RAY CUNHA
BRASÍLIA, 14 DE JUNHO DE 2021 – William Faulkner disse à dupla de entrevistadores da The Paris Review que o melhor emprego que já teve foi o de gerente de prostíbulo. Dava-lhe liberdade econômica, deixando-o livre do medo da fome e de não ter onde dormir. Um bordel é quieto de manhã, o turno de trabalho preferido dos escritores, e, à noite, se gostar de vida social, ele a terá. Dessa forma, um rendez-vous pode proporcionar segurança financeira, a solidão necessária para o ato de criar e diversão.
Um escritor de primeira categoria não precisa de nada disso, é claro. Escreverá na prisão, na sarjeta ou no Copacabana Palace. Como é de primeira classe, o ambiente não piorará, nem melhorará seu texto. Mas, de certa forma, dirigir um puteiro representa o lugar ideal para o escritor, pois se a segurança financeira não influi no resultado da criação do artista proporciona tranquilidade ao homem. E há a questão do silêncio pela manhã.
Inúmeros escritores foram artistas da fome na juventude, como o famélico personagem de Knut Hamsun. Viciados, fazem quase qualquer coisa para alimentar o vício, pois todo escritor classe A sabe que se não parir as personagens que o atormentam morrerá prematuramente; muitas vezes, louco. Então escrevem.
Escritores de primeira categoria só sabem escrever. Se nascem ricos, tanto melhor, do contrário penam durante muito tempo realizando todo tipo de trabalho para não morrer de fome. Gabriel García Márquez, o gigante de Cem Anos de Solidão, chegou a pedir esmola em Paris, onde outro monstro, Ernest Hemingway, chegou a matar pombos, escondido, é claro, para se alimentar, embora depois de O Sol Também se Levanta Papa não tenha precisado mais atacar pombos.
Para muitos escritores de primeira categoria a briga inicial é manter o estômago aquecido. Outro tipo de tormento são as dívidas, pequenas, mas impagáveis, e, às vezes, grandes, que artistas da fome são obrigados a contrair. A angustiante falta crônica de dinheiro, a eterna corrida atrás de grana, os constantes pedidos de pequenos empréstimos aos amigos, as roupas puídas, os sapatos furados, são outras humilhações pelas quais passam os atormentados artistas da fome.
Certa vez, convidado a um encontro em um café com o diretor de uma revista na qual deveria assumir como editor, Gabriel García Márquez chegou antes do diretor e saiu depois dele, para que seu salvador não visse que o solado de um dos sapatos de Gabo estava solto, devido à absoluta falta de dinheiro para mandar consertá-lo.
Paul Auster foi outro que passou também pela falta de dinheiro. Auster é de Nova York. Tornou-se popular com Leviatã (1992). Incursionou pelo cinema. Foi o roteirista de Cortina de fumaça, Sem fôlego e O mistério de Lulu, que também dirigiu. A Companhia das Letras publicou, em 1997, Da mão para a boca – Crônica de um fracasso inicial (Companhia das Letras, 396 páginas, 1997).
Da mão para a boca reúne 103 páginas de memórias; 49 páginas com três peças teatrais; 9 páginas sobre um jogo de cartas que Auster inventou para ver se ganhava algum dinheiro, mas não ganhou nenhum; e o romance policial A estratégia do sacrifício, com 205 páginas – algo na linha de Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Auster o escreveu na tentativa de ganhar algum. Ganhou. A princípio, pouco. Mas o suficiente para sentir o batismo de fogo, como diria o poeta amapaense Isnard Brandão Lima Filho.
Auster não é Faulkner, nem García Márquez. Num momento
Acontece que, para o artista da fome, ter um livro aceito por uma editora representa o mesmo que, para o alcoólatra, uma linha de crédito em um bar – sem fiador, nem cheque pré-datado, nem limite. Um acontecimento único, embora improvável, na vida de um pé inchado.
Da mão para a boca narra as peripécias do artista quando jovem. Auster nasceu em uma família de classe média, mas não deu pistas de que queria ser escritor, para não assustar ninguém. Apenas alimentava as baterias da criação e ia comendo o que lhe era servido à mesa, sem reclamar. Fez todo tipo de tarefa para aguentar-se, enquanto imergia no seu bordel particular, para trabalhar na Estratégia do sacrifício. Assim, Da mão para a boca é o dia a dia de um candidato a escritor.
Os iluminados não estão preocupados em obter carteirinha de escritor, nem com subvenções oficiais, nem em puxar saco de ninguém. Sabem que nada disso é capaz de aumentar seu talento. Sobrevivem aceitando quase qualquer serviço que lhes apareça. Não pedem muito, nem exigem coisa alguma que represente luxo. Só querem ter seu prostíbulo particular, pois sabem que sem poder escrever serão alcoólatras a seco. Sem nem mesmo cachaça de Abaetetuba, uma das mais ordinárias do mundo, pois contém muita soda cáustica e água.
Neste Da mão para a boca, Auster mostra com precisão o drama de quem nasce com o dom de criar, pois para criar é preciso tempo, tempo que poderá ser precioso para a sobrevivência. A menos que se escreva logo de início algo como O sol também se levanta. Aí, dá até para viver em Paris.
Tudo é válido para o candidato a escritor, no seu esforço
de criar; inclusive se expatriar no jornalismo. No caso de um escritor
amazônida que sobrevive de jornalismo em Brasília e escreve sobre políticos, ele
sabe que o encontro com a solidão, aquela solidão que só os estrangeiros
sentem, desnorteante e seca como um soco na boca do estômago, é certa, mas sabe
também que não há outro modo de chegar a gerente do puteiro.
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