Mercado do Vero-O-Peso, em Belém do Pará: porta de entrada da Amazônia (óleo sobre tela de Olivar Cunha) |
Em 2016, a cantora lançou o álbum Joelma, com uma composição que estourou: Voando pro Pará, composta por Chrystian Lima, Isac Maraial, Nilk Oliveira e Valter Serraria. A letra cita um dos maiores ícones da Amazônia: o mercado e feira do Ver-O-Peso, além da Estação das Docas e o Mangal das Garças. E tacacá, pupunha e açaí.
Tacacá, pupunha e açaí estão presentes no meu romance JAMBU (Clube de Autores e amazon.com.br, 190 páginas), lançado este ano em Macapá/AP e, no próximo, será lançado no Rio de Janeiro. O tacacá é a iguaria mais representativa da Amazônia. Segundo o antropólogo Luís da Câmara Cascudo, deriva de um mingau indígena, mani poi, preparado com goma de tapioca temperada com tucupi, cebola, alho, cheiro-verde, jambu e camarão.
Há a teoria de que teria surgido em Itacoatiara/AM, conforme relata o médico e explorador alemão Robert Christian Barthold Avé-Lallemant, autor do livro No Rio Amazonas, e que esteve na Amazônia e visitou a Vila de Serpa, atual Itacoatiara, em 1859. Classificou o tacacá como “a bebida nacional dos Mura”, uma das etnias que enfrentaram os portugueses e espanhóis com a mesma valentia e crueldade dos ibéricos.
O etnólogo Kurt Nimuendaju escreveu: “De todas as tribos da Amazônia, a dos Mura foi a que mais extenso território ocupou, espalhando-se das fronteiras do Peru até o Rio Trombetas”, que limita o Amazonas com o Pará. Os Mura habitavam as bacias do Médio Amazonas, Solimões e Madeira, desde cerca de 1.450 a. C., até o século XVIII, quando foram trucidados pelos ibéricos. Seus remanescentes, cerca de mil famílias, habitam os municípios de Autazes e Itacoatiara, no estado do Amazonas.
O padre jesuíta João Daniel registra no livro Tesouro Descoberto do Rio Amazonas, escrito entre 1757 e 1776, que os “índios do Rio Amazonas… tapuias do Amazonas… povoadores do Amazonas… usam da bebida tacacá… o tucupi é um sumo venenoso extraído da raiz da mandioca... cozido, perde o veneno, e então é servido como tempero de vários guisados e bebidas.
A iguaria, tal como é servida, hoje, é composta de goma de mandioca, tucupi, camarão seco e salgado, jambu, sal, alho e pimenta de cheiro a gosto. É servido em cuias. Coloca-se primeiramente um pouco de tucupi e um pouco de caldo da pimenta-de-cheiro com tucupi, a gosto, acrescenta-se goma, arranjam-se ramos do jambu, colocam-se camarões e acrescenta-se mais tucupi.
Toma-se tacacá (não se diz beber) muito quente, na cuia, assentada em uma pequena cesta, para proteger as mãos. Utiliza-se um palito de madeira para fisgar o camarão e o jambu (Acmella oleracea), este, o tempero por excelência da Amazônia, utilizado em pratos que vão de pizza até bebida como cachaça. Faz os lábios tremerem de prazer. É rico em cálcio, fósforo, ferro, vitaminas C, B1, B2 e B3.
Mascar jambu adormece o nervo trigêmeo e alivia dores de garganta e de dente. Em forma de chá ou macerado é diurético e ajuda a dissolver cálculos da vesícula biliar. A única contraindicação é para mulheres grávidas, pois provoca contrações do útero. É originário do Brasil, Colômbia, Guianas e Venezuela, e é conhecido também como agrião-do-pará, agrião-do-norte, agrião-do-brasil e jambuaçu.
