RAY CUNHA
Ray Cunha, aos 18 anos de idade |
Em 1968, aos 14 anos, me meti no meio de um grupo de
artistas e desde então nunca mais saí da dimensão azul. Em 1971, publiquei, com
Joy Edson e José Montoril um livrinho de poemas, Xarda Misturada, e, com
ele, no ano seguinte, peguei o rio e a estrada e fui parar no Rio de Janeiro. Fui
de barco para Belém e de lá peguei a estrada e viajei de carona para Brasília,
de onde tomei um ônibus para o Rio de Janeiro, levando comigo alguns exemplares
de Xarda Misturada. Cheguei no meio
da tarde em um dia de semana e da rodoviária tomei um ônibus para o coração do
Rio de Janeiro, o cruzamento das avenidas Presidente Vargas e Rio Branco.
Levava comigo o endereço de trabalho de uma amiga do pintor e
poeta Manoel Bispo, de Macapá, e a confiança inabalável de um garoto ribeirinho
de que a amiga do Manoel Bispo me receberia de braços abertos. Localizei-a já à
saída do trabalho; ela me olhou e me disse que eu não poderia ficar na casa
dela, desejou-me boa sorte e sumiu na multidão.
A sorte é que eu levava também comigo o endereço de um amigo
que conheci no Colégio Amapaense, Sílvio, paulistano que fora para Macapá com o
pai, um americano que trabalhava na Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e
Manganês (Icomi), que, juntamente com a Bethlehem Steel, transportou do
município de Serra do Navio, para os Estados Unidos, a jazida do melhor
manganês do planeta, a preços vis, e deixou uma imensa cratera no Amapá.
Na época, o Sílvio morava com os tios na Alameda São
Boaventura 208, Fonseca, Niterói. Cheguei lá à noite. O Sílvio, sua tia e seus
primos me receberam muito bem. No dia seguinte, peguei um ônibus, a barca e
outro ônibus e fui a Copacabana; desci no Posto 6 e me dirigi para o mar, onde
mergulhei naquela mistura de sal, água, sol e azul. Acho que foi nessa química
que comecei a amar o Rio de Janeiro, a partir de Copacabana.
Em novembro daquele ano apresentei-me na Primeira Região
Militar do Exército. Eu meço 1,64 metro de altura, e creio que pesasse, naquela
época, 50 quilos (hoje, peso 64 quilos), e a mudança de clima e a poluição da
grande cidade causaram uma coceira no meu corpo todo, de modo que fui
dispensado do serviço militar, e vi meu propósito de morar no quartel
esfarinhar-se.
O tio do Sílvio era um oficial da Aeronáutica, negro, coisa rara
na Ditadura dos Generais (1964-1985). Acho que o episódio que aconteceu naquela
noite foi reflexo daqueles anos de chumbo. O tio do Sílvio chegou mais cedo. Eu
estava arranhando um violão na sala. O tio do Sílvio ordenou que fôssemos todos
dormir. Eu dormia em um sofá, na varanda. Continuei com o violão. Então o tio
do Sílvio veio do quarto dele e ordenou que eu pegasse minhas coisas e fosse
embora.
Juntei meus pertences – algumas roupas e exemplares de Xarda Misturada – e fui para a
rodoviária central de Niterói. Foi uma longa noite. Só senti mais frio na estação
aeroviária de Buenos Aires, em certa noite que lá passei, e da qual surgiu o
poema Noite Horrível, publicado no
livro Sob o Céu nas Nuvens (edição do
autor, Belém, 1982). Só quem passa uma noite dessas é que sente o quanto o sol
do alvorecer é vivificante. Nem bem o dia amanheceu, lavei o rosto, tomei café
com leite com pão com manteiga e me mandei para a representação do governo do
Território Federal do Amapá, no centro do Rio de Janeiro.
O representante, Couto, era conhecido por ajudar amapaenses.
Conversamos. Ele me perguntou se eu conhecia o Itabaraci, que é de uma geração
ligeiramente antes da minha, de Macapá (onde hoje vive); contudo, seu pai,
Aimore (em tupi, não leva acento agudo na última sílaba) Nunes Batista, era
padrinho da minha irmã caçula, Rosa Maria. Disse ao Couto que sim, conhecia o
Itabaraci, e ele me deu um conselho.
– Vai procurar o Itabaraci; ele mora num apartamento em
Copacabana, onde a senhoria, dona Maria Antônia, aluga vagas – disse-me ele, e
me deu o endereço: Rua República do Peru 210, Apartamento 204, entre as ruas
Tonelero e Barata Ribeiro, Copacabana. Vivi dois anos, lá.
