sexta-feira, 18 de abril de 2025

Bate-papo com Galicíssimo na cafeteria Kopenhagen do shopping Conjunto Nacional

TRÓPICO é um raio-X do Brasil. A capa deste livro de contos é o grafite sobre tela Tuiuiú Crucificado, de Olivar Cunha: a Baía de Guanabara, um dos mais emblemáticos ícones do Brasil, em eterna poluição galopante

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 18 DE ABRIL DE 2025 – Minha cafeteria predileta é a Kopenhagen, no segundo piso do Conjunto Nacional. Espresso de arábica, atendimento agradável, móveis de palinha e um excelente mirante para o passa-passa de todo tipo de gente; um laboratório. Naquela tarde, encontrei-me com Galicíssimo, um velho amigo belenense que também se domiciliou em Brasília. Jornalista dos bons. 

Baixinho – deve ter um metro e sessenta, mais ou menos –, magricela, estrábico e de cabelos grisalhos. Mas isso é compensado por epiderme maravilhosa, lisa e rosada como a pele de um bebê. Sua expressão é a de uma criança perdida, despertando nas mulheres o instinto materno. Contudo, o que lhe originou o apelido, Galicíssimo, foi seu talento para lidar com as mulheres. 

Pode-se, neste caso, aplicar-lhe perfeitamente o ditado que reza: não há mulher difícil; há mulher mal cantada. Em outras palavras, não há mulher que resista a sentir-se princesa; isso as enlouquecem completamente, torna-as reféns absolutamente indefesas e as leva a cometer qualquer crime. 

Basta meia hora de papo para as vítimas grudarem, literalmente, em Galicíssimo, que possui o dom de dissecar a alma feminina com a mesma eficiência de um anatomista que vasculha o corpo humano em busca de compreender melhor a posição dos órgãos, ossos, músculos, tendões, artérias, toda sorte de tecido, já tão estudados e catalogados. 

Ele foi educado em um meio bastante parecido ao de Gabriel García Márquez. Teve um avô como ponto de referência e o resto da casa eram mulheres. Tornara-se, assim, um observador, um analista, um especialista em mulheres, adivinhando os mais recônditos desejos “dessas crianças grandes, dessas criaturas divinas, dessas flores tão delicadas, que se defendem, quando muito, munidas apenas de miseráveis espinhos”. 

Todas buscam, pura e simplesmente, consolo, por uma razão da qual não podiam escapar: são todas inconsoláveis. É então que Galicíssimo dá o pulo do gato, exibindo um instrumento insuspeito, magnífico, que transforma mulheres tristes em tarântulas subindo pelas paredes e se voltando para encarar o surpreendente membro fálico. 

Mas não foi por isso que Galicíssimo me convidou para tomarmos um café. Seu maior problema é com relação à prosperidade. Ele ganha muito bem, na proporção do seu talento. Às vezes, escreve discursos, artigos ou projetos para políticos por 10 mil reais, pagos na hora, ou ganha em campanhas políticas grana suficiente para comprar um apartamento de quatro quartos no Sudoeste, mas gasta na mesma proporção. 

Ele não me procurou para me tomar dinheiro emprestado. Sabe que não tenho. Mas para me pedir conselho. As pessoas prudentes, como eu, costumam ser procuradas para dar conselhos. Ele queria saber como é que, ganhando tanto dinheiro, não tinha sequer um travesseiro decente. 

– É porque tu rasgas dinheiro – disse-lhe. 

– Bom, mas tenho um alto padrão de vida e curto a vida adoidado – ele disse. 

– O teu travesseiro é o símbolo do teu alto padrão de vida e tu curtes mais a doidice do que a vida – disse-lhe. 

Ele ficou calado.

– Na minha vida adotei três pilares para a minha prosperidade – recomecei a falar. – Em primeiro lugar, vem a gratidão. Sou grato a tudo e a todos. A gratidão é uma vibração que promove prosperidade e saúde, e abre portas. Contudo, é preciso observar que o fato de sermos gratos a tudo e a todos não quer dizer que concordemos com tudo e com todos, nem que baixemos a cabeça para quem quer nos ferrar. Eu não dou sopa para espertalhões. A eles, meu muito obrigado é uma bicuda no escroto. 

Galicíssimo sorriu, ouvindo-me e acompanhando com os olhos uma gata capaz de levantar defunto passando. 

