Ray Cunha e Fernando Canto no Aeroporto de Brasília Juscelino Kubitschek (Foto de Sônia Canto - 2024) |
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 29 DE OUTUBRO DE 2024 – Fernando Canto e eu nascemos em 1954. Ele, em 29 de maio; eu, em 7 de agosto. Ele sempre esteve à minha frente. Nossas famílias são oriundas do Baixo Amazonas, no Pará, a dele, de Óbidos, onde nasceu, e a minha, de Belterra. Ele foi criança para Macapá e eu nasci lá. Conhecemo-nos aos 14 anos, quando minha família foi morar no Morro do Sapo, sub-bairro do Laguinho, em uma casa a alguns metros da casa do Fernando.
Na época, 1968, por aí, o Fernando, guitarrista e bastante afinado, já frequentava o meio musical, e eu frequentava a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho e me infiltrava nas rodas do pintor Olivar Cunha, dois anos mais velho do que nós, e pelejava em alguns poemas e crônicas. Acho que o Fernando também.
Em 1971, publiquei, juntamente com os poetas Joy Edson (José Edson dos Santos) e José Montoril, o livro de poemas XARDA MISTURADA. O livro, exceto pelos poemas do Joy Edson, é apenas uma coletânea de poemas adolescentes, de descobertas, mas tínhamos, todos, 17 anos, e isso foi uma coisa histórica em Macapá.
No começo do ano seguinte, ainda com 17 anos, peguei o rio e a estrada, e minha cota de XARDA MISTURADA, e fui parar no Rio de Janeiro. O Fernando Canto foi para Belo Horizonte e frequentou os meios musicais de lá, o pessoal que estava fazendo música.
Em 1975, fui conhecer a família do meu pai, em Manaus, e lá comecei a trabalhar como jornalista, até 1977/1978, quando fui para Belém e comecei a trabalhar em O Liberal. O Olivar Cunha estava morando em Belém, assim como o Isnard e o Fernando, que cursava Ciências Sociais na Universidade Federal do Pará.
Nessa época, o Fernando e eu bebemos bastante e batemos muito papo. Acho que o melhor conto do Fernando é ambientado nessa época, Os Tempos Insanos, que eu chamo de My Friend Mundico.
Voltei para a estrada. Andei para lá e para cá, até 1982, quando minha inquietação baixou, acho que devido ao cansaço. Tinha interrompido meus estudos no quarto ano ginasial, o equivalente ao oitavo ano do ensino fundamental. Fiz o supletivo do então primeiro grau e passei, o supletivo do segundo grau, passei, o vestibular para Jornalismo na Universidade Federal do Pará e passei.
O Fernando tinha se formado e ido para Macapá. Quanto a mim, graduei-me em 1987 e caí fora de Belém. Ia para o Rio, mas parei em Brasília para um papo com o jornalista Walmir Botelho, que me convenceu a ficar em Brasília, onde me encontro até hoje.
Só que em 1996, a convite do Walmir, que era, então, diretor de redação de O Liberal, fui para Belém, trabalhar como repórter no jornal, e encontrei com o Fernando, que assumira o Núcleo de Arte da Universidade Federal do Pará e se tornara contista premiado.
Em 1998, retornei para Brasília. O Fernando foi para Macapá, para ajudar na instalação da Universidade Federal do Amapá. Já era, então, o mais conhecido escritor amapaense. Compositor talentoso, fundara, em 1975, a mais famosa banda do Amapá, o Grupo Pilão, e foi presidente da Universidade de Samba Boêmios do Laguinho. Ainda nos anos 1980, começou a publicar livros de poemas, crônicas e artigos. A academia coroou seu trabalho.
Escreveu, como tese de mestrado e de doutorado, as duas obras de maior fôlego sobre o Amapá: Fortaleza de São José de Macapá – Vertentes discursivas e as cartas dos construtores e Literatura das pedras – A Fortaleza de São José de Macapá como locus das identidades amapaenses. Em 2022, assumiu a presidência da Academia Amapaense de Letras (AAL).