Dona Maria Antônia, paraense, funcionária dos Correios, há
muito radicada no Rio, foi uma das mulheres mais bacanas que encontrei. Ela simplesmente
me acolheu, e só passei a pagar vaga depois que ela mesma conseguiu emprego
para mim, como faz-tudo em uma empresa de conserto e venda de peças de
eletrodomésticos, primeiramente numa loja em Ipanema e depois em Copacabana.
Quanto ao Itabaraci, e seu irmão, o violonista e pianista
Aimorezinho, que nessa época tocava na banda do Raul Seixas, trataram-me como a
um príncipe. Por isso sou eternamente grato a eles.
Logo depois, o compositor amapaense Luiz Tadeu Tavares
Magalhães, que estava morando no Rio e trabalhava na White Martins, conseguiu
para mim uma vaga como contínuo na filial de Jacaré, na Zona Norte. O Tadeu era
músico e radialista em Macapá, e me entrevistara várias vezes, na condição de
escritor.
Em 1971, antes de publicar Xarda Misturada, participei de um jornalzinho colegial anarquista, A Rosa – Bonitinha mas ordinária, de
modo que eu tinha ideia de como fazer um house organ, e foi o que eu fiz, o
jornalzinho da filial da White Martins.
Além disso, eu pagava mensalmente uma empresa que fornecia
entradas a pelo menos quatro peças teatrais por mês. O gerente da filial, dr.
Arlindo, também era cliente da mesma empresa e andamos nos encontrando nos
teatros. Ele morava em Ipanema e passou a me dar carona para Copacabana quando
saíamos juntos. O jornalzinho e o interesse comum por teatro entre o gerente da
filial e eu, além da companhia do Luiz Tadeu, tornavam o ambiente pesado de
multinacional um convívio bastante agradável.
Às sextas-feiras, principalmente na primeira do mês, eu saía
com o Luiz Tadeu. Às vezes, íamos para a casa do nosso colega de White Martins,
Frank Loiola Matos, em Padre Miguel. Mas bebíamos muito sempre. Também foi
nessa época que conheci o Luiz Loyola, Lula, irmão do Frank, no Curso de
Interpretação Teatral no antigo Teatro de Comedia do Estado da Guanabara
(Teco), na turma do professor e ator Jorge Paulo.
A prova final do curso foi a encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo Neto, com músicas de Chico Buarque de Holanda, no extinto Teatro de Arena
no Largo da Carioca. Fiz um dos coveiros. Nessa mesma época, começamos leituras
e laboratório da peça Miolo de Pão,
texto de Luiz Loyola e que expressava “a realidade conflitante, festiva e
utópica de uma família do subúrbio carioca” – como diz o próprio Loyola. Nós
nos reuníamos na casa do Jamil Viana, na Pavuna; na casa da belíssima Beth
Bello, na Ilha do Governador; e na Vila Valqueire.
No quarto do Loiola, BOE (Boite Onda Estudantil), na casa em
Padre Miguel, “aconteciam reuniões com muita música, teatro, poesia, happenings,
num clima underground e ambiente psicodélico, cheio de posters de vanguarda,
caricaturas, painel com capas de LP, objetos antigos, como um armário centenário
com um enorme espelho de cristal na frente da porta, que encantava os narcisistas,
uma luminária em formato de chapéu mexicano vermelho, iluminada por uma tênue
luz azul opaca, lembrando cabarés da Avenida Prado Júnior, no Leme; no chão,
havia um espelho retrovisor redondo, de aproximadamente um metro de diâmetro, do
serviço de trânsito do Rio, apelidado de “poço” pelo companheiro de trabalho
Paulo Cesar Americano do Brasil, da Remington Rand, onde trabalhei com Luiz
Tadeu no inicio da década de 70” – lembra Luiz Loyola.
“Num desses eventos, em uma noite festiva, tive o prazer de
receber o amigo Ray Cunha, sutilmente trajando calça jeans do Lixo (boutique
cult de Copa), camisa mangas compridas com gola rolé cor roxa e sapatos bicolor
vermelho e amarelo (presente do artista plástico amapaense Abenor Pena Amanajas, que então morava no Rio). A figura tinha cabelos ruivos black-power no melhor estilo
saltimbanco do ator do filme musical Gospell...
em sua companhia chegaram Luiz Tadeu e Iara Picanço, depois de uma viagem de
trem da Central do Brasil, direto do subúrbio do Lins de Vasconcelos” – recorda
Luiz Loyola.
“Numa única visita à casa de Ray Cunha, na Rua República do
Peru, em Copacabana, na década de 1970, o poeta me recebeu em seu quarto
(vaga), onde havia uma cama beliche e o seu estado de saúde era gripal e febril;
driblamos aquele quadro e resolvemos sair pra respirarmos uma brisa do mar caminhando
pelo calçadão, depois paramos numa lanchonete e tomamos um delicioso café e
suco de laranja com sanduíche, e, serpenteando pelas ruas sombrias do bairro, o
poeta fez uma citação irreverente dizendo que Copacabana era uma enorme cama...”