Cresce na várzea, até 30 centímetros de altura, formando uma folhagem densa e bem verde. As flores são amarelas e hermafroditas. Em Macapá, Cresce como mato nos quintais. O óleo essencial do jambu é rico em propriedades antioxidantes, diuréticas e anti-inflamatórias, utilizado nas indústrias farmacêutica, cosmética e de higiene pessoal.
Seu princípio ativo mais importante é o espilantol, extraído das flores, folhas e caule do jambu. Este arbusto começou a ser plantado em outras regiões do Brasil, como nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, destinado à indústria cosmética. Cultiva-se jambu também em Madagascar, Índia e China.
É habitual consumir-se o tacacá no fim da tarde, em torno das bancas das tradicionais tacacazeiras, figura típica das ruas de diversas cidades da Amazônia. As vendedoras de tacacá têm ponto fixo em diferentes locais das cidades, permanecendo muitas vezes por décadas, de avós para netas, com clientela cativa.
Uma das personagens femininas mais sensuais que criei como romancista é a chefe de cozinha e oceanógrafa Danielle Silvestre Castro, “a cafuza mais estonteante do planeta”, como lhe diz o jornalista João do Bailique, seu marido. Ela é a protagonista do romance JAMBU. Da cor de jambo bem maduro, entre o tom de canela e rosa vermelha, cabelos ruivos e olhos verdes, é neta de holandês e de índia por parte de mãe, e de português e negra por parte de pai.
Sua mãe, a mameluca Danielle Galibi Silvestre, era filha de um holandês anônimo do Suriname e de uma índia Galibi da Guiana Francesa, e seu pai, o mulato João Paulo de Souza e Castro, descendia de escravos usados na construção da Fortaleza São José de Macapá e que fugiram para o quilombo do Ambé, próximo ao rio Pedreira, em terras do município de Macapá; filho da negra Maria Justo Souza e do aventureiro e empreendedor lisboeta Waldemiro Cunha e Castro, que, ao chegar a Macapá, casou-se com Maria Justo Souza e juntos encontraram um veio de ouro nas imediações do morro do Salamangone, na Serra Lombarda, município de Calçoene, dando início ao Grupo Fortaleza, que João Souza e Castro herdou e ampliou, sediado agora em Belém.
Seus avós se mudaram de Calçoene para Macapá levando consigo o conceito do restaurante Cachoeira do Firmino, que fundaram em Calçoene. Graduada em Nutrição e Oceanografia, ambos os cursos pela Universidade Federal do Pará (UFPa), e chefe de cozinha com passagens pelo antigo Hilton Belém e Tropical Hotel Manaus, Danielle Silvestre e Castro era herdeira do bilionário Grupo empresarial Fortaleza, integrado por um estaleiro em Santana, na zona metropolitana de Macapá; uma frota de três navios de passageiros navegando nas linhas Santana-Belém, Santana-Caiena e Belém-Santarém-Manaus, e um de carga, na linha Santana-Belém-Santarém-Manaus-Porto Velho, além de moderníssimo barco de pesca nas costas do Amapá; uma empresa regional de transportes aéreos, baseada no Aeroporto de Macapá, com um jatinho, um avião anfíbio tipo Catalina, três monomotores e um helicóptero; exportação de açaí, piramutaba e grude de gurijuba, empresa sediada em Belém; uma fazenda na ilha de Marajó, com mais de 6 mil búfalos; mil búfalos no Palma, no município de Macapá, à margem da BR-156, e o Hotel Caranã, porta do Grupo Fortaleza para a Europa, via Caiena.
Isso dava suporte ao trabalho social que Danielle realizava: o hotel era o paraíso para estagiários das universidades federais de toda a Amazônia, nas áreas de culinária, turismo, oceanografia e história e literatura da Amazônia; o programa de treinamento e emprego para jovens carentes; o sistema de coleta de alimentos para o Lar dos Velhinhos; a distribuição de sopa e caldo de abóbora no início da noite na rodoviária da cidade; o programa de transporte gratuito de passageiros pré-selecionados abarcando toda a Amazônia; e o Festival de Gastronomia do Pará e Amapá, os dois estados que integram a Amazônia oriental, ou atlântica.
