sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Independência ou morte de Bolsonaro. Márcio Souza acriano. O escritor mais representativo do Amapá: Manoel Bispo ou Fernando Canto?

Fernando Canto, Ray Cunha e Manoel Bispo (2022)

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 23 DE SETEMBRO DE 2022 – A jornalista Basília Rodrigues, da CNN, afirmou, no ar, ao criticar os milhões de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro que foram às ruas no 7 de Setembro, que na Bandeira do Brasil está escrito “independência ou morte”, e não “Ordem e Progresso”. Anteriormente, ela já havia afirmado que o Chile e o Equador não são países da América do Sul. Essas coisas acontecem. O blog de Pâmela Carbonari, hospedado no site da revista mensal Superinteressante, afirmou que o famoso escritor amazonense Márcio Souza é acriano. E ainda que o escritor que melhor representa o Amapá é Manoel Bispo. Bom, aqui a coisa é subjetiva. Acho que o escritor que melhor representa o Amapá é Fernando Canto. 

Pâmela Carbonari publicou um guia com os escritores que melhor representam cada um dos estados brasileiros. Para ela, Márcio Souza, o autor de Mad Maria, é o que melhor representa o Acre. Márcio adora sua cidade natal, Manaus, a capital do Amazonas. Só passou temporadas longas fora de lá em São Paulo, no Rio de Janeiro e nos Estados Unidos, mas assim que pôde retornou para a terrinha. De certa forma, Pâmela tem razão. Márcio pode representar qualquer Estado da Amazônia. 

Quanto ao Amapá, o pintor e poeta Manoel Bispo é velho amigo meu. De vez em quando pego sua Obra Reunida, um calhamaço de 450 páginas, editado pela Prefeitura de Macapá, em 2019, e leio alguma coisa. Para ler dezenas de poemas, um depois do outro, é preciso ser fanático por poesia, o que não é meu caso. Além disso a poesia do Bispo não é épica, é intimista. Assim, revela mais da alma humana do que do espírito Tucuju, os índios que habitavam Macapá antes da chegada dos portugueses, que os varreram do mapa. 

Poderia ser o poeta e cronista Isnard Brandão Lima Filho, ou Alcy Araújo. Mas acredito que Fernando Canto se encaixe melhor no mapa de Pâmela Carbonari. Ele nasceu em Óbidos, Pará, mas todos nós, amapaenses, somos paraenses, porque o Amapá é um naco do Pará. E todos comemos a mesma comida. Mas Fernando Canto foi para Macapá ainda criança e se tornou macapaense da gema. Poeta, contista e ensaísta, é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará, mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Amapá e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. 

Seu ensaio Fortaleza de São José de Macapá: Vertentes Discursivas e as Cartas dos Construtores, editado pelo Senado Federal, é uma das mais profundas incursões em busca da identidade Tucuju. Macapá é facilmente identificada no mapa-múndi porque se debruça na margem esquerda do maior rio do planeta, o Amazonas, no ponto em que é seccionada pela Linha Imaginária do Equador. Mas seu maior ícone, como o Cristo Redentor para os cariocas, é a Fortaleza de São José de Macapá. 

Fernando Canto entende que “a Fortaleza desenvolve nos amapaenses uma espécie de sentido de pertencimento, bem expresso na produção literária contemporânea local, nas artes plásticas e visuais e nos discursos políticos”. Com efeito, os artistas plásticos amapaenses vivem recriando a Fortaleza nas suas telas, que é cenário no meu romance A Casa Amarela. Para mim, a maior contribuição da Fortaleza para a identidade amapaense foi sua construção. 

As pedras da Fortaleza foram arrancadas da Cachoeira das Pedrinhas, no rio Pedreira, distante 32 quilômetros de Macapá; descidas para o rio numa rampa em torno de 10 metros de declive, eram transportadas em embarcações pelo Amazonas até Macapá. Cada jagunço tomava conta de quatro escravos, que, fracos pelo trabalho impossível, eram rasgados a chicotadas. Muitos morreram supliciados, famintos, sem energia, e alguns conseguiram fugir para o quilombo do Ambé. Em 19 de março de 1782, dia do padroeiro de Macapá, São José, a Fortaleza foi inaugurada, 18 anos depois do início da sua construção. 

Construída para resistir a uma força semelhante à da marinha inglesa do século XIX, nunca foi atacada, exceto por um dos flagelos da Amazônia, a malária. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), foi classificada como fortificação de terceira classe, e abandonada na primeira metade do século XX. 

Assim, a Fortaleza, maior ícone dos macapaenses, é a tradução perfeita de Macapá. Construída por escravos, negros e índios, sob o obsessivo domínio português, foi o cadinho no qual se forjou a etnia macapaense. Os portugueses cruzaram com os africanos e geraram mulatos, e fornicaram com os índios, formando uma população de mamelucos; os africanos fundaram o distrito de Curiaú e o bairro do Laguinho, misturaram-se com os índios e legaram cafuzos; e mulatos, cafuzos e mamelucos misturaram-se, fechando o círculo, numa diversidade étnica viva nas ruas de Macapá, nas nuanças de peles que vão do alabastro ao ébano, passando pelo bronze e jambo maduro, unidos pelo sotaque caboco: a fusão do português falado em Lisboa, doces palavras tupis, línguas africanas, patoá das Guianas, tudo triturado em corruptela.

Além disso, a ficção de Fernando Canto contém aquele tempero que Gabriel García Márquez tão bem preparava no seu cadinho de alquimista: o realismo mágico. Nos seus poemas, crônicas e contos há sons de merengue e de mambo, comida paraense, a presença da floresta, como uma sombra, e muitas, muitas mulheres capazes de levantar defunto.

Bastião da Fortaleza de São José de Macapá e tambores de
marabaxo na espátula do pintor amapaense Olivar Cunha

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