RAY CUNHA
BRASÍLIA, 2 DE JULHO DE 2024 – Já
ocorreu várias vezes comigo de reler um conto que escrevi há anos e achá-lo tão
bom a ponto de ficar em dúvida se fui eu mesmo que o escrevi. Isso acontece
também com personagens. Há uma personagem de ficção que vive em dois ou três
romances meus. Sei que é ela por algumas características. Tem pele cor de jambo
maduro e é ruiva, e seus cabelos são como uma cascata de fogo que lhe alcançam
os quadris de potra. E tem os olhos como duas esmeraldas.
Já notei,
também, que algumas personagens a quem dou à luz gostam de música. Ou nem são
elas que gostam de ouvir música, mas é a música que está presente na trama,
como se fosse parte natural de determinadas sequências dramáticas. E mais: é
comum as pessoas confundirem o autor com personagens de ficção; quanto menos entendem
de literatura, mais acham que aquele assassino ou aquele estuprador é o próprio
autor do livro. Se assim fosse, quantos escritores estariam atrás das grades!
Obviamente que
ser escritor tem suas pequenas vantagens. Mas são vantagens puramente
psicológicas. Uma gracinha que fazemos de alguém real, um soco na boca de um
deputado-rachadinha, que levou 24 mil reais de um assessor, e até mesmo
exterminar um corrupto com um lápis, fincando o lápis no olho dele, até atingir
o cérebro. Ou degolando-o com uma katana. Mas é tudo ficção.
Assim é também
com as beldades que criamos. Não as comemos, no sentido de levá-las para a
cama. Apenas as criamos. Até porque normalmente já temos nossa gata na vida
real. E depois, a vida real é muito diferente da vida dentro de um livro de
ficção. No livro, a coisa é intensa. Intensa como andar a velocidade da luz, ou
escalar o Monte Roraima, voar lá de cima de asa delta e pousar em Copacabana.
Ou levantar-se às cinco horas só para ver leões caminhando na praia ao
alvorecer.
De qualquer
forma, no meu romance O CLUBE DOS ONIPOTENTES, thriller político-policial, há
uma dessas sequências que escrevi, porém como se estivesse em transe, porque,
lendo-a, sinto-me como se estivesse conhecendo aquela personagem naquele
momento; inclusive sentindo-me invadir a alcova alheia. Bom, agora que cheguei até
aqui...
O SOM de
respiração ofegante e odor de suor enchiam o quarto. Alesão media 1,67 metro e
pesava 49 quilos. Chegaram ao apartamento de Alex antes das 22 horas, pois,
naquela noite, deixaram cedo a Trópico. Começaram bebericando Mateus
Rosé, mordiscando queijo do reino e ouvindo Dámaso Pérez Prado, começando por Patrícia.
Alesão ensaiou alguns passos de mambo. Beijaram-se. Um beijo interminável. Ele
lambeu o rosto dela.
– Vou ao
banheiro – ela disse.
– Vou pegar
toalha e um roupão para você!
Enquanto ela
tomava banho ele continuou bebericando vinho e mordiscando queijo do reino,
ouvindo o japonês Akira Miyagawa, que combinou a Quinta Sinfonia de
Beethoven com o Mambo Número Cinco, de Pérez Prado. Havia selecionado
várias gravações do Rei do Mambo; a próxima foi April in Portugal,
também chamada The Whisp'ring Serenade, conhecida no Brasil como o fado Coimbra,
com música de Raul Ferrão e letra de José Galhardo, de 1947, um dos grandes
sucessos da portuguesa Amália Rodrigues. A letra na versão inglesa foi escrita
por Jimmy Kennedy. Aí, a seleção pulou para Sirtaki, ou Zorba, o
Grego, de Mikis Theodorakis. Sempre que ouvia essa música entrava
imediatamente no romance Zorba, o Grego (1946), de Nikos Kazantzakis, e
também no filme homônimo (1964), dirigido por Michael Cacoyannis, com Anthony
Quinn. A canção seguinte foi o Concerto de Aranjuez (1939), para violão
e orquestra, do compositor espanhol Joaquín Rodrigo, durante a qual ela entrou
no quarto, dentro do alvo roupão, descalça. Pôs-se entre a cadeira onde ele se
sentara e a cama, e deixou o roupão deslizar pelo seu corpo. Reinaldo já vira
toda espécie de beldade, mas aquela superava tudo o que já experimentara.
