sábado, 6 de julho de 2024

Eu ainda sou eu

Ray Cunha fotografado pelo pintor André Cerino (2013)


RAY CUNHA 


Eu ainda sou eu e sempre serei eu, porque sou eterno

Mesmo em coma viajo em velocidade quântica

Hoje, estou aqui, e em Centaurus, agora mesmo

Posso, como os leões, passar dias namorando

Mas sentindo orgasmos que duram horas

Eu ainda sou eu e sempre serei eu, eterno porque agora

Meu corpo é energia condensada para uma experiência fugaz

Trajo espacial para viver aqui na Terra

Sou uma consciência que viaja na velocidade dos elétrons

Aqui, sou guiado pelas emoções, pelos sentidos

Meu combustível é amar, riso de crianças, gemidos da mulher amada

Eu ainda sou eu e sempre serei eu

Porque sou eterno e viajo pelas estrelas

Com o mesmo prazer de estar em Copacabana

Tentaram matar-me quando eu era criança e jovem

Adulto, tentaram tomar tudo de mim

Mas sempre fui protegido e nunca um desses ataques

Aniquilou-me completamente, nem me aleijou

De modo que ainda sou eu

Entendi, então, que nada é por acaso

Se eu fui preservado é porque minha missão só está começando


BRASÍLIA, 6 DE JULHO DE 2024

sexta-feira, 5 de julho de 2024

O perfume das virgens ruivas

Ray Cunha, fotografado pelo pintor André Cerino (2013)

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 5 DE JULHO DE 2024 – O olfato é dos sentidos o mais primitivo, com a capacidade de provocar desejo ou repulsa. Daí que a memória olfativa é fundamental para o equilíbrio mental. Por exemplo: bebês identificam suas mães pelo cheiro. Os animais, em geral, identificam presas e ameaças, e encontram fêmeas no cio pelo cheiro. Incêndios, vazamento de gás, comida queimada, identificamos pelo cheiro. As pessoas têm cheiros característicos, assim como as cidades, as casas, as circunstâncias das nossas vidas. 

Um dos romances mais impressionantes é O Perfume – História de um Assassino, do escritor alemão Patrick Süskind, sucesso mundial, publicado pela primeira vez em 1985. O livro conta a história de Jean-Baptiste Grenouille, um homem que possui um olfato extraordinário, tornando-o capaz de se orientar apenas pelos cheiros. Mas ele não possui odor próprio, o que faz dele um fantasma. “O odor é a essência, e o que não tem essência não existe” – observa Süskind. 

A fim de ser notado pelos outros, Grenouille se torna perfumista e cria essências que utiliza de acordo com as circunstâncias. Jovem ainda, Grenouille encontra uma moça com cheiro absolutamente diferente de todos os perfumes que ele guardava na memória e se torna obcecado por apoderar-se desse odor. Então assassina-a e captura o cheiro do corpo da jovem por meio de técnicas de perfumista. Mas ele quer o perfume perfeito e mata mais 26 jovens mulheres para captar suas essências. 

Cria, afinal, o perfume. Mas, frustrado por ele mesmo não ter cheiro, banha-se com o frasco do perfume perfeito e a visão que tem dele um grupo de prostitutas e ladrões reunidos em uma praça é de um deus sedutor, tão sedutor que é devorado até o último pedacinho pela escória de Paris. 

Cheiros são como a espinha dorsal da nossa vida. Vejam o meu caso. Eu devia ter quatro ou cinco anos quando isso aconteceu. Minha casa, que ficava na esquina das ruas Iracema Carvão Nunes e Eliezer Levy, ao lado do Colégio Amapaense, em Macapá/AP, era frequentada por algumas adolescentes, amiguinhas das minhas irmãs, e uma delas lembrava um arbusto ruivo, uma deusa, como são todas as adolescentes. 

O banheiro ficava no quintal, tinha meio tambor de querosene de aviação que servia como caixa d’água e tomávamos banho despejando água na cabeça com uma lata de leite Ninho ou de óleo. Um dia, a adolescente ruiva (talvez nem fosse ruiva, mas lembro-a assim) foi dar banho em mim e tomar banho também. 

