jornal Última Hora; com o compositor e cronista Antônio Maria; e com o jornalista Renato Machado. Modelo profissional em Paris, relações públicas em boates famosas do Rio de Janeiro, colunista dos jornais Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil, colaboradora de novelas da Rede Globo, é autora de um megassucesso: Na sala com Danuza, além de outros livros.

Em 2006, o jornalista Euler de França Belém escreveu um artigo para o Jornal Opção com o título: “Livro de memórias de Danuza Leão merece o título de Quase Santa e não de Quase Tudo”, sugere, no texto, o título “Quase Nada” e faz uma observação: “Como na maioria dos livros de memorialistas, Danuza tenta ajeitar sua história, colocando-se no centro dos acontecimentos e transformando Samuel Wainer numa espécie de herói, o homem perfeito, e, ao mesmo tempo, um coadjuvante de certo fôlego. É como se, ao limpar a história de Wainer, também limpasse a sua. A Ava Gardner (o mais belo animal do universo, segundo Jean Cocteau) da periferia pôs cornos em Wainer? Não. Não. O nosso Sinatra não teria sido traído, e sim abandonado, quando Danuza o trocou pelo jornalista, cronista e compositor Antônio Maria. Ajustando ou não as histórias, a colunista da Folha de S. Paulo escreve com leveza e graça”.

Não sei o que Euler sabe, mas concordamos em duas coisas: Danuza Leão era um desses mais belos animais do universo e Quase tudo tem leveza e graça.

Euler reclama, e com razão, que Danuza é muito econômica em fofoca, insinuando que ela sabe muito nesse quesito. É verdade que Danuza evita o sexo explícito, a fofoca, a maledicência gratuita, e até desconfio que Quase tudo é um livro de redenção, um ajuste de contas com o passado, daí que é perpassado por dramas e tragédias. O livro é interessante porque sua prosa é coloquial, deliciosa, porque o Rio, com todas as suas luzes, faz pano de fundo, e porque há no livro uma tensão dramática, talvez a mesma de Paris é uma festa, Papa e Verdade ao amanhecer.

E também ao tratar das celebridades como pessoas comuns na vida dela, as torna humanas, ao ponto de nos vermos, de repente, na sala com Danuza, e com toda a fauna cintilante que transita em Quase tudo.

É Euler que encerra este meu artigo: “Danuza passará. Mas deixará um rastro de perfume, rebeldia e beleza. Não é pouco”.

Um comentário: