AMAZÔNIA: 28 contos ambientados nas cidades e na Hileia |
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 17 DE FEVEREIRO DE 2024 – AMAZÔNIA (Editoras Clube de Autores e amazon.com.br, 29 contos, 363 páginas), deste escritor, acaba de ser publicado. A diferença de outros autores da região é que a maioria desses contos se desenrola nas grandes cidades da Hileia.
Ribeirinho nascido na Macapá/AP de 1954, repórter nos maiores jornais da Amazônia e leitor da literatura científica, histórica e de ficção do Trópico Úmido, posso trafegar com familiaridade pelas grandes cidades da região, como Belém e Manaus, bem como pela selva ínvia.
São contos prenhes de dramas urbanos e tragédias na selva, com personagens de ficção que sobrevivem nas cidades da grande floresta e, às vezes, se internam na selva, de onde somente alguns logram retornar. O contrário também ocorre; cabocos migram para a cidade grande e, sem compreendê-la, encurtam suas vidas.
Selecionei, aqui, um dos contos de Amazônia. Boa leitura!
MUITO ALÉM DE MIM
Tenho tentado escrever ficção. A gente não precisa de
muito para produzir. Basta comer o suficiente para não adoecer. Vinha tendo bem
mais que isso, mas tudo acabou como num passe de mágica. No mesmo dia, perdi
emprego, mulher, casa, comida e roupa lavada. Conheci Celina Madeira Machado
Silva e Silva no Bar do Parque, defronte ao Hotel Hilton Belém, na Praça da
República. Ela estava na companhia de uma tipa grande como uma elefanta e de
uma outra que era toda uma enguia. Naquela época, andei publicando umas
resenhas sobre cinema em O Liberal e Celina era cinéfila. O papo foi
longe. Ela me convidou para ir à sua casa no dia seguinte. Morava em um casarão
em Nazaré. O pai, com o estômago estourando de câncer, vivia recluso esperando
a hora de bater as botas. Para não me estender muito, o caso é o seguinte:
Celina e eu nos casamos dias depois. Eu era seu quarto marido. Celina andara à
procura de um pai camarada. A mãe de Celina, uma índia que seu pai comprara em
Santarém, fora escravizada a vida toda, mas não morrera sem gerar a filha
rebelde. Ao chegar de Portugal, o pai de Celina começou como padeiro em Belém.
Anos de economia, comendo restos estragados de frutas e se vestindo com duas
mudas de roupa, fizeram dele um magnata do pão. Celina vivia esbanjando a fortuna
e batendo perna com suas amigas aliá e peixe-elétrico. Era a cadela no trio.
Pôs-me um par de cornos de alce. Mas nosso jogo era tácito. Ela me tirara da
sarjeta e me usava como atleta sexual. Naquela manhã, peguei o carro que Celina
me dera e fui para o trabalho, uma revista picareta que só me pagava com vales,
embora, antes de conhecer Celina, era lá que eu repousava a carcaça, em um
quartinho decrépito, nos fundos do prédio. Cheguei a tempo de ver o pessoal da
Justiça do Trabalho levando tudo. Depois soube que o editor tinha vencido uma
causa trabalhista contra o dono da empresa. Voltei para casa. Flagrei minha
mulher gemendo, empalada no vergalho do jardineiro em nossa santa cama. Não
quis fazer drama. Sentia-me vulnerável e cansado. Fui à cozinha beber água. “A
vida é um jogo perdido; o melhor que podemos fazer é jogar bem” – pensei. “A
criação literária é minha igreja; e eu, o padre que oficia a missa. A razão da
minha vida é escrever ficção. Se não escrevo, sinto-me vazio, despencando na
fossa, no nada. Por isso, necessito criar. E quando estou no lugar ideal nada
pode me atingir. Nada! Eu sempre soube que esse casamento é apenas uma passagem
de chuva.” Passado algum tempo voltei ao quarto, peguei minhas coisas. Na sala,
encontrei Celina.
– Estou
indo embora – disse-lhe. Quase não acreditei no que ela respondeu.
– Tu
pegaste a roupa na lavanderia? – eram uns casacos que ela usava quando viajava
e que eu levara à lavanderia.