Aqui e ali vou a Macapá, onde sempre tive encontro marcado com Fernando Canto. Não consigo imaginar Macapá sem ele. Uma das vezes que estive lá, de 11 a 16 de janeiro de 2022, foi uma grande farra. O Fernando e eu estivemos juntos quase o tempo todo, vagabundando por toda a orla, até o Curiaú, e parando em restaurantes e bares da cidade. Na companhia do Fernando sinto a velha sensação de aventura, de novas possibilidades, de coisa nova.
A realidade é infinita como a própria vida. Cada qual tem a sua própria realidade, assim como cada circunstância e cada local e horário têm realidade específica, de modo que a realidade é um labirinto infinito em sucessão e variação. A sensação de que só há uma realidade é que só nos encontramos em um determinado ponto desse labirinto e em determinado momento, de modo que aquele ponto e aquele momento criam a ilusão de que só há aquela realidade.
De certa forma, isso se parece com a observação do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), de que só é possível chegar ao entendimento ao superar as próprias circunstâncias, que estão, por sua vez, em permanente processo de mudança: “O homem é o homem e a sua circunstância”. Acho que, em suma, esta foi a conversa que tive com Fernando Canto, durante os quatro dias em que estive em Macapá, ora a bordo do carrão tipo James Bond do Fernando, ora em bares, ora ao telefone.
Fui à Macapá para ver minha irmã Linda, mas, confesso, fiquei mais com o Fernando Canto. É que sempre tivemos muita coisa para conversar. Coisas que nunca terminam. O Fernando é meu amigo com quem viajo mais fundo, pois conversamos sobre tudo. Batemos muito papo durante esses poucos dias, aproveitando bastante o tempo.
O Fernando me disse, então, que estava às voltas com seu romance. Vinha tentando escrever esse romance já há algum tempo. O problema é que ele ainda não havia encontrado a técnica certa para avançar. Estava escrevendo o livro linearmente. Aconselhei-o a não se preocupar com a linearidade, ir escrevendo os capítulos sempre que surgisse um gancho e só depois que sentisse que havia escrito tudo o que precisava escrever é que ordenaria os capítulos. Ele respirou aliviado. Os originais do que ele escreveu deve estar na biblioteca dele. Assim como sua pinacoteca. Na sua casa, há o maior acervo de trabalhos de Olivar Cunha.
Eu me sinto personagem de ficção do Fernando, o Mundico dos Tempos Insanos, conto publicado inicialmente no livro O Bálsamo e Outros Contos Insanos, pela Editora da Universidade Federal do Pará, em 1995.
“Como vai, seu puto? Espero encontrar você como sempre, lúcido e saudável. Eu estou indo, me arrastando neste vale de adrenalina, sempre pensando na morte, nas coisas que deixei de fazer e querendo-e-não-querendo me matar. É que os acontecimentos às vezes me induzem a esse desatino.
“Mesmo sem tempo para escrever e meio surdo pelo barulho vindo lá de fora, hoje, enfim, resolvi iniciar esta e lhe contar o que está acontecendo, talvez como registro deste tempo insano. Olha, é difícil para mim falar de tantas agruras num lugar onde tudo é inopinado, como lâmina a se movimentar no escuro e a cortar meu coração cheio de saudade. Uma coisa, entretanto, posso garantir: o velho coração é duro para com as coisas duras. Eu aprendi a domá-lo e a dosar seu líquido nas circunstâncias mais terríveis, graças aquilo de que sempre debochavas. O coração ganha forças misteriosas quando é tempo da Grande Reverência, do ajoelhar contrito do nosso sofrido povo. É que por aqui os dias passam como se andássemos de mãos atadas em uma estrada cheia de buracos, sob os olhares vigilantes de rottweilers.