Quando ela tirou a roupa o planeta parou, ou as coisas começaram a andar rápido como a luz. Meu rosto ficou quase da altura do púbis dela, um sol. E então senti o perfume das virgens ruivas. Trata-se de um cheiro de liberdade. Liberdade total. Hoje, quando sinto esse cheiro, eu me transformo em leão de asas, e diante de mim abrem-se inumeráveis possibilidades. É algo tão bom que podemos senti-lo a qualquer momento, basta que tenhamos o gatilho para isso. 

Os cheiros ensinam muitas coisas. Uma delas é que a matéria é apenas uma ilusão, criada não somente pela ótica, o tato, a audição, o paladar, mas, principalmente, pelo cheiro, pois que os cheiros contêm todos os demais sentidos, e eles só existem na memória. 

O perfume das virgens ruivas é azul, é como o primeiro beijo, como ouvir Amira Willighagen, aos 9 anos, cantando Ave Maria, de  Charles Gounod e Johann Sebastian Bach, comer ostra com Antarctica enevoada às 9 horas, em Salinas/PA, no verão. 

Há cheiros que nunca os esquecemos, porque enobrecem a nossa vida, como o cheiro da casa dos meus pais, do feijão com arroz da minha mãe, da minha filha quando era bebê, da minha amada, o cheiro das madrugadas prenhes do perfume dos jasmineiros, em Macapá, de rosas colombianas, do Rio Amazonas.

Esses cheiros são como certos poemas, certas personagens de ficção, certos contos e romances que escrevemos sozinhos, de madrugada, como deuses criando mundos. Aí, dou uma pincelada de azul aqui e ali, como acho que faz Olivar Cunha ao criar seus mundos. São essas reminiscências, inclusive de vidas passadas, que nos conduzem. Certa vez Olivar Cunha disse que “a vida é um tesão”. Sim, é, por causa do perfume das virgens ruivas.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Bentinho foi criado debaixo da saia da mãe. Era corno em potencial, sofria a síndrome do ciúme. Flora Thomson-DeVeaux e a identidade carioca

Jessica Rabbit: cada qual alimenta a Capitu que fantasia

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 4 DE JULHO DE 2024 – Bento de Albuquerque Santiago, Bento Santiago, Bentinho ou Dom Casmurro, é o protagonista do romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis. A trama é contada por Bentinho, daí que ninguém sabe se aconteceu realmente ou é fantasia. Ele foi mimado pela mãe viúva, e a gente sabe que meninos criados dessa forma são paus-mandados das mulheres pelo resto da vida, e, talvez por isso, por serem paus-mandados, acabam, paradoxalmente, desenvolvendo também misoginia. 

Em certo momento da vida de Bentinho ele passa a acreditar que sua esposa, Capitu, pôs chifre nele, com seu melhor amigo, Escobar, que morre afogado, apesar de bom nadador. Capitu pare uma criança, Ezequiel. Segundo Bentinho, Ezequiel é uma cópia de Escobar. Ninguém mais no romance acha isso; só ele. Exila Capitu na Suíça e Ezequiel morre na flor da idade. Só restam a Bentinho dois caminhos: suicidar-se ou conviver com os fantasmas do seu passado. Escolhe a crosta de Dom Casmurro. 

Mas o grande interesse dos leitores de Dom Casmurro é Capitu, Maria Capitolina de Pádua Santiago, nada menos que a personagem de ficção mais famosa do Brasil, passando, inclusive, Maria Deodorina da Fé Bittencourt Marins, ou Reinaldo, ou Diadorim, de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. 

Capitu é uma adolescente sensual, que lembra Lolita, de Vladimir Nabokov. Mas uma mulher de personalidade forte, alta, morena, de cabelos grossos e compridos, nariz reto e comprido, boca fina e queixo largo, olhos claros e grandes, “de ressaca, oblíquos e dissimulados”, segundo Bentinho. Olhos de ressaca, o que é isso? Certa vez, banhei-me em Copacabana em mar de ressaca, ou encapelado. Um olhar assim é inquieto e traz à tona um turbilhão interior. Para Bentinho, Capitu era assim. 

Também ele a vê como uma cigana, mulher misteriosa, que olharia o outro de forma indireta, com fingimento. E, no entanto, a gente vê que Capitu não é isso, não é fingida. Há, porém, uma frase fundamental para se entender a trama de Dom Casmurro, proferida pelo próprio: “Capitu era mais mulher do que eu homem”. 