Degustou, devagarinho, a visão, a fragrância das magnólias, o cantar dos
pássaros e o jorrar dos chafarizes na primavera, não dos jardins do Palácio
Real de Aranjuez, mas a visão da cafuza ruiva. O concerto estava no segundo
movimento, Adagio, esculpido em melodia suave e ritmo lento, uma conversa, tão
íntima que só poderia se desenrolar na alcova, entre violão, fagote, oboé e
trompa. Ela tomara o cuidado de não molhar os cabelos, que deslizavam como uma
cascata de fogo, lambendo-a até a cintura. Tinha os olhos enormes, verde-água,
nariz ligeiramente arrebitado, rosto oval e simétrico, e lábios grandes e
carnudos. Os seios erguiam-se volumosos, sem serem excessivos, firmes como
colunas de mármore, lembrando pequenos vulcões, pois as auréolas dos mamilos
eram enormes e rosadas. O umbigo era uma pequena fenda na barriga de tábua e o
púbis, ruivo como o sol se pondo. Do púbis, deslizou o olhar ao longo das
pernas de jambo maduro, até os graciosos pés, com unhas pintadas de rosa. Ela
deu um giro de 180 graus. A cascata de fogo cobria-lhe parcialmente as costas e
descia-lhe até as ancas de potra, como um triunfo do escultor renascentista
Gian Lorenzo Bernini. Ele a conduziu para a cama e pôs-se a beijá-la. Sentia-se
cair, lentamente, em um abismo. O adagio agonizava. Sentiam-se agora em outro
plano da vida, onde a sensação psicológica do tempo não existia. Estaria em que
mundo, se o espaço-tempo parara de existir? As sensações eram, agora, mais
sublimes do que as dos cinco sentidos – visão, tato, olfato, audição, paladar e
o sexto sentido se fundiram em um só sentido, fluindo para algum lugar
inexistente na expansão infinita do Universo. Sentia, como descreveu Ernest
Hemingway em Por Quem os Sinos Dobram, um latejar da Terra no espaço,
uma vibração apenas no início. Desceu para os vulcões; ora sugava colostro de
um, ora de outro, ávido como um bebê que já se sente senhor de si, isto é, que
já sabe o caminho das pedras, ou seja, dos seios. Ela começou a gemer baixinho.
Sonhava os sonhos mais ousados. Ele se demorou na barriga.
Ouvia-se,
agora, o Concerto Para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart. Da
barriga, ele desceu para os pezinhos, fitou-os, beijou-os, lambeu-os, e foi
subindo, vagarosamente, até chegar ao púbis, onde imergiu em um mergulho
paciente, embora a paciência fosse tensa, naquele ponto em que o equilíbrio se
desequilibra e surge o caos do prazer. Ela gemia alto, agora, a cada sugada
mais forte dele, imerso no cheiro das virgens ruivas, de rosas esmigalhadas nas
fábricas de perfume, misturado ao odor dos jasmineiros nas noites de agosto, em
Macapá, cidade da Amazônia atlântica seccionada pela Linha Imaginária do
Equador, e misturado ao sabor de Mateus Rosé, à visão do mar de cobalto de
Angra dos Reis e à abertura, allegro, do Concerto Para Piano e Orquestra, em
Ré Menor, de Mozart. O primeiro movimento foi um voo vertiginoso até a
borda do Universo, quando ele a encaixou, sem pressioná-la, sem pressa, ao
ritmo do segundo movimento, romanza, sereno, sonhador, um diálogo entre o piano
e a orquestra, um contraponto, a intimidade que descobrimos em certas
composições dos Beatles. O hímen rompeu-se no início do rondó, com a primavera
ocupando todo o éter da consciência. Estavam os dois, agora, cavalgando um
dragão de elétrons, além das galáxias, onde só se sentia o azul da eternidade.
Os gemidos dela enchiam o quarto, muito, muito mais sublimes do que a música de
Mozart, durante toda uma eternidade, até se diluírem, quase em choro, em
silêncio. Ele descansou um pouco. Depois a pôs de lado e penetrou-a de novo,
instruiu-a a ficar numa posição em que ele pudesse cavalgá-la, seguro nas ancas
esculpidas por Benini, ele, o próprio dragão, leão de asas, relinchando como
garanhão, um lamento alto de tanto prazer, batizando-a para sempre, iniciando-a
em outra fase da sua vida, pois acabara de promover mudanças na sua roupa
carnal, a despertar novos sentidos, não nominados pela ciência, mas que
sabemos, pela intuição, que existem. O sol já se erguera quando, exaustos,
adormeceram profundamente.
Acordaram às
10 horas da manhã e ela estava ainda mais linda do que na noite anterior.
Levantaram-se e foram para o banheiro, onde demoraram-se, e só foram fazer o
desjejum, que ele preparou, lá pelo meio-dia. Nesse meio tempo, ela projetou,
indiretamente, todo um noivado e casamento; ele era capaz de ouvir, enquanto
comiam a macarronada que ele preparou, a Marcha Nupcial de Mendelssohn,
da peça Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, e a de
Wagner, do coro nupcial da ópera Lohengrin. No meio da tarde, ela se
foi, ao som da Tocata e Fuga em Ré Menor, de Johann Sebastian Bach.