Ray Cunha por ele mesmo, da janela do seu quarto no Sudoeste (2021) |
RAY CUNHA
Aos 21 anos, eu não era nenhum Brad Pitt em Lendas da
Paixão, aos 30 anos, mas tinha meu charme. Já publicara um livro de poemas,
Xarda Misturada, juntamente com Joy
Edson (José Edson dos Santos) e José Montoril, em Macapá, minha cidade natal;
assinava uma coluna semanal, No Mundo da
Arte, no jornal A Notícia, e frequentava o Clube da Madrugada,
em Manaus.
Media 1,64 metro e pesava em torno de 60 quilos. Como rachei
lenha quando criança, eu era seco e musculoso. Mais tarde, joguei boxe, o que
desenvolveu ainda mais o tônus; testa larga, olhar atento e entusiasmo pela
vida são traços que se acentuaram ao passar dos anos.
Naquela época, confesso que até mulher casada se ajoelhou
aos meus pés; mulheres lindas entregaram-se, inteiras, a mim, deixando-me voar
nos seus labirintos de mistérios. Eu podia ingerir comida estragada, beber
sozinho uma garrafa de Pitú ao longo de um bate-papo, caçava, pescava,
mergulhava noites inteiras nos insondáveis abismos das ninfas, e nada disso me
abalava. Era o império do corpo. Hoje, já começo a vislumbrar a chave com a
qual abrirei, finalmente, a porta mágica da luz.
Leio desde os cinco anos de idade, quando os gibis e a
biblioteca do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, me seduziram para sempre. Aos
14 anos, já lera Ernest Hemingway, Francis Scott Fitzgerald, Graciliano Ramos, Fiódor
Dostoiévski, Jorge Luís Borges, livros de história e de geografia,
enciclopédias, dicionários, bulas de remédio e tudo o que me caísse às mãos. E
frequentava a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho.
Lia da mesma forma que comia, bebia e amava, como um leão,
que tudo podia rasgar com as garras. Maduro, ao reler alguns livros da minha
juventude, fiquei atônito. Descobri, neles, cheiros insuspeitos, ruas ainda não
percorridas, personagens que, agora, puseram-se a contar coisas para mim.
Quanto fui iniciado nos segredos das criaturas mais
deliciosas e enigmáticas do Universo, as mulheres, eu as tinha como quem mastigasse
feijão com arroz. Hoje, depois que comecei a descer o morro da vida, navego a
mulher amada com a sensação de um cataclismo de rosas colombianas vermelhas.
Atingi a sofisticação de capturar a dança delirante de mulheres caminhando em vestido justo, de seda, e fazer uma mulher sorrir, produzindo, nela, o mesmo efeito do sol da primavera, sua feminilidade explodindo em estrelas e ela se sentindo, e se tornando, a mulher mais bonita do mundo.
Descobri que tempo e espaço são uma ilusão, que só há o
agora e o agora, o momento mesmo da vida, que eu existo desde antes do
princípio e existirei até depois do fim. A vida é uma eterna caminhada rumo ao
Éter, à Luz, a Deus. Nesse trilhar, já quase não sou mais arrogante, procuro
ser gentil e atencioso com todos, e cuido para que a mulher amada se sinta como
a mais bela flor de um jardim esplendoroso.
Já não faço questão de receber presentes, mas de distribuir as
pedras preciosas que garimpei nos momentos mais perigosos da trilha, como os
rubis azuis que depositei no relicário do meu coração. Não ambiciono nada além
de uma rosa bem vermelha e o riso de uma criança.
Também peço que o Universo me perdoe pelas ofensas que
cometi, porque sei, na minha esperança, que basta um raio de luz para extinguir
a treva. E não há nada que eu queira mais do que ouvir o riso da mulher amada.
Sinto a velhice como um mergulho infindável no abismo da
poesia, uma caminhada permanente na primavera que se espraia no telhado da casa
da minha infância, as zínias, as rosas, o jasmineiro embriagando o ar nas
noites tórridas, a mangueira, o cajueiro, a seringueira, as paredes de tijolos
deitados da Casa Amarela, sólida como um navio.