Naquele verão, completara 45 anos de idade; sentia-se no apogeu mental e físico. Com 1,65 metro de altura, mantinha-se há anos em torno dos 64 quilos de peso, sua pele lembrava jambo-rosa, tinha os olhos prenhes de clorofila, lábios grandes, nariz arrebitado, os cabelos desciam-lhe em nuanças naturais entre o negro e o vermelho, como arbusto, até as ancas africanas. Seu hobby eram a pesca em alto mar, a culinária paraense e o Tao, a que se dedicara durante os três anos em que vivera em Hong Kong, estudando Medicina Tradicional Chinesa e O Tao do Jeet Kune Do, de Bruce Lee.
Em Belém, o tacacá é vendido em bancas ou quiosques, do meio da tarde para a noite. A mais ilustre tacacazeira foi dona Maria do Carmo Pompeu dos Santos, falecida em 3 de julho de 2014, aos 75 anos. Seu tacacá é o melhor do mundo; agora, são seus filhos, entre os quais José da Conceição Soero, o Bito, que levam adiante a banca, na Avenida Nazaré, esquina da Quintino Bocaiúva, onde dona Maria trabalhou por 45 anos. Hoje, a Banca de Tacacá da Avenida Nazaré está presente em guias turísticos e gastronômicos do mundo todo.
Belém é Joelma, tacacá, jambu. Recrio-a no meu romance A CONFRARIA CABANAGEM (Clube de Autores e amazon.com.br). Vista de madrugada, a bordo de um jato prestes a pousar no Aeroporto de Val-de-Cães, Belém emerge da Baía de Guajará como uma península de luzes, cada vez mais tangível à medida que o avião se aproxima do chão, até tocá-lo, num choque no concreto, amortecido pela borracha maciça dos gigantescos pneus da aeronave.
Aparentemente a cidade dorme, mas seu ventre ferve na madrugada, e escorre, cedo, na manhã, espalhando sua podridão no meio-fio das ruas e quedando-se, morto, à medida que o sol surge e os belenenses começam a se mover e a expelir dejetos. Almas penadas, andarilhos da madrugada, vendedores ambulantes, mendigos, caminhantes, comerciários, povoam o Ver-O-Peso, o calçadão da Praça da República, o Terminal Rodoviário Hildegardo da Silva Nunes, a Praça do Operário, o Mercado de São Brás, a Praça Batista Campos, a Doca de Souza Franco, todos os pontos preferidos dos exilados na noite, porque, de uma forma ou de outra, esses locais lhes proporcionam luz, segurança e esperança.
A periferia se move como piolho no caldeirão da manhã, a caminho do centro da cidade, nas avenidas atulhadas de carros, sob a fumaceira dos ônibus, que empesta o ar. Ambulantes vendem de tudo nas suas bicicletas de padeiro, estacionadas em esquinas e calçadões estratégicos. Uma índia velha, obesa, seminua, dorme, bêbeda, sobre um banco decrépito, protegida pelas mangueiras gigantescas que pontilham a Praça da República, e pela indiferença da manhã ao triunfo do sol. O odor mefítico se espalha pela cidade, adocicado, de cavalo morto exposto ao sol e à chuva, anestesiando o olfato. Os dias amanhecem calorentos e, à tarde, chove sempre.
Belém do Pará era a cidade brasileira mais desenvolvida e uma das mais prósperas do planeta, no século 19, a Belle Époque, e continua sendo uma das mais atraentes e movimentadas do Brasil. Fundada em 12 de janeiro de 1616, precisa desesperadamente de um prefeito, que a entenda, que seja honesto, democrático e empreendedor. Que a ame. Seus um milhão e meio de habitantes certamente ficarão muito gratos, pois há décadas os alcaides tratam o Portão de Entrada da Amazônia como se fosse sanitário público.