Nessas alturas, tinha feito novas amizades e um amigo,
um verdadeiro irmão, que me acolheu na casa dele. Minha passagem pela casa de
Celina proporcionou-me a oportunidade de me preparar para o vestibular. Ela
pagara o cursinho e eu consegui entrar na Universidade Federal do Pará, para
fazer o curso de jornalismo. Foi desse modo que obtive uma vaga na Casa do
Estudante Universitário do Pará (Ceup).
Naquela
manhã lamacenta de abril a Ceup dormia ainda, por trás do alto muro na Rua São
Francisco, bairro da Campina. Era um conjunto de três prédios: a Casa Nova, já
com sinais de decrepitude; a Vila Sapo, com quatro quartos lado a lado; e a
Casa Velha, um casarão do século dezenove, em ruínas.
–
Gostaria de falar com o presidente – disse a um ancião escaveirado que surgiu
no vão da porta, imaterial como um fantasma.
Fui
conduzido a um quarto no terceiro andar da Casa Nova. Bati na porta. Apareceram
dois olhos negros, famintos. Pertencia a um camponês de cabeça excessivamente
chata. Estendi-lhe a carta da reitoria da Universidade Federal do Pará. Ele a
leu.
– Meu
nome é Ribamar – disse, e me convidou para entrar no quarto.
O quarto
fedia a mofo, roupa suja e gordura. Encostada à parede havia uma bicicleta toda
enfeitada. “Parece chapéu de vaqueiro nordestino” – pensei.
– Você
vai para o quarto do Rei Momo – disse o presidente.
O quarto
do Rei Momo ficava na Vila Sapo. Era o primeiro de quem ia da Casa Nova para a
Casa Velha. Estava fechado. Ribamar bateu na porta. Ouviu-se movimento lá
dentro e depois a porta foi aberta. Vi uma aparição de olhos esbugalhados, um
homem de meia idade, barrigudo e assustado.
– Este
aqui é o João. Ele vai morar aí – disse o presidente.
– Aqui? –
Rei Momo não acreditou no que ouviu. Desde que viera de Santarém, há dez anos, não
dividia o quarto. Agora, o subversivo do Piauí vinha com aquela conversa. – Um
momento – disse Rei Momo, fechando a porta. Daí a alguns minutos reapareceu.
Vestira uma camisa e escovara os cabelos. – Podem entrar – convidou-nos.
O fedor
de mofo era sufocante. Em um dos lados do quarto havia uma cama com um bom
colchão, com trapos espalhados sobre ele. No outro lado, encostada à parede, vi
uma dessas camas de armar e desarmar. Na parede dos fundos erguia-se uma
respeitável pilha de livros, ao lado de um guarda-roupa em ruínas, e no centro
do quarto jazia uma mesinha atulhada de tudo quando se possa imaginar. Rei Momo
sentara-se sobre a cama e o presidente e eu ficamos em pé.
– Eu
sempre morei sozinho – disse Rei Momo, zangado.
– Isto
aqui está precisando de uma limpeza. Vou convocar um mutirão para pôr em ordem
este quarto – disse o presidente, que era recém-empossado. Eu soube mais tarde
que o presidente anterior permanecera no cargo durante dez anos.
Rei Momo
olhou-o apavorado.
– Não
será preciso um mutirão. Nós dois nos daremos bem – eu disse, estendendo a mão
para Rei Momo. Ele pareceu não ter visto meu gesto. – Parece-me que ambos
gostamos de Fellini – apontei para uma lombada que se salientava na pilha de
livros. – E não te preocupes com barulho; gosto também de silêncio.
Nasci em
22 de abril de 1939. Estamos em 22 de abril de 1972. Tenho, portanto, 33 anos
de idade. Sinto que já comecei a descer o morro da vida. Para um escritor
permanecer no embalo dos 21 anos só com muita dedicação – dedicação religiosa –
a tudo o que diz respeito à criação literária, como: disciplina espartana e
trabalho duro como um assalto de boxe, sem trégua, contínuo, árduo e nunca
desestimulado. E é assim que venho fazendo na Ceup, aproveitando essa
oportunidade que Deus me deu. O fim do meu casamento serviu para que
descobrisse o quanto realmente as coisas valem. A Ceup foi o gatilho que eu
precisava disparar para me tornar escritor e, antes dela, Celina.