Ouço os sabiás com redobrada atenção. Amam intensamente, de
agosto até o início do ano seguinte. São os imperadores do verão, quando os
galhos das mangueiras se curvam ao peso de mangas inchadas e doces como seios
de mulher grávida.
Levanto antes que os sabiás comecem o seu canto, às 3 horas,
faço a ablução e preparo café, Três Corações, gourmet, que bebo com tapioquinha
amanteigada, cuscuz ou pão integral com passas. Curto a alvorada certo de que Brasília
está sempre à minha disposição, oferecendo-me mil possibilidades.
Às vezes, sou favorecido com a sorte de atravessar o Setor
Comercial Sul no momento mais redentor, em torno das 7 horas, ao meio de
mulheres perfumadas, algumas com os cabelos ainda molhados, e há sempre uma com
o perfume das virgens ruivas, cheiro de mar.
Então, Aquele “que se revela na harmonia de tudo o que
existe” (filósofo holandês Baruch Spinoza) inunda a alma. E quando ouço o Concerto para Piano e Orquestra, em Ré Menor
(número 20, K 466), de Wolfgang Amadeus Mozart, sinto a Terra roçar o
espaço, da mesma forma quando me desfaço ao acme e me transformo em leão de
asas.
Hoje, não sinto mais a gana de quando tinha 21 anos. Naquela
época, eu amava como leão e bebia como Hemingway, e me internava na noite, esta
grande amante, armado apenas da beleza suprema da juventude. Agora, desarmado, arranco
gemidos ainda mais altos da mulher amada, porque nas minhas mãos há luz.
Também não mais dilacero a carne, embora minhas mãos tenham
se transformado em tenazes de nióbio, que, porém, roçam a pele da mulher amada
com a leveza de uma pétala. Não sinto mais o fluir da vida no tempo, mas como o
grande rio, que escorre, ininterruptamente, para o Atlântico.
Ouço murmúrios na tarde, ao encontro da noite, imensa como
um navio todo iluminado. Uma negra em vestido de seda passa por mim e deixa um
rastro de Chanel 5, o perfume embriagador das lágrimas dos jasmineiros imersos
na canícula, sabor de Don Pérignon, safra de 1954, leite da mulher amada, e o
cheiro redentor do mar. Algumas mulheres são o próprio mar, e, por isso, são
inacessíveis.
Guardo, na memória do meu coração, um combustível eterno.
Cada uma das mulheres que amei, e que, às vezes, fiz chorar (perdão!), cada
jasmineiro que perfumou as ruas noturnas por onde vaguei, com seu choro ao
calor das madrugadas, cada verso que escrevi, cada cidade que descobri, todos
os voos que alcei, disso é minha têmpera.
Hoje, levo uma vida estranhamente social, pois reúno-me
também com meus antepassados, especialmente meu pai, João Raimundo Cunha, belo,
majestoso, destemido, amado, e minha mãe, Marina Pereira Silva Cunha, a mais
bonita, forte, corajosa e querida entre as mulheres. Às vezes, simplesmente os
ouço, na prece.
Meus cabelos começaram a ficar grisalhos, cada vez mais ralos; a pele, aos poucos, exibe o resultado das intempéries, e as pessoas já me olham desconfiadas. Não bebo mais, depois de 43 anos mergulhado no álcool, como uma poça que se avolumou e começa a secar.
Ouço, agora, o silêncio da madrugada, emociono-me ao ver crianças, rosas, uma estrela. Não sinto apego a mais nada. Minha riqueza é imensa, pois à minha passagem os jardins florescem, as crianças riem e a luz triunfa.
É velho, esse é o teu lado que vale a pena oferecer aos amigos, numa taça transbordante de fogo e luz!
ResponderExcluirIrmão querido! Tu bem sabes que nós, escritores de certos livros, conversamos com os espíritos!
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