A Cidade das Mangueiras é uma península que avança na baía de Guajará, no trópico equatorial, como um pórtico para o Mundo das Águas, o arquipélago de Marajó: o maior rio do mundo, o Amazonas, ao norte; os rios Tocantins e Guamá, ao sul e sudeste; o rio Pará, a sudoeste, e o Atlântico, a nordeste. O Amazonas fertiliza o Atlântico com pelo menos 200 mil metros cúbicos da sua água túrgida de húmus, por segundo. Assim, a Amazônia Azul do setentrião é a maior província piscosa e de frutos do mar do planeta, e a mais mal guardada do Brasil. Mas isso é outro artigo. Agora, precisa-se de prefeito na principal cidade da Hileia.
A esmeralda mais preciosa do Trópico Úmido precisa de um prefeito que não seja covarde, como os das cidades que todos os anos vão para o fundo. Precisa de um prefeito, que, além de recuperar os prédios tombados, implemente nova infraestrutura básica na urbe e saneie as favelas erguidas sobre fossas. É um sonho embarcar em Mosqueiro, numa lancha coletiva pública, com parada na Vila Sorriso, na Escadinha do Cais, no Porto do Sal e no campus do Guamá, da Universidade Federal do Pará, e fazer a linha de volta, cruzando com outras lanchas coletivas, de outras linhas, os passageiros sentados como se estivessem num ônibus. É um sonho recorrente na Cidade Morena, minha amante.
São 7 horas. Aprecio o dorso dos peixes enfileirados no mercado do Ver-O-Peso, maior feira livre da Ibero-América. A mais fantástica variedade de peixes de água doce do planeta, além dos do mar, é enfileirada em balcões de mármore. Há deles de todos os tamanhos e tons, sem falar nos frutos do mar, com seu cheiro de aventura. A cidade dos tupinambás precisa de um prefeito que dê ao Ver-O-Peso a dimensão desse cheiro de romance, que os viajores procuram avidamente.
No meu delírio, quedo-me na Estação das Docas. Uma portuguesinha em vestido de seda passa e deixa um rastro de esperança. Ouço merengue, distante, talvez de um quarto de hotel no sétimo andar, e a tarde me leva, como um rio, para a dimensão do sonho. A chave do sonho é uma cuia de tacacá, jambu, que se entranha na minha memória e desnuda minha amante.
Vivi um mergulho em Belém do Pará, transitando desde o ventre dos seus palácios aos lixões. Casei-me e exilei-me do lar; trabalhei ao lado dos melhores jornalistas da cidade e caí na clandestinidade do desemprego; fartei-me da culinária mais inacreditavelmente deliciosa do planeta e forjei o espartano que há em mim durante um período de fome; compartilhei camas perfumadas e percorri labirintos femininos intermináveis, mas também escorreguei no negro limo da fossa. Conheço, pois, alguns humores desta península que avança na baía de Guajará como um navio iluminado, e é minha amante.
Amo todas as cidades nas quais já vivi, e até Brasília, onde moro, pois não se pode viver numa cidade sem a amar; não por muito tempo. E se as amamos, o reencontro provoca o cataclismo do primeiro beijo, sacolejam-nos, lançam-nos no espaço, como nos sonhos, que, às vezes, povoam minhas noites, como se estivesse correndo numa planície de zínias e rosas, cortada pelo maior rio do mundo e desaguando na noite, prenhe de jasmineiros que choram perfume. As cidades que amamos evocam amores, madrugadas, papel em branco, álcool, imortalidade.
Namorei Macapá, minha cidade natal, durante os primeiros 17 anos da minha vida, até que um dia peguei o rio e a estrada e rolei para Copacabana. Nosso namoro continua firme, mas agora só no coração. Também amo o Rio de Janeiro, por quem fui seduzido para sempre. Manaus é a mesma coisa, e em cada cidade a vida se multiplica infinitamente. Como em Brasília, onde nasceu Iasmim, a princesinha que encanta todos os dias da minha vida.