– E o segundo pilar? 

– Em segundo lugar, ação. Em vez de ficar preocupado, pensando em dívidas, brigas, alimentando medo, agir é o meio mais sensato. Tu não disseste que curtes a vida adoidado? Pois bem, para mim, curtir a vida adoidado é agir. A ação é sempre agora e sempre resolutiva. Assim, não há dívidas, nem medo, mas ação. 

Galicíssimo parou de acompanhar as mulheres lindas que passam o tempo todo por aquela esquina do shopping e prestou mais atenção. 

– Em terceiro lugar – voltei a falar –, jamais prejudique o próximo; nunca ofenda ninguém, nunca humilhe. Jamais case por dinheiro. Nunca se venda. Dinheiro é maravilhoso, mas não representa, em si, a felicidade. Ele é uma espécie de azeite. Mas, atenção, isso não quer dizer que tu te tornarás um vegetal, ou um anjo de candura. Veja bem, se tiveres que entrar em uma floresta, pedes licença aos donos daquela floresta, dizendo: licença, donos desta floresta. Assim, mesmo. Mas se mesmo assim uma cobra venenosa te atacar e para se defender tiveres que matá-la, mata-a, sem dó nem piedade. A mesma coisa com alguém que tente te ferrar. Ferras o bicho sem dó nem piedade. 

– Mas isso não vai aumentar o meu dinheiro – Galicíssimo argumentou. 

– É claro que não. Do jeito que tu gastas, teu dinheiro nem existe de fato. Só podemos ter dinheiro utilizando-o com sabedoria – eu disse. 

– E como é que a gente faz isso? – ele perguntou. 

– Gastando com as coisas que realmente precisemos e guardando um pouco para os tempos de vacas magras – respondi. – Tu precisas usar menos o mastro e mais a cabeça.

– Acho que vou promover essa mudança na minha vida a partir de agora. Estou trabalhando em uma reportagem que vai me render uma grana, sobre uma coisa que a imprensa em geral ainda não se deu conta: o STF (Supremo Tribunal Federal) vem soltando chefões do crime e narcotraficantes em fila, e há indícios de que políticos de altíssimo escalão receberam dinheiro do narcotráfico internacional para suas campanhas, além de que parte da droga do pessoal que vem sendo solto entra nos Estados Unidos. Descobri que os Estados Unidos estão estudando uma maneira de intervir em tudo isso. 

– Donald Trump sabe muito bem que a manutenção da hegemonia dos Estados Unidos depende da Pax Americana e, esta, de prosperidade. Os Estados Unidos vêm sendo atacados de todas as maneiras nas últimas décadas, principalmente pela China, que usa a escravidão para produzir e inundar o mundo com produtos produzidos por escravos. Trump já está estimulando financeiramente os industriais americanos a saírem da China. Esta é a lei da prosperidade que diz que não devemos dar sopa para o inimigo, mas cacete. 

Galicíssimo era aficionado por café e pedira outro curto. 

– Acho que tenho de dar férias para o mastro. 

– Nem tanto. Elas só querem ser tratadas como princesas e ter nas mãos, durante algumas horas, uma ferramenta grande e rija. E a segurança de que aquilo será um segredo eterno. Não querem dinheiro. Até porque tuas vítimas, quero dizer, os anjos que tu conquistas, são mulheres financeiramente definidas. Querem, no fim das contas, ser amadas. 

– Interessante! – ele exclamou. – Escrevo sobre política, às vezes meandros complexos, mas não tenho olhos para enxergar coisas práticas. 

– Nasceste com o dom de um texto maravilhoso e de enxergar claramente a alma das mulheres. Aproveitas para ganhar dinheiro com o texto e para fazer as mulheres felizes. A propósito, quando vai começar aquele livro sobre o ditador? 

– Rapaz, foi bom falares sobre isso. Já tenho provas inquestionáveis sobre ele e já comecei o livro. Vai ser um furor editorial. 

– É bom porque também tens bastante material sobre o narcotráfico e políticos da América do Sul, e já farás também a tradução para o inglês – disse-lhe. 

Paguei os três expressos, um deles pingado de leite, pois sou muito sensível a café à tarde, e saímos. 

Galicíssimo virou personagem de ficção no conto Almoço de Trabalho no Porcão, do livro TRÓPICO, à venda na amazon.com.br e no Clube de Autores

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