RAY CUNHA
BRASÍLIA, 26 DE FEVEREIRO DE 2024 – Neste sábado 2, estarei autografando o romance-reportagem JAMBU (Editoras Clube de Autores, amazon.com.br e Uiclap, 190 páginas) no restaurante Belém Belém Amazônia, templo da cozinha paraense no Rio de Janeiro, na Avenida Rainha Elisabeth da Bélgica 122, Loja A. Essa via liga as avenidas Atlântica, em Copacabana, na altura do Posto 6, à Vieira Souto, em Ipanema.
Trata-se de um romance-reportagem porque mistura uma história inventada com reportagem. Durante o Festival Gastronômico do Pará e Amapá, o jornalista João do Bailique escreve as matérias que comporão uma edição especial da revista Trópico Úmido e investiga um traficante de crianças e de grude de gurijuba. Em segundo plano, a culinária paraense é esmiuçada e João do Bailique escreve sobre a Amazônia profunda, inclusive aquela que se assemelha à África no século XIX, a de Coração das Trevas, de Joseph Conrad.
Além do mais, misturo em JAMBU personagens de ficção a pessoas de carne e osso, conhecidas, vivas ou mortas, e as matérias que João do Bailique vai escrevendo, no desenrolar da história, são reais, sobre a Questão Amazônica. Uma dessas questões é o tráfico e escravidão sexual de crianças. Assim, segue um trecho do livro, meio longo, sobre esse assunto, que voltou à tona na mídia séria, novamente, devido ao que acontece desde sempre na ilha de Marajó, no Pará, que é o estupro, tráfico e escravidão de crianças, inferno sobre o qual até os jacarés tomaram conhecimento.
O tráfico humano
perpassa toda a Amazônia. Já foram identificadas 76 rotas de tráfico de
mulheres, adolescentes e crianças, pela Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres,
Crianças e Adolescentes para Fins Sexuais, coordenada pelo Centro de
Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e pela
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Exploração Sexual, do Congresso
Nacional. Naquela edição da Trópico Úmido,
João do Bailique pinçou alguns casos.
Madrugada
de 16 de setembro de 2004, marina da Ponta Negra, Manaus, capital do estado do
Amazonas e maior cidade da Amazônia. Empresários de Brasília e de São Paulo
aguardam, à bordo do iate Amazonian,
de 25 metros de comprimento, 15 políticos e um carregamento para zarpar rio
Negro acima, aparentemente para uma pescaria em Barcelos, a 450 quilômetros de
Manaus, em passeio organizado pelo dentista paulista Flávio Talmelli. Era o
terceiro ano que o grupo de políticos e empresários candango-paulistas se reunia.
Finalmente o carregamento chega. São peixes servidos antes mesmo da pescaria:
17 meninas, a maioria delas menor, aliciadas em casas noturnas de Manaus. O
programa de dois dias e duas noites renderia 400 reais a cada uma, fora
gorjetas. As garotas foram conduzidas ao iate pela cafetina Dilcilane de
Albuquerque Amorim, conhecida como Dil, então com 33 anos, e que ganharia 100
reais por garota. Domingo 19. As meninas se dividiram em dois grupos para o
retorno a Manaus. O Amazonian, com os
políticos e empresários, seguiu rio Negro acima, com destino a um hotel na
selva. Doze meninas retornaram a Manaus. No fim do dia, as cinco meninas
restantes retornaram também, no barco Princesa
Laura, que naufragou naquele mesmo domingo, entre Manaus e Barcelos, com
100 passageiros. Morreram 13 pessoas, entre as quais as cinco garotas que
participaram da orgia: Amanda Ferreira Silva, 20 anos; Marlene Cristina dos
Santos Reis, 19; Suzie Nogueira Araújo, 18; Taiane Barros, 17; Hingridy
Florêncio Viana, 16. Dois dias antes do acidente, alguns pais queixaram-se à
polícia sobre o desaparecimento de suas filhas. Agentes da Delegacia
Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente de Manaus
(Deapca) descobriram que as meninas mortas haviam participado de uma bacanal e
eram as mesmas que estavam sendo procuradas pelos pais. Depois, localizaram
algumas meninas que retornaram do Amazonian
a Manaus e descobriram que três homens que estavam no Amazonian deixaram a embarcação em Barcelos e, dia 23 de setembro,
retornaram a Manaus, em avião da Apuí Táxi Aéreo. Foi aí que identificaram o
então presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, deputado distrital
Benício Tavares da Cunha Melo, do PMDB; Sérgio Randal Mendes, cunhado de
Benício Tavares e chefe de gabinete da presidência da Câmara Legislativa do DF;
e o advogado brasiliense Marco Antônio Attié. Uma das menores ouvidas pela
polícia disse que Benício Tavares manteve relações sexuais com pelo menos duas
menores, uma das quais Taiane Barros, 17 anos, mãe de um bebê de sete meses, e
que morreu afogada no Princesa Laura.
