Fernando Canto e Ray Cunha: a vida é uma grande farra
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 2 DE DEZEMBRO DE 2024 – Até a virada do milênio, Brasília era uma cidade do interior. Quando cheguei, aqui, em 1987, ainda estava em construção. Juscelino Kubitscheck começou a construí-la e Joaquim Roriz terminou a obra. Até os anos 1990, se precisássemos de algum produto sofisticado, tínhamos que aguardar uma semana até chegar de São Paulo. Brasília era o quintal de São Paulo.
Naquela época, nos feriadões, a cidade ficava parecendo um cemitério. Grande parte da população se mandava para suas cidades natais, especialmente no litoral. O brasiliense era chamado de candango, aquele que veio para construir a cidade e ficou. Não havia, ainda, muitos brasilienses. A população vivia em colônias. Colônia dos cariocas, dos mineiros, dos goianos, dos paulistas, dos gaúchos etc. Havia poucos amazônidas. Amapaenses, então, eram raros. Quando eu me apresentava como amapaense virava atração de circo.
Lembro que na época escritores, intelectuais e jornalistas tentavam criar uma identidade brasiliense, identificando, como elementos, por exemplo, rock and roll, “véio”. Artistas e agitadores culturais achavam que já havia uma literatura brasiliense. Mas Brasília não tinha identidade, ainda.
Hoje, Brasília já é a terceira maior cidade do país, a terceira praça gastronômica, a mais cara, os brasilienses são a maior parte da população e todo mundo presta atenção na cidade, devido à Praça dos Três Poderes.
Nos meios literários, há quem fique tiririca quando alguém diz que aqui não há escritores dos bons; defendem que aqui há gente tão boa quanto os monstros sagrados do país, mas ainda não surgiu um romance que todo mundo leia e diga: isto é Brasília.
Conheço pessoas que viajam e são atacadas com perguntas: estão roubando muito? A resposta é sempre: sim, o pessoal que vocês mandaram para lá. Fora isso, os brasilienses são como qualquer cidadão desta grande república das bananas. Estão lutando para sobreviver, contra o arrocho fiscal, arrocho salarial, falta de vaga de trabalho, inflação, violência desenfreada e mordaça.
O brasiliense que sai à luta todas as manhãs vive às voltas com carestia e falta de perspectiva, uma longa noite acordado à espera de picanha, desde 2023. Deu para cochilar um pouquinho de 2019 a 2022, mas agora a coisa arrochou para valer.
A identidade é a cultura que recebemos na infância e adolescência. Vejam o caso do escritor Ruy Castro. Ele nasceu em Caratinga/MG, mas passou sua infância e adolescência mais no Rio de Janeiro do que em Caratinga, e, aos 17 anos, ficou de uma vez no Rio. Sua memória se alicerça no Rio. É o mais carioca dos cariocas. Então, a identidade é moldada pela memória da infância e adolescência.
Outro caso é o do poeta, contista, ensaísta e compositor Fernando Canto, que nasceu em Óbidos/PA, mas migrou ainda criança para Macapá. Foi o mais macapaense dos amapaenses. Macapá é a capital do estado do Amapá, no setentrião do litoral brasileiro, na Amazônia.
Fernando Canto escreveu três dos mais emblemáticos ensaios sobre a cultura amapaense: Literatura das Pedras – A Fortaleza de São José de Macapá como locus das identidades amapaenses (doutorado); Fortaleza de São José de Macapá: Vertentes discursivas e as cartas dos construtores (mestrado); e Água Benta e o Diabo, sobre a maior manifestação folclórica do Amapá, o marabaixo.
Outro dia, o poeta e cronista amapaense Edevaldo Leal referiu-se a mim como brasiliense nascido em Macapá. Aí, disse-lhe, brincando, que sou caboco tucuju. Os tucujus eram uma etnia que viveram no Brasil-colônia, onde hoje é Macapá. É claro que ele sabe que sou nada mais do que um caboco de Macapá; apenas quis dizer que moro em Brasília. Edevaldo Leal foi o primeiro escritor a me orientar nas trilhas da escrita. Eu tinha 14 anos e ele, também garoto, mas um pouco mais velho do que eu, já era então jornalista e cronista.