Machado de Assis é considerado pela crítica literária o ponto máximo da literatura brasileira. Creio que a principal coordenada que leva a essa consideração é a poesia. Para mim, poesia é escrever em profundidade. Explico. 

Segundo o historiador Plutarco, por volta de 70 a.C., o general romano Pompeu estava na ilha de Sicília, ao sul da Itália, com a missão de transportar trigo para Roma, que passava por uma crise de abastecimento causada por uma rebelião de escravos. Havia uma tormenta no porto. Naquela época, as limitações tecnológicas tornavam a navegação de alto risco, além dos ataques piratas. Mas diante da situação e do comprometimento de Pompeu com Roma ele se fez ao mar. “Navegar é preciso, viver não é preciso” – proferiu. 

A vida material é finita, mas enquanto a vivemos é preciso navegar, mesmo que haja uma tormenta no porto. É necessário transpor os obstáculos, sejam quais forem. É preciso navegar. Viver não é preciso. Pois que viver é navegar. Isso é poesia. Um corte em profundidade da vida. Assim escrevia Machado de Assis. Além disso, ele tem outros méritos, méritos que o faz emblemático em A IDENTIDADE CARIOCA, romance meu recém-publicado. 

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, e morreu na mesma cidade, que tanto amou, em 29 de setembro de 1908. Nasceu no Morro do Livramento, estudou um pouco, em escolas públicas, e não soube o que foi frequentar uma universidade. Mulato, era filho de um negro e uma portuguesa da ilha de São Miguel. Culto, era leitor inveterado. Escreveu cinco livros de poemas, mais de 600 crônicas, folhetins, fez jornalismo, escreveu crítica literária, 10 peças teatrais, 200 contos e 10 romances. Fundou a Academia Brasileira de Letras (ABL). Foi um cronista do Rio de Janeiro de sua época; um homem do seu tempo. 

Ser um homem do seu tempo é viver intensamente seu tempo. No caso do escritor, ele escreve sobre seu tempo. Por exemplo: pode-se dizer que Luiz Alfredo Garcia-Roza é um homem do seu tempo. Apenas o Rio de Janeiro de Garcia-Roza não é o de Machado de Assis, nem o gênero. Copacabana, que Roza amava, está toda ela, pulsando, neste século, nos seus thrillers policiais. 

Recentemente, a escritora e podcaster americana Courtney Henning Novak viralizou nas redes sociais. Ela lançou um desafio pessoal de ler um livro de cada país do planeta. Do Brasil, escolheu Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado, e escreveu, antes mesmo de terminar a leitura: “Preciso ter uma conversa com o pessoal do Brasil. Por que não me avisaram antes que este é o melhor livro já escrito? O que vou fazer do resto da minha vida depois que terminá-lo?” 

A tradução lida por Novak é da também americana Flora Thompson-DeVeax, que vive no Rio de Janeiro. Conheceu a obra de Machado de Assis na Princeton University, onde estudou língua portuguesa. “Acho que para qualquer pessoa que se propõe a estudar o Brasil chega uma hora que tem que encarar o Machado” – esclarece Flora, para quem Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, “me pareceu absurdamente moderno, hilário, surpreendente a cada página. Não consegui conceber por que o autor não era mais conhecido”. 

Ela passou cinco anos traduzindo o livro, entendendo o significado de certas palavras, a época em que o livro se passa, a geografia e o meio social, a história do Brasil, a identidade carioca. Hoje, Flora é daquelas cariocas como eu, que morou na cidade e se apaixonou por ela. Não porque a cidade é maravilhosa, linda, esplêndida, mas, principalmente, porque contamos, Flora e eu, com o terceiro olho bem aberto, aquele que proporciona a visão em corte vertical.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Cor de jambo maduro, ruiva e de olhos verdes

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 2 DE JULHO DE 2024 – Já ocorreu várias vezes comigo de reler um conto que escrevi há anos e achá-lo tão bom a ponto de ficar em dúvida se fui eu mesmo que o escrevi. Isso acontece também com personagens. Há uma personagem de ficção que vive em dois ou três romances meus. Sei que é ela por algumas características. Tem pele cor de jambo maduro e é ruiva, e seus cabelos são como uma cascata de fogo que lhe alcançam os quadris de potra. E tem os olhos como duas esmeraldas. 