Outra garota afirmou, em depoimento à polícia, que manteve relações sexuais com
Benício, que teria pago 500 reais a ela. Uma menor disse que Benício lhe
ofereceu 500 reais para manterem relações sexuais, mas ela recusou. Seis das
moças que estiveram a bordo do Amazonian
garantem que Benício chegou a pagar valores entre 200 e 1 mil reais para
manterem relações sexuais com ele, inclusive com as menores de idade. Das 17
meninas contratadas para a bacanal, seis afirmaram, em depoimento à delegada
Maria das Graças Silva, titular da Delegacia Especializada de Assistência e
Proteção à Criança e ao Adolescente, que Benício Tavares esteve no iate nos
dias 17, 18 e 19 de setembro, e que manteve relações sexuais com várias
garotas, entre as quais pelo menos duas menores. A delegada garante que coletou
elementos suficientes para provar a participação de Benício Tavares em turismo
sexual. Maria das Graças Silva mostrou, dia 27 de setembro, fotografias de
Benício Tavares a três meninas que participaram da orgia. Elas identificaram
imediatamente o parlamentar, que é paraplégico. Três meninas ouvidas pela
polícia garantem que no iate Amazonian
havia bebida alcoólica e drogas, e que foram realizados desfiles de garotas
nuas e sorteio de brindes aos participantes. Em depoimento à polícia, a
cafetina Dil declarou que a bacanal foi contratada pelo dentista paulista
Flávio Talmelli. “Ele disse que o passeio seria muito divertido e que todas as
despesas, desde hospedagem à alimentação, seriam pagas por seus amigos. Somente
convidei algumas amigas” – defendeu-se Dil. As garotas disseram à polícia que
foram enganadas por Dil. O combinado é que receberiam 400 reais mais gorjetas,
mas, a bordo, receberam somente 200 reais. Em nota oficial, divulgada no dia 27
de setembro de 2004, Benício Tavares confirmou a viagem a Manaus, de 16 a 22 de
setembro, para pescar no rio Negro, hobby até então insuspeito. Confirmou
também o voo Barcelos-Manaus. Negou relacionamentos sexuais com garotas menores
de idade. Para fazer a viagem turística, Benício se licenciou da Câmara, da
qual era presidente, por 10 dias, embora a casa estivesse votando uma pilha de
matérias e sua presença fosse importante. Foi confirmada também a presença, no
iate, do chefe de gabinete da presidência da Câmara, Randal Mendes, o cunhado
de Benício Tavares, e do advogado brasiliense Marco Antônio Attié. Em 2004, em
Brasília, o plenário da Câmara Legislativa do DF fechou os olhos e arquivou
processo contra o então deputado Benício Tavares, que respondia na Justiça por
turismo sexual no estado do Amazonas. Benício foi liberado por 14 votos
favoráveis e 10 abstenções. Em 2007, o então governador de Brasília, José
Roberto Arruda, deu a Benício Tavares a Administração Regional de Ceilândia, o
maior colégio eleitoral da cidade-estado. O povo se revoltou, pois, além da
acusação de corruptor de menor, Benício Tavares era acusado de desvio de
dinheiro. Arruda teve de tirá-lo do cargo. Em 2009, o Conselho Especial do
Tribunal de Justiça do DF (TJDF) instaurou processo penal contra Benício, em
ação movida pelo Ministério Público, e o absolveu. Benício Tavares foi reeleito
deputado distrital. Em 2010, o
governador José Roberto Arruda foi preso, acusado de comandar esquema de
corrupção que flagrou até corrupto recebendo e escondendo pilhas de dinheiro na
cueca. Em novembro de 2011, Benício Tavares perdeu o mandato de distrital no
exercício da sexta legislatura, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), que considerou, por unanimidade, que o deputado coagiu eleitores e praticou
abuso de poder econômico.