Não sei como será agora que Fernando Canto partiu para o azul. Quando eu ia a Macapá, quase não nos separávamos. Passávamos o dia vagabundando no carrão do Fernando, que eu chamava de 007, comendo e bebendo; entrávamos pela noite e nunca parávamos de conversar, sobre tudo. Podíamos conversar sobre qualquer coisa: literatura, pintura, música, mulheres, bebidas, geopolítica, ETs, qualquer coisa. Agora é curtir o que ele escreveu.
Ser macapaense, e poeta, é comer mapará assado na brasa com pirão de açaí, ouvir merengue e tomar tacacá quando a tarde está morrendo, beber Cerpinha, comer camarão pitu, sentir o perfume dos jasmineiros chorando e ficar ainda mais embriagado, e ofertar rosas para a madrugada.
Eu era garoto e às vezes passava pelo Gato Azul e ficava olhando aquela fauna bebendo. O Gato Azul foi o bar mais emblemático da minha memória macapaense. O simples ato de ficar olhando para o pessoal bebendo inflamava minha mente de futuro escritor. Ficava imaginando a vida de cada um, os locais inimagináveis que conheciam, suas experiências, seus mundos.
O Gato Azul era como Macapá em miniatura. Então, fiz o seguinte, recriei-o no meu romance JAMBU, modificando sua arquitetura e enchendo-o de personagens de ficção. Segue o trecho.
O GATO
AZUL, na Rua São José com a Avenida Presidente Vargas, estava
sempre lotado. Fechado por vidraças que permitiam visão apenas de dentro para
fora, com temperatura ambiente de 21 graus e variedade internacional de
bebidas, o bar constituía-se no melhor refúgio da cidade. Era possível
encontrar nas suas confortáveis cadeiras de palinha e poltronas, de senador da
República a contrabandistas e traficantes. Jornalista, então, dava no meio da
canela. João do Bailique gostava de passar por lá geralmente naquele momento de
transição entre a tarde e a noite, procurava a extremidade sul do balcão e
pedia diretamente ao barman, Antônio, um “espilantol”. Era como denominava o
daiquiri, coquetel cubano feito com rum, suco de lima, açúcar ou xarope e gelo
picado, agitados na coqueteleira e servido em um copo grande; o de Bailique
lembrava um pouco o Daiquiri Hemingway, ou Papa Doble, criado no Bar Floridita,
em Havana, Cuba, especialmente para o escritor americano Ernest Hemingway, que
morou em Havana boa parte de sua vida; Papa era diabético e seu daiquiri não
continha açúcar, e era servido com o dobro de rum, Bacardi. Além disso, o de
Bailique era com suco de limão. Antônio lhe estendeu a bebida e o jornalista
deu o primeiro gole, e veio-lhe a velha sensação que lhe despertava o tacacá da
Esmeralda, naquele momento em que a tarde morre, anestesiando o calor, perfume
de jasmineiros se insinuando, e um remoto som de merengue. Bebeu mais um gole.
A edição de agosto da Trópico Úmido
já estava praticamente editada. Bailique vinha trabalhando, intensamente, na
matéria da Operação Prato, que começara a tomar corpo após longas conversas com
Danielle, intensa pesquisa e uma entrevista com o escritor Jorge Bessa. Estava
investigando ângulos da Operação Prato que não foram abordados pela mídia:
Existem mesmo ETs? Se existem, quem são, de onde vêm? Por que se interessariam
pela Amazônia? Estariam os ETs emitindo sinais de que a Amazônia está guardada
para um fim maior? Sabe-se que o Brasil é visto nos meios exotéricos como o
país mais avançado em termos espirituais: abriga todas as grandes religiões do
planeta, além das dos índios e as africanas; e é um cadinho étnico. E a
Amazônia, a maior floresta tropical do globo, a maior diversidade biológica da
Terra, a maior província mineral do planeta, é a última fronteira, ambicionada
por todos e sugada até o osso pelos governos que se sucedem em Brasília.
JAMBU, na edição da Amazon: A Amazônia completamente nua
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