As
melhores horas eram as da madrugada, quando o silêncio se impunha à horda
piolhenta que ali se escondia. Às vezes, deixava-me sentar em frente à
televisão para ver um resto de filme, ou simplesmente ficava ali, no hall
de entrada da Casa Nova, mais pela claridade das inúmeras lâmpadas
fluorescentes. Nas férias, quando todos iam para suas cidades natais e a Ceup
ficava quase abandonada, eu varava as noites escrevendo, absolutamente fiel a
mim mesmo. Escrevia todos os dias, mesmo que fosse por alguns minutos apenas.
Se não dava, tentava no dia seguinte. E dormia bastante. Lia tudo e
atentamente. Rezava, meditava, via, ouvia, sentia, cheirava, degustava, bebia,
comia, vagabundava, batia papo e escrevia cartas. Escrever não me saciava
nunca. Atingia picos de concentração, lucidez e produção que pareciam a
embriaguez do primeiro gim fizz. Vivia o agora e o agora, o momento mesmo da
vida. Nada de nostalgia, nada de remorso, o passado era feito do que havia de
melhor; nada de sonho, pois a realidade proporcionava prazer intenso; nada de
preocupação, pois não havia futuro; nada de raivas, pois a raiva, acionada, só
a morte pode detê-la, é tão devastadora que atinge tudo ao seu redor, incluindo
objeto e sujeito; nada de reclamações; nada de se meter na vida dos outros, nem
deixar que os outros se metessem na minha vida. Eu era, apenas, um mero
observador da realidade, embora, sempre que achasse necessário, interviesse na
realidade. Hoje, sei que não se pode intervir na realidade, pois a realidade é.
Nossa vida é apenas o caminho que leva à realidade. Até as mulheres se tornaram
para mim, naquela época, abstrações, e somente pensando nelas é que ousava
sonhar. Sonhava com uma companheira, amiga, amante, o colo onde repousava minha
cabeça, ainda dolorida devido aos cornos. A luz do seu amor me conduzindo
naquelas encruzilhadas da vida mergulhadas nas trevas, guiando-me pela mão, com
segurança, emergindo comigo na claridade e na trilha segura. Nos meus mergulhos
interiores eu me via também como protetor das crianças, gentil e caridoso,
senhor de mim, poderoso como um anjo, e frágil, pois me via pedindo perdão a
todos quanto ofendi, ou causei mal.
Geralmente
me alimentava de pão dormido, que o padeiro da esquina me arranjava sempre. Fiz
amizade também com o açougueiro, que me dava ossos ainda munidos de excelentes
nacos de carne, que eu cozinhava e comia com a boa farinha d’água que minha
família me mandava de Oiapoque, cidade do Território Federal do Amapá. Às
vezes, eu faturava alguma coisa na mídia. Aí, almoçava no Ver-O-Peso. Meio
litro de pirão de açaí com dourada, e adormecia nocauteado pela canícula, até o
anoitecer, quando tomava banho, vestia a melhor muda de roupa de que dispunha e
ia para o Cosa Nostra bater papo com o barman, meu amigo. Mas, a maior
parte do tempo, vivia a minha vida de modo quase recluso, quase sem participar
da agitação que era sempre a Ceup. Minha participação no dia a dia da casa era
mais a de expectador. Os acontecimentos se sucediam como os bancos de uma
roda-gigante em movimento. Embora eu não me importasse com eles. Simplesmente
não influíam na minha vida. Eu estava ali com um objetivo e até alcançá-lo
vivia intensamente minha vida interior. O dia a dia da Ceup não alterava o
fluxo do meu rio interior. Mas eu dissecava os protagonistas desses episódios
e, às vezes, tomava nota deles. Uma madrugada, acordei com gritos medonhos à
porta do quarto. Abri-a e me deparei com uma mulher enrolada em um cobertor
imundo, cheio de nódoas de gozos antigos, suplicando que a socorressem. Mão de
Sucuri, um vaqueiro, nosso vizinho, havia levado aquela mulher para o quarto
dele, onde morava com Punheteiro, que se masturbava a noite inteira enquanto Mão
de Sucuri trabalhava nas putas que levava para lá. Naquela noite, Mão de
Sucuri, que tinha esse apelido de tanto ordenhar vaca e ficara com uma força
descomunal nas mãos, queria que a mulher desse uma chupada nele. Ela ficou com
vergonha de fazer aquilo na frente de Punheteiro. Apesar de não se aguentar em
pé de tão porre, Mão de Sucuri imobilizou-a na sua rede tão limpa quando o
cobertor em que ela havia se envolvido na fuga e lhe ferroou uma dentada na
bunda. Depois pô-la nua, a bofetadas, ao relento. Ela conseguira levar o
cobertor e ao ver-se ao relento pôs-se a berrar. Mão de Sucuri caiu na rede em
coma e Punheteiro batia uma feroz punheta para aquela égua nua que passou
roçando seu nariz. Outra madrugada, na Casa Nova, o Doutor, conhecido também
como Distribuidor de Esperma, começou a berrar. Ele queria ser cirurgião
plástico. Logrou ingressar na universidade após doze vestibulares bem contados.