Janeiro
de 2005, Jornal Nacional, TV Globo. Uma série de reportagens, intitulada Povos das Águas, focaliza o trânsito de
balsas em Breves, na ilha do Marajó, Pará. Nessas balsas, na cabine de carros,
crianças marajoaras eram estupradas durante o cruzamento do rio. De um modo
geral, os municípios marajoaras são miseráveis, apesar da natureza pujante da
maior ilha flúvio-marítima do mundo. O Marajó é do tamanho da Suíça. A ilha é
banhada pelos rios Amazonas, Pará e Tocantins, e pelo Oceano Atlântico.
2006,
Altamira, Pará. Adolescentes caem nas garras de uma quadrilha de exploração
sexual, a denunciam e são ameaçadas de morte se dessem com a língua nos dentes
perante a Justiça. A polícia paraense, despreparada, não pôde dar segurança às
vítimas e só conseguiu provas contra três dos 15 acusados. A ação da quadrilha
envolvia políticos e empresários. “É uma rede complexa de exploração sexual,
com várias vítimas e vários adultos envolvidos; é preciso que haja vontade
política para que se chegue aos outros envolvidos” – disse, à época, Ana Lins,
advogada da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH). Em março
daquele ano, a polícia de Altamira localizou várias adolescentes, algumas dadas
como desaparecidas por suas famílias, em uma chácara, onde eram embebedadas e
servidas em banquetes sexuais fotografados. As fotos eram divulgadas na
internet. As orgias ocorriam também em motéis da cidade e em imóveis de um dos
acusados, além de chácaras e balneários no município, onde as bacanais duravam
dias. Ameaçadas de morte, vítimas e suas famílias, e testemunhas, desdisseram
nos depoimentos à Justiça as declarações prestadas no inquérito policial. Uma
das vítimas contou que foi ameaçada na porta da escola onde estudava, e sua
família recebeu bilhetes com ameaças de morte. A jornalista Iolanda Lopes, que
denunciou a quadrilha em várias reportagens, disse que recebeu três telefonemas
ameaçadores. As adolescentes foram, ainda, humilhadas na Câmara de Vereadores
de Altamira, onde tiveram seus nomes divulgados durante sessão plenária. “A
vergonha, a humilhação, o sentimento de desesperança e a depressão são alguns
sintomas encontrados em várias das vítimas desse tipo de crime” – comentou a
advogada Ana Lins. “A revitimização é o calvário de ter que reviver os momentos
do crime ao ter que relatá-los várias vezes. Esse calvário vai desde não ser
atendida dignamente na delegacia, às vezes esperando horas e horas, até
conseguir registrar a ocorrência policial, a realização de exames periciais sem
a devida humanização do servidor responsável, e ver os algozes soltos
livremente e voltando a delinquir em alguns casos.”