Já notei, também, que algumas personagens a quem dou à luz gostam de música. Ou nem são elas que gostam de ouvir música, mas é a música que está presente na trama, como se fosse parte natural de determinadas sequências dramáticas. E mais: é comum as pessoas confundirem o autor com personagens de ficção; quanto menos entendem de literatura, mais acham que aquele assassino ou aquele estuprador é o próprio autor do livro. Se assim fosse, quantos escritores estariam atrás das grades! 

Obviamente que ser escritor tem suas pequenas vantagens. Mas são vantagens puramente psicológicas. Uma gracinha que fazemos de alguém real, um soco na boca de um deputado-rachadinha, que levou 24 mil reais de um assessor, e até mesmo exterminar um corrupto com um lápis, fincando o lápis no olho dele, até atingir o cérebro. Ou degolando-o com uma katana. Mas é tudo ficção. 

Assim é também com as beldades que criamos. Não as comemos, no sentido de levá-las para a cama. Apenas as criamos. Até porque normalmente já temos nossa gata na vida real. E depois, a vida real é muito diferente da vida dentro de um livro de ficção. No livro, a coisa é intensa. Intensa como andar a velocidade da luz, ou escalar o Monte Roraima, voar lá de cima de asa delta e pousar em Copacabana. Ou levantar-se às cinco horas só para ver leões caminhando na praia ao alvorecer. 

De qualquer forma, no meu romance O CLUBE DOS ONIPOTENTES, thriller político-policial, há uma dessas sequências que escrevi, porém como se estivesse em transe, porque, lendo-a, sinto-me como se estivesse conhecendo aquela personagem naquele momento; inclusive sentindo-me invadir a alcova alheia. Bom, agora que cheguei até aqui... 

O SOM de respiração ofegante e odor de suor enchiam o quarto. Alesão media 1,67 metro e pesava 49 quilos. Chegaram ao apartamento de Alex antes das 22 horas, pois, naquela noite, deixaram cedo a Trópico. Começaram bebericando Mateus Rosé, mordiscando queijo do reino e ouvindo Dámaso Pérez Prado, começando por Patrícia. Alesão ensaiou alguns passos de mambo. Beijaram-se. Um beijo interminável. Ele lambeu o rosto dela. 

– Vou ao banheiro – ela disse. 

– Vou pegar toalha e um roupão para você! 

Enquanto ela tomava banho ele continuou bebericando vinho e mordiscando queijo do reino, ouvindo o japonês Akira Miyagawa, que combinou a Quinta Sinfonia de Beethoven com o Mambo Número Cinco, de Pérez Prado. Havia selecionado várias gravações do Rei do Mambo; a próxima foi April in Portugal, também chamada The Whisp'ring Serenade, conhecida no Brasil como o fado Coimbra, com música de Raul Ferrão e letra de José Galhardo, de 1947, um dos grandes sucessos da portuguesa Amália Rodrigues. A letra na versão inglesa foi escrita por Jimmy Kennedy. Aí, a seleção pulou para Sirtaki, ou Zorba, o Grego, de Mikis Theodorakis. Sempre que ouvia essa música entrava imediatamente no romance Zorba, o Grego (1946), de Nikos Kazantzakis, e também no filme homônimo (1964), dirigido por Michael Cacoyannis, com Anthony Quinn. A canção seguinte foi o Concerto de Aranjuez (1939), para violão e orquestra, do compositor espanhol Joaquín Rodrigo, durante a qual ela entrou no quarto, dentro do alvo roupão, descalça. Pôs-se entre a cadeira onde ele se sentara e a cama, e deixou o roupão deslizar pelo seu corpo. Reinaldo já vira toda espécie de beldade, mas aquela superava tudo o que já experimentara. Degustou, devagarinho, a visão, a fragrância das magnólias, o cantar dos pássaros e o jorrar dos chafarizes na primavera, não dos jardins do Palácio Real de Aranjuez, mas a visão da cafuza ruiva. O concerto estava no segundo movimento, Adagio, esculpido em melodia suave e ritmo lento, uma conversa, tão íntima que só poderia se desenrolar na alcova, entre violão, fagote, oboé e trompa. Ela tomara o cuidado de não molhar os cabelos, que deslizavam como uma cascata de fogo, lambendo-a até a cintura. Tinha os olhos enormes, verde-água, nariz ligeiramente arrebitado, rosto oval e simétrico, e lábios grandes e carnudos. Os seios erguiam-se volumosos, sem serem excessivos, firmes como colunas de mármore, lembrando pequenos vulcões, pois as auréolas dos mamilos eram enormes e rosadas. O umbigo era uma pequena fenda na barriga de tábua e o púbis, ruivo como o sol se pondo. Do púbis, deslizou o olhar ao longo das pernas de jambo maduro, até os graciosos pés, com unhas pintadas de rosa. Ela deu um giro de 180 graus. A cascata de fogo cobria-lhe parcialmente as costas e descia-lhe até as ancas de potra, como um triunfo do escultor renascentista Gian Lorenzo Bernini. Ele a conduziu para a cama e pôs-se a beijá-la. Sentia-se cair, lentamente, em um abismo. O adagio agonizava. Sentiam-se agora em outro plano da vida, onde a sensação psicológica do tempo não existia. Estaria em que mundo, se o espaço-tempo parara de existir? As sensações eram, agora, mais sublimes do que as dos cinco sentidos – visão, tato, olfato, audição, paladar e o sexto sentido se fundiram em um só sentido, fluindo para algum lugar inexistente na expansão infinita do Universo. Sentia, como descreveu Ernest Hemingway em Por Quem os Sinos Dobram, um latejar da Terra no espaço, uma vibração apenas no início. Desceu para os vulcões; ora sugava colostro de um, ora de outro, ávido como um bebê que já se sente senhor de si, isto é, que já sabe o caminho das pedras, ou seja, dos seios. Ela começou a gemer baixinho. Sonhava os sonhos mais ousados. Ele se demorou na barriga. 

