terça-feira, 6 de agosto de 2024

O terceiro olho. O meu se abriu aos 70 anos

Ray Cunha: o terceiro olho começa a se abrir aos 70 anos

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 6 DE AGOSTO DE 2024 – Um de meus amigos de adolescência e juventude mais inesquecíveis foi Gilberto Araújo, o Betão, filho de uma conhecida professora de filosofia do antigo Instituto de Educação do Território Federal do Amapá (IETA), Isaías Araújo, e de Alberto Araújo. Betão me foi apresentado pelo poeta Joy Edson (José Edson dos Santos). Na época, anos 1960, tínhamos, os três, entre 15 e 16 anos. 

Betão morava no Hotel Santo Antônio, na Avenida Coriolano Jucá 485, Centro de Macapá. Não sei por que ele morava lá. É o mesmo hotel onde vivia o professor Antônio Munhoz Lopes, um dos mais conhecidos intelectuais de Macapá. 

Às vezes, o Joy e eu passávamos a tarde inteira fumando e conversando aquele tipo de conversa de adolescente com o Betão, no quarto dele. Cigarros. Nunca fui chegado a maconha. Ele lia muito. Media mais de 1,80 metro e pesava uns 90 quilos. Era uma espécie de Brad Pitt de Macapá. Mulheres casadas se ofereciam para ele. Betão se interessava por duas coisas: ler e beber. Era dipsomaníaco. 

Quanto às mulheres, quando as procurava, era porque queria beber. E isso durava até elas não suportarem mais o que lhes parecia um deus grego. 

Betão foi uma espécie de bússola para minhas leituras. Comecei a ler aos 5 anos, gibis e revistas do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, e depois comecei a atacar a estante dele, principalmente escritores brasileiros e americanos, ficção e ensaio. Depois, aos 14 anos, peguei algumas dicas do poeta Isnard Brandão Lima Filho e, a seguir, do Betão. 

Ele só me indicava monstros da literatura. Um dia, disse-me que eu precisava ler O Apanhador no Campo de Centeio, do nova-iorquino Jerome David Salinger, conhecido como J. D. Salinger. 

No primeiro semestre de 1972, aos 17 anos, peguei um barco para Belém, consegui carona em um caminhão para Brasília, onde peguei um ônibus para o Rio de Janeiro. Um dia, fui a uma livraria em Niterói, daquelas com serviço de bar, comprei O Apanhador no Campo de Centeio, pedi uma Bohemia e comecei a ler o livro. Inesquecível. Era assim que o Betão entrava na minha memória. 

Em 1982, comecei a fazer graduação em Jornalismo na Universidade Federal do Pará (UFPA) e o Betão, Pedagogia. O fato é que o Betão não sabia o que queria, exceto embebedar-se. Belo, brilhante e uma verdadeira granada. Impunha medo pelo seu tamanho, mas era incapaz de se defender em uma briga de rua. E era pesado. 

Certa vez, passamos um fim de semana bebendo Pitú e no domingo à noite, já na casa onde eu morava, ele, buscando anestesiar-se, encheu um copo americano de Pitú até a boca e o entornou. A seguir, caiu desmaiado. Nessas alturas chegou a pessoa com quem eu dividia a casa e me ajudou a pôr o Betão em uma rede. Foi uma mão de obra. 

Um dia, batíamos papo e ele me disse que a sensatez só chegaria a nós aos 60 anos. Morreu de overdose de álcool, uma noite, em uma calçada de Belém, em plena juventude. 

Em 1987, terminei minha graduação e decidi ir para o Rio. Fui muito feliz no Rio, dos 17 aos 20 anos, de 1972 a 1974. Ia, toda semana, ao teatro, frequentava cinematecas, museus, via grandes shows de rock, como Santana, os programas de auditório gravados no Cassino da Urca, da TV Tupi, e, pela primeira vez na minha vida, uma orquestra, a Orquestra Sinfônica Nacional, no Teatro Fênix, da TV Globo, interpretando Sagração da Primavera, de Ígor Stravinski. 

Só que dei uma parada em Brasília; hospedei-me na casa do jornalista e guru Walmir Botelho e da minha querida amiga Deury Farias. Na época, ele estava assumindo a diretoria de redação do Correio do Brasil e me convidou a ajudá-lo na edição da capa do jornal, com a promessa de que iria conseguir uma vaga para mim no Jornal do Comércio do Rio. Aceitei. 

Não demorou e conheci minha esposa, Josiane Souza Moreira Cunha, de Macapá, mas morando em Brasília. Em 1990, nasceu minha filha, uma princesa com nome de flor, Iasmim Moreira Cunha Morya. Quando eu conheci minha gata, então com 19 anos, eu tinha 33 anos, bebia quase todos os dias e, às vezes, amanhecia bebendo. 

Lembro-me da frase do Betão: a gente só começa a ter sensatez, a ver luz na nossa consciência, aos 60 anos. O Betão bem que andou atrás, mas nunca encontrou luz. É que ele não teve tempo de fazer a descoberta que eu fiz. 

Na virada do século, em 2000, li o primeiro volume da coleção A Verdade da Vida, do filósofo japonês Masaharo Taniguchi. Foi uma revolução. Aquele livro me mostrou que a verdadeira vida não se passa na matéria densa, mas no plano espiritual. Uma década e meia depois, fiz um curso de Medicina Tradicional Chinesa e comecei a pesquisar os corpos sutis da consciência. Foi aí que descobri o terceiro olho. 

O terceiro olho é o espiritual. Quando o abrimos, começamos a enxergar a vida em nova dimensão, a da profundidade, do agora, da velocidade quântica. Por intuição, eu já vinha vivendo isso nos meus poemas, mas agora, lembrando as palavras do Betão, sei que o que ele procurava era paz de espírito, a harmonia com todos os seres viventes e o todo. 

Volto-me para o passado e me vejo na estrada, em bebedeiras que duravam dias, em papos, inclusive com o Betão, que duravam horas. Apenas procurávamos abrir o terceiro olho. Meu querido amigo, onde ele estiver, já terá aberto, nessas alturas, seu terceiro olho. Inteligente ele é. Eu, a meu modo, creio que encontrei a luz. E nessa jornada tenho conhecido muita gente boa. 

Amanhã, 7 de agosto, completo 70 anos, cercado por pessoas que me amam (sei disso porque sinto), vivas e mortas, aqui, em outras cidades, ou em outros planos. E pulsa em mim a eternidade do agora.

Nenhum comentário:

Postar um comentário