Novembro
de 2007, Abaetetuba, no quintal de Belém. Delegados da Polícia Civil do Pará,
com a conivência de gente do Judiciário, atiraram uma menina a dezenas de
criminosos na cadeia da cidade. Essa criança foi currada dia após dia, durante
um mês. Assassinos, estupradores, espancadores de mulheres e crianças, ladrões,
arrombadores, batedores de bolsa de velhinhas, psicopatas, drogados, caíram em
cima da garotinha como hienas, e os policiais, ali perto, ouvindo e vendo tudo.
Os berros de terror eram ouvidos pelos delegados e pelos moradores da cidade,
já que a delegacia era um prédio velho praticamente aberto para a rua, e
ninguém moveu uma palha pela menina. “Minha filha tinha cabelos lindos e
encaracolados que iam até o meio das costas” – disse a mãe. “Cortaram o cabelo
dela com um terçado para disfarçar que se tratava de uma menina. Cortaram é
modo de dizer, escalpelaram a minha filha.” O tempo todo, L ficou com as roupas
que usava ao ser presa, uma saia curta e blusinha, cobrindo seios adolescentes.
Ela media 1,40 m. “Aqui, no Pará, colocar homem e mulher na mesma cela é mais
comum do que se imagina” – disse, na época, frei Flávio Giovenale, bispo de
Abaetetuba. Há registro de caso de atirarem uma mulher a 70 presos. “Era um
show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles
homens todos, mas ninguém falava nada” – disse uma mulher na delegacia a
jornalistas. “Antes de comer, os presos se serviam dela” – afirmou outra
mulher, explicando que a menina só comia se não dificultasse a curra. “Ela
gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como
ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar” – afirmou outra mulher,
explicando que era possível ver e ouvir da rua muito do que se passava na
delegacia. Seis delegados estiveram na delegacia durante o suplício da garota.
A delegada plantonista responsável pelo flagrante foi Flávia Verônica Monteiro
e o delegado titular de Polícia de Abaetetuba, Celso Viana. “Embora ela
estivesse misturada com os homens, o setor onde ela estava é aberto e permite
uma ampla visão de qualquer policial” – declarou o delegado Celso Viana. Flávia
Verônica Pereira e três policiais tinham conhecimento dos estupros. Nada
fizeram. E policiais ameaçaram a menina de morte se não participasse de fraude
em cartório para lhe alterar a idade na certidão de nascimento. O delegado
Celso Viana alegou em depoimento que a adolescente disse ser maior de idade e
afirmou que a responsabilidade da prisão da menor seria do sistema penal, e a
delegada Flávia Verônica Monteiro afirmou que foi enganada ao ver o documento
falso da jovem, indicando que ela tinha 20 anos. Flávia disse ainda que não
transferiu a adolescente da delegacia para outra instituição porque esse
procedimento só poderia ser feito com ordem judicial. Em 27 de novembro de
2007, durante audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado
Federal, o então delegado-geral do estado do Pará, Raimundo Benassuly Maués
Júnior, insinuou que a jovem é que foi responsável pelo episódio e que devia
ter “alguma debilidade mental” por não ter dito que era menor de idade. “Não
sou médico legista nem tenho formação na área, mas essa moça tem certamente
algum problema, alguma debilidade mental. Ela, em nenhum momento, declarou sua
menoridade penal” – afirmou o gênio. No dia 3 de outubro de 2013, João do
Bailique leu na mídia que a juíza Clarice Maria de Andrade Rocha, que atuava em
Abaetetuba quando a adolescente esteve presa, fora promovida, em 2 de outubro
daquele ano, pelo Tribunal de Justiça do Pará, a titular da Vara de Crimes
contra Crianças e Adolescentes de Belém. Segundo portaria da desembargadora
Luzia Nadja Guimarães Nascimento, o critério para a promoção de Clarice foi por
merecimento. Clarice foi considerada omissa pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) durante o período em que a jovem paraense foi supliciada, e recebeu a
punição de aposentadoria compulsória, em 2010. Mas a Associação dos Magistrados
do Pará (Amepa) recorreu da decisão e a aposentadoria foi anulada pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), que entendeu que a punição foi exagerada, já que a
magistrada não teria como saber da situação da carceragem da delegacia de
Abaetetuba. Quando o caso estourou na mídia, em novembro de 2007, a então
governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, do Partido dos Trabalhadores (PT),
tratou-o com habitual alienação, e tudo mergulhou no esquecimento.