Jamais tomava banho e lembrava um pedaço de sebo. Dizia a todos que vendia
esperma para inseminação artificial. Recebia carne seca do Maranhão e
guardava-a sobre uma sucata de geladeira. Todo dia tirava dali alguns pedaços,
que cozinhava e comia com farinha d’água. Um dia, ratos começaram a brigar
sobre a carne seca e um caiu no Distribuidor de Esperma, que acordou com uma
ratazana na cara. Em agosto, houve o caso do Padre. Um dia, encontrava-me no
salão da Casa Velha. Duende estava encostado à janela. Era meio-dia e o sol
dava até para fritar ovo.
– Não dou
uma semana para que o Padre seja levado para o hospício – disse Duende, um
goiano vermelho e miúdo, que só usava camisas de mangas compridas abotoadas nos
punhos e no colarinho, mesmo sob o calor de quarenta e cinco graus. Três dias
depois, houve um corre-corre na Casa Velha. Apareceram quatro enfermeiros, meteram
o Padre numa camisa de força e sumiram. Naquela noite, encontrei-me com Duende
e lhe perguntei como é que ele sabia do internamento de Padre.
– Ele
andava de camisas de mangas compridas abotoadas nos punhos e no colarinho em
pleno sol de meio-dia – disse.
Fui a
última pessoa a falar com Duende, que vivia sozinho em um quarto grande da Casa
Velha. Como tivesse perdido a chave da porta, entrava no quarto por meio de um
buraco na janela, vedado com um pedaço de compensado. Duende desaparecera já há
três dias. Naquela manhã, seu Miguer, o faxineiro esquálido, vislumbrou por uma
brecha na janela um movimento qualquer no quarto de Duende. Olhou melhor e viu
uma ratazana agarrada a uma perna. Apurou o olhar e distinguiu um homem
enforcado, com ratazanas aqui e ali no corpo, especialmente na cara. Seu Miguer
emitiu um guincho semelhante ao de seus irmãos roedores e deu o alarme. Foi uma
perda para Rei Momo, já que Duende costumava manter discussões quilométricas
com Rei Momo sobre Khrisnamurt, de quem lera todos os livros. Ironicamente,
Khrisnamurt era sua ansiedade.
Quando eu
não estava na Ceup, estava na universidade. Tive uma professora gorda como uma
vaca que promovia debates sobre marxismo sem jamais ter lido O Capital.
Vivia com uma aluna magrinha, que a gorda agarrava nos corredores da faculdade
e lhe aplicava beijos escandalosos. Durante três semestres vi-me perseguido por
um professor de técnica de alguma coisa, homossexual, coxo, com uma nádega seca
e analfabeto. Um dia, no banheiro, segurei-o pelo cabelo e o fiz beber água do
vaso sanitário. Um santo remédio. Outro mestre inesquecível foi um idiota
nascido no Piauí, educado em Goiás e doutorado numa dessas universidades
perdidas nas estradas dos Estados Unidos. O tipo lecionava uma disciplina chamada
Estudos de Problemas Brasileiros. Suas aulas eram, invariavelmente, um elogio
às obras faraônicas dos ditadores militares. À noite, livrava-me de tudo aquilo
com um bom gole de gim fizz no Cosa Nostra, por conta da casa.