Mas Belém emerge do rio como mulher nua, que deixa um rastro de maresia, Chanel 5, Dom Pérignon, safra de 1954, e rosas vermelhas. Tento alcançá-la, temeroso de perdê-la. Porém ela se volta e pronuncia meu nome. Sua voz é como o pulsar da música de Mozart. Alcanço-a, pego-a pelo cogote e a beijo, e sinto o sabor de acme.
Nem os ratos – que se dedicam a te assaltar, a te depredar, a te estuprar, que te mordem os seios – conspurcam tua beleza, nem reduzem tua eternidade, desde 12 de janeiro de 1616, quando lusitanos, comandados por Francisco Caldeira Castelo Branco, desembarcaram numa enseada na foz do rio Guamá e começaram a construir uma fortaleza, o Forte do Presépio, em torno do qual a cidade foi emergindo, e a ela chamaram de Santa Maria de Belém.
Os tupinambás não deram descanso aos invasores. Mas os portugueses dominavam armas de fogo, a Igreja e doenças letais. E em 1626, assumiu o comando Bento Maciel Parente. Os colonizadores eram brutais, mas pareciam gentis diante da loucura de Bento Maciel Parente; ele que mandava amarrar os membros de tupinambás capturados, em cavalos ou canoas, até serem rasgados, vivos. Estima-se que pelo menos 2 milhões de índios foram mortos na Amazônia, escravizados em nome de Jesus Cristo, atingidos por doenças europeias, degolados, esquartejados ou fuzilados.
No começo do século 20, a borracha tornou Belém a cidade mais rica do país. Em 1910, os ingleses começaram a produzir látex no sudeste asiático, causando a débâcle da borracha na Amazônia. Aí começou o declínio de Belém. Hoje, é uma cidade sucateada, inchada, violenta, infestada de bandoleiros e ratazanas, as ruas emporcalhadas de esgoto escorrendo no meio-fio, cidadela corrompida, refém da corrupção, letal como câncer metastático.
Mesmo assim, Belém é como as mangueiras de dezembro, que se curvam
prenhes de frutos, doces como seios de mulher na rede. É assim que ela vive no
meu coração. Quando chegamos ao amanhecer, pela baía do Guajará, nós, que a
amamos, vemo-la se despir, aos poucos, da névoa, até emergir, de repente,
salpicando água, nuazinha; se chegamos de avião e é noite, as luzes na
península, como miríade na noite que desaba sobre a baía, anunciam-se como
óvnis, até pousarmos no bolsão de sol noturno de Val-de-Cães. Subitamente, os
gigantescos pneus do jato se chocam no chão de concreto e a nave começa a
taxiar rumo ao terminal de passageiros.
Já não controlo meu coração. Faço desjejum no Ver-O-Peso, café recém-coado com tapioquinha amanteigada, e depois vou apreciar os peixes dispostos nos balcões de mármore do mercado – os pirarucus são, talvez, os mais bonitos, os filhotes são enormes e os meros, imensos, há sempre piramutaba, pescada, tucunaré, curimatã, tamuatá, mapará, gurijuba, camarão e toda sorte de frutos do mar. Almoço camarão com pirão de açaí no Ver-O-Peso, ou filhote no Restaurante Remada, ou ventrecha de dourada com vinagrete e farofa na Vila Sorriso, ou pirarucu ao molho de castanha-do-pará no Mangal das Garças.
À tarde, o céu sangra de tão azul. Vagabundeio, tomo tacacá na banca do Colégio Nazaré e sorvete de tapioca na Cairu, e, à noite, janto caldeirada de filhote no Remada e bebo Cerpinha no banheiro do hotel, enquanto me arrumo para o encontro com a madrugada. Assim, os dias se sucedem com cheiro de maresia, mulheres caminhando, merengue, bebedeiras, o rio.