O
rio Jari divide o Amapá do Pará desde a Serra do Tumucumaque, na fronteira com
o Suriname, até desaguar no rio Amazonas, no sul do Amapá. O Beiradão, no
município amapaense de Laranjal do Jari, é apenas uma das zonas nas quais a
escravidão sexual infantil é crime banalizado e recorrente. O comércio de
crianças amapaenses e paraenses é também intenso na Guiana Francesa,
principalmente em cidades como Kourou, onde fica a base francesa de lançamento
de satélites, e também no balneário de Montjoly e em Saint Laurent. Moças amapaenses
e paraenses são bastante apreciadas em bacanais, corrompidas por promessas de
casamento com franceses ou a fantasia de ir para a Europa e faturar até 100
euros por programa, escapando, assim, da miséria. Dos 200 mil habitantes da
Guiana Francesa, 50 mil são brasileiros ilegais, amapaenses em sua maioria, que
fogem do Amapá, estado assolado pela miséria social, roubalheira de colarinho
branco, nepotismo, corrupção endêmica e imigração insuportável, inclusive de
gente importante, como o maranhense José Sarney.
Macapá
é uma fotografia dessa tragédia; sem rede de esgoto, cheia de ruas esburacadas,
com fornecimento precário de energia elétrica e água encanada, apesar de se
situar na margem do maior rio do mundo, torna-se, a cada dia, mais inchada e
violenta.
Próximo
de Caiena, localiza-se a cidade amapaense de Oiapoque, uma das portas de
entrada para a prostituição internacional na Amazônia. Antes de as crianças,
adolescentes e mulheres adultas seguirem para as três Guianas, passam,
geralmente, por um estágio em Oiapoque. Boates locais são o internato que
prepara meninas e meninos para o horror. Guianenses que atravessam o rio
Oiapoque atraídos por sexo são recebidos na cidade de braços abertos – inúmeros
bares nos quais o lenocínio prospera 24 horas por dia. No Amapá, cidades como
Laranjal do Jari, Tartarugalzinho, Calçoene e Santana, são, como Oiapoque,
vitrines de uma tragédia.
O
holandês Kunathi, um dos maiores traficantes de pessoas, em atividade na
Amazônia, já foi preso em flagrante no Pará, mas a Justiça o soltou para
responder ao processo em liberdade. Não deu outra, Kunathi fugiu para o
Suriname, onde é dono de boate na qual só trabalham brasileiras, muitas delas
do Pará e do Amapá.
Danielle
contou a João do Bailique o que lhe acontecera em Sucuriju.
