RAY CUNHA
Todo leitor inveterado elege um time de escritores dos quais gostaria de ser amigo, ou de ter sido, de conviver com eles, de fazer parte de suas vidas. Tenho plena consciência de que as amizades impossíveis não meras fantasias, a que me dou ao luxo, pois me encontro firmemente alicerçado no meu mundo mental, nas minhas experiências, que me dão o rumo para onde seguir. Às vezes, temos a sorte de conhecer pelo menos alguém assim, como é meu caso com o contista e ensaísta Fernando Canto, que vive em Macapá/AP.
E há os escritores favoritos dos quais não há a menor possibilidade de nos aproximarmos deles, até porque já morreram, como é o caso de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Ernest Hemingway e Gabriel García Márquez. Com Hemingway, provavelmente eu teria morrido de tanto beber, ou de cansaço durante uma pescaria longa ao marlim azul. Mas, até lá, teria batido muito papo com ele na Finca Vigia, em Havana, Cuba, ou em Paris, ou na África. Papo de dias, conversando sobre tudo, literatura, escritores, bebida, boxe, peixes e, certamente, mulheres.
Com Gabriel García Márquez, ele teria desvendado, para mim, o Caribe, teria comentado sobre suas bruxarias literárias, e teria me contado também algum segredo sobre as mulheres que me iluminasse, e teríamos ouvido o silêncio das madrugadas e do Caribe, como fazemos Fernando Canto e eu.
Outro com quem eu gostaria de ter convivido é com Rubem Fonseca, que criou o conto e o romance brasileiros das megalópoles. Eu ainda não o lera quando criei também o conto e o romance que se movem nas metrópoles da Amazônia: Belém/PA e Manaus/AM, e Macapá/AP também. Quem sabe, se nos conhecêssemos, não teríamos batido muito papo e batido perna no Rio de Janeiro, cidade que Rubem, mineiro, elegeu como sua.
Vivi em Copacabana, Rio de Janeiro e de todos os meses, há muito tempo, mas o suficiente para um renascimento. Nasci em Macapá/AP; minhas raízes cabocas são a fibra do que sou feito. Mas o DNA de todos nós é como um laboratório alquímico que nos vai modificando, ampliando nossa mente, ao longo das sucessivas encarnações, de modo que Copacabana, o Rio, mudou o curso da minha vida. Em vez de só pensar em Macapá/AP, entrou mais uma cidade na minha perspectiva. E foi com esse espírito que conheci Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Desde que o li pela primeira vez, em 2002, em Uma Janela em Copacabana, que me apaixonei por ele. E de tanto o ler é que comecei a imaginar uma amizade entre nós dois, ele repartindo comigo um pouquinho da sua imensa sabedoria, do seu intelecto descomunal, da sua rica experiência de vida, me falando sobre o Rio, sobre literatura, sobre a alma, sobre mulheres.
O carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza desencarnou um dia desses, aos 84 anos. Psicanalista, ensaísta e professor universitário, aos 60 anos largou tudo o que vinha fazendo para se dedicar à ficção, estreando com O Silêncio da Chuva, laureado com o Jabuti e o Nestlè, em 1997. Desde então, escreveu mais 11 romances policiais, todos ambientados no Rio de Janeiro, em Copacabana e no Peixoto, um reduto de Copacabana, onde mora o delegado Espinosa, personagem recorrente de seus livros, e que trabalha na 12ª DP, na Rua Hilário de Gouveia.
Nos 12 romances que escreveu ao longo de 24 anos, Roza se revelou um mestre do gênero policial, traduzido para vários idiomas. Suas personagens são tão de carne e osso que lhes sentimos o cheiro, e suas tramas são tão intricadas como as da vida real. E o Rio é descortinado sob a ótica de um policial singular, o delegado Espinoza, de caráter irrepreensível, leitor inveterado, viajor de fantasias, mas que, ao investigar um caso, vai até o fim, por uma razão: é imperioso que o caso seja deslindado, o que significa dizer desnudar a alma das personagens envolvidas nele, pois para tudo há uma razão, e é atrás dessa razão que Espinoza anda.
Assim, o que o move é o mistério. “Quem gosta de whodunit é cão farejador. O crime, qualquer um pode desvendar. O enigma, não. O que importa é o que está por trás do crime, suas motivações, o silêncio” – disse Roza, lembrando Crime e Castigo, de Dostoiévski. “Não é um desvendamento de um assassinato. O Dostoiévski mostra o crime logo no início, assim como fiz em O Silêncio da Chuva. E ninguém deixou de ler por causa disso.”
A Copacabana de Espinosa é noir, um enxame de personagens excessivamente humanos. Já dizia Rubem Fonseca: “O Rio não é aquilo que se vê do Pão de Açúcar”. As tramas de Roza geralmente se passam entre o Bairro Peixoto, a Rua Hilário de Gouveia e a praia. Nessa região, ele frequenta La Trattoria, sebos, a Galeria Menescal, onde compra quibes no Baalbek, e gosta de caminhar, simplesmente caminhar, assim como eu. O simples ato de caminhar é repleto de nuanças, de visões, de perspectivas.
É nesse cenário que as tramas de Roza vão dando vida ao tecido. “Quase sempre parto de um fato bobo e sem expressão. Certa vez vi um menino saindo debaixo de uma caixa de papelão. Esse foi o ponto de partida para Achados e Perdidos, por exemplo. Eu não costumo fazer um plot. A trama surge enquanto escrevo, no meio do livro” – disse Roza.
Perguntado se ele mataria Espinosa, como Conan Doyle fez com
Sherlock Holmes, Roza respondeu: “Não tenho plano de matá-lo, mas não está fora
de cogitação. No dia em que ele começar a ser repetitivo, terei que tomar uma
decisão”. Espinosa sobreviveu a Roza.
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