– Luiz Loyola mergulha mais naqueles anos dourados, referindo-se ao poema Essa Copacabana Triste Mulher, publicado
no livro De Tão Azul Sangra.
“Não posso deixar de relatar, uma noite, quando eu e o poeta
chegamos em minha casa, em Padre Miguel, fomos para a cozinha e nos deliciamos
com café com bolo, pães, cuscuz de fubá preparados por minha mãe, dona Maria
Amélia (in memorian); foi quando o poeta, degustando uma banana, começou a declamar
versos de Xarda Misturada, dando um
toque tropicalista romântico àquela noite de inverno tímido” – registra Luiz Loyola.
Nessa mesma época, Manoel Bispo foi fazer um curso de
pintura no Parque Lage, e foi vizinho do Luiz Tadeu, no Lins. Havia fins de semana
que o Bispo e eu saíamos para bater perna. Parávamos para ver os pintores que
expõem nas ruas da Zona Sul, entrávamos nas galerias, íamos a cinema e
conversávamos sobre tudo. Eu ia muito a teatro, cinema de arte, circos, como o
Moscou, e a grandes shows, como o Santana. Ia muito, também, aos programas de
auditório da extinta TV Tupi. Varava o Rio noite adentro. Em 1974, já como
balconista da filial da White Martins de Jacaré, pedi demissão e voltei para a
estrada.
Em 1982, em Belém, com o matrimônio fracassado, parti
novamente para o Rio de Janeiro. Mas era como se eu estivesse sonhando.
Lembro-me que fui com o Luiz Tadeu para Pedra de Guaratiba, onde o Luiz Loyola
festejou seu aniversário, com muita batida do Primo, de Olinda, mais ao norte
de Padre Miguel, vinho, cerveja, happenings e a bela voz do Luiz Tadeu. Dessa
vez, minha estada no Rio durou pouco tempo. Retornei para Belém e concluí o
curso de jornalismo.
Nos anos 1990, eu estava novamente no Rio quando o pintor Olivar
Cunha expôs em um espaço em Botafogo, defronte ao Shopping Rio Sul. Ao coquetel
de abertura estavam presentes Luiz Tadeu e sua filha e minha querida amiga
Luciana Magalhães, carioca, e Luiz Loyola.
Em 1992, fui ao Rio para lançar o livro de contos A Grande Farra (edição do autor,
Brasília, 1992). Foi uma estada etílica. Em 2000, participei da Bienal do
Livro, com Trópico Úmido – Três Contos
Amazônicos. Naquele ano, em uma manhã de domingo, eu acabara de sair da
praia de Ipanema, com Luciana Magalhães, quando houve o primeiro arrastão
televisionado – cenas aterrorizantes. Eu continuava mergulhado em um sonho
etílico.
Em 2010, passei uma semana com a minha gata, a psicóloga Josiane
Souza Moreira Cunha, no Rio. Ela fora participar do décimo primeiro Congresso
Brasileiro de Psicooncologia e do quarto Encontro Internacional de Cuidados
Paliativos em Oncologia, de 22 a 25 de setembro, no Centro de Convenções do
Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), em Botafogo.
Hospedamo-nos no Hotel Inglês, ao lado do Museu da
República, onde Getúlio Vargas se matou, no Flamengo. Jantávamos em um
restaurante defronte ao Museu, quase sempre camarão. Todas as comidas, ali,
eram deliciosas. Aquela parte do Flamengo, até Botafogo, passando pelo Largo do
Machado, é a Europa no trópico, como de resto toda a Zona Sul.
Enquanto a Josiane estava no Colégio Brasileiro de
Cirurgiões eu incursionava pela Zona Sul, em um resgate memorialístico
redentor. Durante aquela semana eu esquadrinhei a Zona Sul, agora com o olhar
maduro do homem de 56 anos de idade e que não mergulhava mais em bebedeiras
mortais.
Perambulei por muitas ruas da Zona Sul, observei a arquitetura, a Lagoa Rodrigo de Freitas à noite, bati perna em Copacabana, Ipanema, Leblon, Barra da Tijuca, Flamengo, Botafogo, centro do Rio, e retornei ao Pão de Açúcar, com minha amada. Lá de cima sabemos de pronto por que o Rio é a Cidade Maravilhosa.
Aonde quer que eu vá estarei sempre em algumas cidades, porque elas, como o Rio de Janeiro, florescem no meu coração. Hoje, escrevo para o DIÁRIO CARIOCA. É como um namoro com a cidade, e que não acaba nunca.
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