“Lembra-se do Círio, my friend? Da procissão que sacaneavas imitando o barulho de foguetes subindo e explodindo? Ah, vê-lo e participar do seu clima são as únicas alegrias que tenho e que me comovem, pois é indizível o fervor e a fé quando a Santa passa no seu andor iluminado. Faço minhas preces e comungo das aspirações do povo, mas não sou mais um sentimental. Hoje isso é luxo, coisa do passado. O que existe mesmo é um grande sentimento de ira coletiva escamoteada por todos. Um dia falarei a você sobre essas coisas.
“Mundico, como o Círio mudou! E nós com ele. Pudera! O tempo passa e a gente só espera o fim da vida – o último objetivo racional e grande referência da existência.”
Comentário: Para o personagem narrador tempos insanos quer dizer tempos de desencanto, de cansaço. De muito esforço para obter pouca coisa. Talvez o narrador sinta saudade do Mundico, pois quando os dois se encontram há sempre bebida, comida e papo interminável, ou seja, o prazer de descobertas infinitas.
Falar nisso, voltei a comentar com o Fernando, no nosso último encontro, que namorei sua irmã, a Savina, por pouco tempo. Já havia comentado isso com ele, mas ele havia esquecido. Talvez tenha sido bom a Savina e eu não termos namorado por muito tempo, pois, assim, só houve tempo para sentirmos o perfume das flores na brisa do Trópico Úmido. Só houve suavidade no nosso relacionamento. Não houve tempo para mais nada, pois logo sumi no meu labirinto, e ela, como os beija-flores, continuou seu voo, atraída pelos jasmineiros e as orquídeas.
“Mund, parece que estou vendo a tua cara irônica, cheia de deboche. Mas, porra, eu creio na pós-vida, principalmente depois das notícias sobre as últimas descobertas científicas que aqui chegam para mim clandestinas. Elas vêm para dirimir minhas dúvidas e proporcionar algumas certezas, tirar meus pensamentos doentios de suicídio. Ora, como qualquer imbecil que crê, procuro umas mil respostas para poucas perguntas quase nunca formuladas – Oh, drama da existência.”
O narrador é um personagem de ficção, é claro, e os personagens de ficção, especialmente o narrador, mantêm sempre alguma intimidade com o criador, de modo que se o narrador dos Tempos Insanos influenciou o Fernando, notei, no nosso último encontro, que o Fernando cada vez mais entende o que é a vida, que a vida é infinita, que a matéria é o estado mais primitivo da vida e que há vários planos, portais, cada vez mais sutis. Acho que já disse isso, mas gostei de repetir.
“Já é tarde, my friend. Não posso garantir que esta carta chegue em suas mãos, mas, amanhã, eu prometo. Prometo: continuarei a lhe”.
E o conto continua. É longo.
Hoje à tarde, Macapá esteve imersa no perfume dos jasmineiros chorando, e ficará assim para sempre. Fernando Canto foi para o Azul, o Éter. Talvez, a estas horas, esteja batendo papo com outros escritores no Quartinho da Casa Amarela. Ele já sabia que a verdadeira vida se passa em um plano mais sutil do que o da matéria, e já sabia voar na luz.
Nossa passagem aqui neste planeta é fugaz. Recebemos uma roupa espacial apropriada para suportar a atmosfera terráquea durante certo tempo, até que a roupa sofra um defeito. Nada é por acaso. Tudo tem seu tempo. Voltamos em outra roupa, até que o espírito, que é o verdadeiro eu, se ilumina, isto é, compreende o que é a verdadeira vida, e ascensione. Aqui, só aprendemos a amar.
Acredito, querido, que cumpriste bem tua missão, pois o que fizeste senão amar?
Jamais eu li e jamais lerei um texto tão primoroso, e ao mesmo tempo tão profundo e profundamente suave, sobre alguém que partiu deste mundo “para o Azul, o Éter…” Uma mensagem sublime, de poeta para poeta, sobre a Morte, o desaparecimento desta Vida.
ResponderExcluirViva, Fernando Canto. Para sempre em nossos corações.