Belém é a Catedral da Virgem, rosas para a madrugada, lembranças guardadas numa prece, o desfile interminável das mulheres mais bonitas do mundo, que exalam perfume das virgens ruivas e espargem um rastro de devaneio, que só podemos sentir com o coração. Ungido pelos deuses, penetro neste santuário e dele engravido para sempre. Belém, como as mulheres muito bonitas, inesgotáveis de tão intensas, desencadeia, na minha memória, um cataclismo de rosas colombianas, jasmineiros chorando em noite tórrida, o céu de julho na Amazônia, que sangra no azul na tarde.
Caminho nas suas ruas rumo aos segredos que só eu posso decifrar, como ouvir o anoitecer na Estação das Docas, ver passar as mulheres mais bonitas do mundo enquanto tomo tacacá defronte ao Colégio Nazaré, ouvir o rio, beber o perfume de gim inglês no Cosa Nostra, a alegria das mulheres no Kalamazoo, ao som de merengue e da madrugada, e fazer uma declaração de amor desesperado, porque as cidades, como as mulheres, não podem ser decifradas; precisam apenas que as amemos, pois só para isso existem, como poemas escritos por Deus.
Da mesma forma que as mulheres, as cidades são redes intermináveis de labirintos, abismos de segredos, pelos quais voamos, sempre perdidos, mas firmemente guiados pelo azul mais azul. Cidades, exatamente como as mulheres, iluminam nossos sentidos, e as cavalgamos como se monta a luz.
Sentado no calçadão defronte ao Colégio Nossa Senhora de Nazaré, ao embalo das 6 horas da tarde, caminho ao lado de cada uma das mulheres que passam, e que deixam um rastro de espilantol, sintetizando todo o mistério sob seus vestidos de seda, estampados. Então, descubro o segredo da Hileia, deslindo o mistério, e, assim, o amplio: toda a Amazônia está contida no espilantol de um ramo de jambu. E, aos iniciados, Belém se revela em toda a sua poesia, como mulher ao toucador, absorta, nua.
Agora estou sentado na Estação das Docas. A tarde morre. Ouço murmúrios – risos distantes, preces, merengue. Pedi à Virgem de Nazaré que proteja as crianças e as flores. A tarde morre, escorre como um rio de luzes que se afogam no mar da noite, para ressurgir no ventre da cidade, como uma boca. Acomodado numa cadeira de palhinha, observo o rio e a tarde morrendo. Ouço o riso das mulheres mais sensuais do mundo, trotando nos calçadões, sentadas, tomando tacacá, naquele momento em que a noite cai lentamente, se acamando, até as luzes tremeluzirem, como composição de Debussy, e sinto o sabor do leite da mulher amada, lábios de rosas vermelhas, esmigalhadas.
Um navio parte. Talvez vá para Macapá, ou Trinidad e Tobago. Talvez vá para Caiena. Ou para Mosqueiro. Ou Salinas. De qualquer forma, haverá de ir para um lugar lindo, pois a tarde é povoada de mulheres em vestidos de seda, como uma negra caribenha, sílfide equina, que passa, iluminando o mundo. Vindo de algum lugar, remoto, penso ouvir merengue. O mundo gira. Sinto a vertigem de missa na Catedral; a noite é como o mistério feminino, e, assim, tenho certeza de que estou em Belém.
Então, faço uma prece: Belém precisa de um prefeito, que a ame, e que
seja competente, e honesto. A Cidade das Mangueiras está inchada como um cavalo
morto, dias a fio, sob a chuva e exposto ao sol, e no ventre da besta,
assassinos espreitam. As repartições também estão inchadas; até as aves,
urubus, com seus bicos longos e coloridos, estão inchados. Por Deus, Belém
precisa de um prefeito.
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