–
Acho que sei quem está por trás disso, e tu também sabes quem é, pois quando
ele vem a Macapá se hospeda no Caranã: o nome dele é Jules Adolphe Lunier, da
Cunani Exportações, um francês que passa bastante tempo na Vila Progresso, em
Bailique; tem um iate grande, e costuma costear o Amapá e as Guianas, e tem
também uma lancha, que, às vezes, enche de mulheres. Gosta também de pescar
marlin azul na altura de Sucuriju e da ilha de Maracá. O delegado Malafaia, da
Polícia Federal, me informou que ele vem sendo monitorado, e já se encontrou
com Kunathi, em Paramaribo. É impressionante como as coisas acontecem. Te
acomodas bem para não caíres! Descobri, hoje de manhã, cedo, que foi Jules
Adolphe Lunier que emprenhou a Patrícia – disse João do Bailique, pondo de volta
no mostruário o uirapuru. Era uma das joias da coleção. “Quando ele canta, toda
a floresta se cala para ouvi-lo. Por isso, os cabocos acreditam que levar
consigo um uirapuru empalhado é garantia de fortuna financeira e amorosa, razão
pela qual o uirapuru é caçado sem trégua” – pensou. Era capaz de sopesar um
uirapuru mentalmente. Sabia tudo sobre aquele pássaro, e os amava por isso
também. O uirapuru-verdadeiro (Cyphorhinus aradus) mede cerca de 12,5
centímetros de comprimento e pesa entre 18 e 24 gramas. Apresenta a garganta e
a região superior do peito castanhas, o ventre e os flancos cinza pálido, e o
dorso é marrom. A cauda é curta e as patas, grandes. Nativo da América do Sul,
vive em quase toda a Amazônia brasileira – exceto no alto rio Negro e na região
oriental do Rio Tapajós –, nas Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e
Bolívia. Para João do Bailique, o canto do uirapuru era, de longe, o mais
melodioso de todos os pássaros canoros. Costumam cantar ao amanhecer, enquanto
constroem o ninho, para atrair a fêmea, durante apenas 15 ou 20 dias do ano,
entre meados de setembro a outubro. Bailique se lembrou da letra do Uirapuru, do maestro Waldemar Henrique:
“Certa vez de montaria/Eu descia um paraná/O caboclo que remava/Não parava de
falar, ah, ah/Não parava de falar, ah, ah/Que caboclo falador!/Me contou do
lobisomem/Da mãe-d'água, do tajá/Disse do juratahy/Que se ri pro luar, ah,
ah/Que se ri pro luar, ah, ah/Que caboclo falador!/Que mangava de visagem/Que
matou surucucu/E jurou com pavulagem/Que pegou uirapuru, ah, ah/Que caboclo
tentador/Caboclinho, meu amor/Arranja um pra mim/Ando roxo pra pegar/Unzinho
assim.../O diabo foi-se embora/Não quis me dar/Vou juntar meu dinheirinho/Pra
poder comprar/Mas no dia que eu comprar/O caboclo vai sofrer/Eu vou
desassossegar/O seu bem querer, ah, ah/Ora deixa ele pra lá...” Também Heitor
Villa-Lobos imortalizou o uirapuru em poema sinfônico homônimo, utilizando
solos de violino, flauta, oboé e clarinete.
–
O que? Como tu descobriste isso? – Danielle perguntou, estupefata.
–
Ela finalmente contou para o Maurício e ele me contou.
–
Meu Deus! Ela vai parir este mês e o filho dela vai ser também nosso afilhado!
Nunca quis dizer quem era o pai e agora descubro que o dito cujo mandou me
apagar. Só pode ter sido ele; quem mais teria interesse em me apagar? – ela
disse.
–
Sim! Ele é o principal atravessador de grude, embora não apareça – disse João
do Bailique.
Patrícia,
que nascera na Vila Progresso e ia sempre que podia lá, estava com 17 anos
quando engravidou. De rosto absolutamente simétrico, olhos imensos, gateados,
lábios de rosa vermelha, colombiana, pele de jambo novo, 60 quilos de peso
distribuídos em 1,70 metro de altura, seios fartos, quadris enlouquecedores,
pernas longas e bem torneadas, riso de cristais, e no primeiro ano do nível
médio no Colégio Amapaense, enlouquecia professores e colegas. Praticamente
morava no Hotel Caranã, pois era tratada como uma filha por Danielle.
–
Era para tu teres me avisado do perigo que corrias!
–
Tu sabes que todo último sábado do mês eu preciso ir lá; mesmo com o festival
eu precisava ir lá, pois o sujeito que tentou me matar vinha ameaçando todo
mundo na cooperativa, e havia prometido que iria lá, ontem, para receber uma
resposta, a de que todo o grude conseguido pelos pescadores da vila teria de
ser vendido para ele, e pelo preço que ele determinasse. Eu confesso que não
imaginei que ia acontecer o que aconteceu. Pensei que não seria difícil pôr
tudo em pratos limpos. E depois tu estás assoberbado de trabalho, fechando a
edição especial da Trópico Úmido.