Ouvia-se, agora, o Concerto Para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart. Da barriga, ele desceu para os pezinhos, fitou-os, beijou-os, lambeu-os, e foi subindo, vagarosamente, até chegar ao púbis, onde imergiu em um mergulho paciente, embora a paciência fosse tensa, naquele ponto em que o equilíbrio se desequilibra e surge o caos do prazer. Ela gemia alto, agora, a cada sugada mais forte dele, imerso no cheiro das virgens ruivas, de rosas esmigalhadas nas fábricas de perfume, misturado ao odor dos jasmineiros nas noites de agosto, em Macapá, cidade da Amazônia atlântica seccionada pela Linha Imaginária do Equador, e misturado ao sabor de Mateus Rosé, à visão do mar de cobalto de Angra dos Reis e à abertura, allegro, do Concerto Para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart. O primeiro movimento foi um voo vertiginoso até a borda do Universo, quando ele a encaixou, sem pressioná-la, sem pressa, ao ritmo do segundo movimento, romanza, sereno, sonhador, um diálogo entre o piano e a orquestra, um contraponto, a intimidade que descobrimos em certas composições dos Beatles. O hímen rompeu-se no início do rondó, com a primavera ocupando todo o éter da consciência. Estavam os dois, agora, cavalgando um dragão de elétrons, além das galáxias, onde só se sentia o azul da eternidade. Os gemidos dela enchiam o quarto, muito, muito mais sublimes do que a música de Mozart, durante toda uma eternidade, até se diluírem, quase em choro, em silêncio. Ele descansou um pouco. Depois a pôs de lado e penetrou-a de novo, instruiu-a a ficar numa posição em que ele pudesse cavalgá-la, seguro nas ancas esculpidas por Benini, ele, o próprio dragão, leão de asas, relinchando como garanhão, um lamento alto de tanto prazer, batizando-a para sempre, iniciando-a em outra fase da sua vida, pois acabara de promover mudanças na sua roupa carnal, a despertar novos sentidos, não nominados pela ciência, mas que sabemos, pela intuição, que existem. O sol já se erguera quando, exaustos, adormeceram profundamente. 

Acordaram às 10 horas da manhã e ela estava ainda mais linda do que na noite anterior. Levantaram-se e foram para o banheiro, onde demoraram-se, e só foram fazer o desjejum, que ele preparou, lá pelo meio-dia. Nesse meio tempo, ela projetou, indiretamente, todo um noivado e casamento; ele era capaz de ouvir, enquanto comiam a macarronada que ele preparou, a Marcha Nupcial de Mendelssohn, da peça Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, e a de Wagner, do coro nupcial da ópera Lohengrin. No meio da tarde, ela se foi, ao som da Tocata e Fuga em Ré Menor, de Johann Sebastian Bach.