Rei Momo
morreu no Natal daquele derradeiro ano de minha permanência na Ceup. Caiu como
um passarinho baleado diante da parede nua do quarto, onde sempre estivera seu
tesouro. Rei Momo era um ladrão de livro. Possuía uma pilha de dois mil
volumes. Ao mudar-me para o quarto dele tive de colocar Sequoia em ordem.
Sequoia chegou a dar uma surra de cinto em Rei Momo. Mas eu ainda não morava na
Ceup. Eu era pugilista amador e sempre que podia estava lá com a turma da Joe
Louis. Acabei com Sequoia apenas com um tabefe na cara. Ele não revidou. Ficou
se cagando de medo. Então, deixou Rei Momo em paz. Eu gostava de conversar com
Rei Momo, que levava uma vida de rei, mesmo. Matriculava-se em uma única
disciplina na universidade e fazia de conta que estava estudando. Sua família o
mantinha ali porque o consideravam retardado mental. Ele não se importava.
Recebia uma mesada relativamente gorda. Consumia suas tardes conversando fiado
nas bancas de tacacá e com os vigias das redondezas. Pois bem, Sequoia
mudou-se. Aproveitou para dar um golpe fatal em Rei Momo. Na madrugada daquele
Natal, ao entrar no tugúrio onde nos enterrávamos, Rei Momo encontrou um
bilhete pregado com fita Durex na parede nua onde sempre estiveram os livros, a
primeira coisa que Rei Momo checava ao entrar no quarto. “Agradecido pelo
livros, bicha louca” – dizia o bilhete.
Vocês
sabem como Ernest Hemingway morreu? Segundo Milt Machlin, no livro O Inferno
Privado de Hemingway, era cedo da manhã. “Desceu à sala de armas e tirou do
armário uma de suas espingardas favoritas, uma Angelini e Bernardon calibre
doze, fabricada especialmente para ele. Era uma bela arma, e ele sempre a
tratava com a reverência de um objeto religioso. Carregou-a com dois cartuchos,
depois meteu os dois canos na boca e puxou os gatilhos ao mesmo tempo.” Houve um
tempo em que pensei matar-me. Possuía – e isto era uma das minhas pequenas
riquezas – uma pistola, a PT 58, da Taurus. Se eu quisesse me suicidar como
Hemingway teria de pôr a boca do cano no céu da boca, de modo que a bala
atravessasse o cérebro. A gente não sente nada. Os que ficassem, logo me
esqueceriam. Como minha família é de Oiapoque e muito pobre eu seria enterrado
como indigente e, assim, desapareceria sem deixar rastro. Cheguei a cogitar
isso na época em que aquela cadela, aquela índia duma figa, galinha do caralho,
me empurrou de volta para a sarjeta, depois de quase um ano principesco. Mas
agora sou grato a ela. Ajudou bastante. E depois somente nós temos a
responsabilidade pelo que passamos. Antes de conhecer Celina, estivera sentado
em uma cadeira olhando para uma parede. A sorte é que ouvia Wolfgang Amadus
Mozart. Concerto para Piano e Orquestra em Ré Menor. Para além da
parede, há um anoitecer azul. Azul escuro. Peguei meu canivete italiano, outra
joia que possuo, e vibrei contra o céu. O sangue escorreu pelo corte. E o azul
intenso respingou mim. Atravessei o portão da Ceup e tomei pela Rua São
Francisco e depois pela Avenida Almirante Tamandaré até a Avenida Presidente
Vargas. Sentei-me em um banquinho no Milano e pedi uma Antarctica pequena.
“Como vou desforrar!” – pensei, pois acabara de conseguir uma vaga em O
Liberal. Já tinha renda garantida, agora. Só precisava escrever um romance
que vendesse como Cem anos de solidão, como pão francês. Então compraria
um iate para vagabundar por toda a Amazônia e o Caribe.
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