Ele
a olhou, sério.
Danielle
casara-se com João do Bailique no verão anterior, mas moravam separadamente,
embora houvesse se tornado companheiros desde a faculdade de Oceanografia.
Queriam um filho, mas ambos concordavam que Bailique estava com idade avançada
demais para gerar filho, o que, em si, não seria problema; o problema era que Danielle
sabia que, segundo a Medicina Tradicional Chinesa, gerar filhos com idade
avançada era garantia de falta de energia e problemas renais para a criança.
Assim, esperavam adotar, embora como afilhado, o bebê de Patrícia, que seria
menina.
–
Agora que sabemos que Jules Adolphe Lunier é o pai, e que ele estuprou a
Patrícia, que é menor de idade, podemos pegá-lo – disse Bailique. – Mas teremos
que pegá-lo, ou seja, a Polícia Federal, pelo tráfico de grude. O delegado
Malafaia descobriu que ele tem um navio que leva grude clandestino para a
China, especialmente para Hong Kong, e isso tu poderás confirmar com teus
contatos em Hong Kong. Quanto a Patrícia, seis meses depois de ter a menina,
passará uma temporada em Paris, que é o que ela quer, e poderá inclusive fazer
curso de modelo e de arte cênica. Ela já está bem adiantada no francês e no
inglês, e tem facilidade para decorar textos. O mais importante de tudo é que
ela já conseguiu superar o trauma do sequestro. O tratamento a que a submeteste
foi realmente maravilhoso.
Abraçaram-se.
Naquela
já distante manhã, na Vila Progresso, Patrícia Valente Melo, 11 anos e seis
meses, se levantou da rede e foi ao banheiro, olhou-se ao espelho e apreciou
seu rosto, simétrico, olhos imensos, gateados, lábios de rosa vermelha, pele de
jambo novo. Era extraordinariamente bonita, e sensual, embora tivesse apenas 11
anos de idade. Tudo aconteceu muito rápido. Um homem peludo entrou na casa,
colocou algo no seu nariz e ela acordou num barco, que, soube mais tarde, se
chamava Virgem de Nazaré; levava crianças
para a boate Senzala, especializada em servir europeus que atravessavam o rio
Oiapoque, oriundos de Caiena. O carregamento, meninas sequestradas no Amapá e
Pará, seria leiloado com lance inicial de mil euros para usufruto de uma
semana, após o que seriam transportadas para Paramaribo.
–
Aquele francês louco, mas que paga muito bem, o tal de Humbert Humbert, já
reservou a Patrícia. Ele vem exigindo uma menina assim igual a ela faz tempo.
Ele vai pagar nada menos do que 6 mil euros para passar uma semana com ela na
propriedade dele na Guiana Francesa, aí então a devolverá para o Caixinha de
Pose, que é o dono da boate Senzala, em Oiapoque. Aí a pegarei de volta e a
levarei para o Kunathi, por mais mil euros – contabilizou Jules Adolphe Lunier
a Tota, capitão do barco.
A
manhã imobilizou-se, tensa como tumor maduro. Um raio chicoteou o céu quase
noturno, seguido de trovoada. A tempestade desabou com toda a fúria. Cerca de
40 minutos depois passou completamente e o mar voltou a ficar calmo. Giselle e
João do Bailique estavam pescando marlim azul na altura do Cabo Caciporé quando
avistaram o ponto flutuando. Aproximaram-se e viram uma menina com salva-vidas,
agarrada a um grande banco de madeira. Era Patrícia.
Parabéns pela grande obra, pela coragem de explanar temas tão impactantes na vida de nossas crianças!
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